RESUMO: No presente estudo abordaremos o instituto do reexame necessário à luz do projeto do novo Código de Processo Civil, em tramitação no Congresso Nacional (PL n. º 8.046/2010).
ABSTRACT: In this study we discuss the institute of the necessary review in the light of the new project of Code of Civil Procedure, in progress in the National Congress (PL n. ° 8046/2010).
KEY-WORDS: necessary review, new project of Code of Civil Procedure.
SUMÁRIO: 1 – INTRODUÇÃO. 2 – NATUREZA JURÍDICA. 3 – DA PROIBIÇÃO DA REFORMA IN PEJUS. 4 – DA APLICABILIDADE. 5 – DO PROJETO DE LEI N. º 8.046/2010. 6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS.
1. INTRODUÇÃO
Atualmente, o reexame necessário constitui um importante instrumento de proteção do interesse público em juízo, eis que estabelece a releitura do caso posto pela instância ad quem.
O instituto em baila tem raízes bastante remotas, como bem leciona Leonardo Carneiro da Cunha:
“denota seu surgimento no Direito Medieval ostentando matizes mais fortes e acentuados em Portugal, mais especificamente no processo penal, como uma proteção ao réu, condenado à pena de morte. Nas Ordenações Afonsinas, o recurso de ofício era interposto pelo próprio juiz, contra as sentenças que julgavam crimes de natureza pública ou cuja apuração se iniciasse por devassa, tendo como finalidade “corrigir o rigor do princípio dominante es os exageros introduzidos no processo inquisitório.1”
No ordenamento jurídico brasileiro, o reexame necessário já constava no Código de Processo Civil de 1939, figurando no “Título II” como espécie de apelação, recebendo a denominação de apelação necessária ou ex-officio. O Código Instrumental em vigor manteve a obrigatoriedade do duplo grau de jurisdição, reservando a “Seção II” (Da Coisa Julgada) para albergar o instituto em apreço.
2. NATUREZA JURÍDICA
O reexame obrigatório era entendido como uma espécie de recurso, interposto pelo próprio juiz sentenciante. Contudo, depreende-se que a remessa obrigatória não detém a natureza jurídica recursal.
Certamente, conforme os ensinamentos de Fredie Didier Jr., carece o “recurso de ofício” dos pressupostos inerentes aos recursos:
“além de não atender ao princípio da taxatividade, o reexame não está sujeito a prazo, faltando ao juiz legitimidade e interesse em recorrer. A isso acresce a circunstância de não haver o atendimento ao requisito da regularidade formal, que exige do recorrente a formulação do pedido de nova decisão e a demonstração das razões de fato e de direito que o fundamenta. Não se atende, ademais, ao princípio da voluntariedade, mercê do qual o recurso, para ser interposto, depende de provocação espontânea de um dos legitimados, eis que decorre do princípio dispositivo, não devendo decorrer de obrigação ou imposição legal.2”
Hodiernamente, a doutrina não diverge muito quanto ao posicionamento do instituto processual do reexame necessário, prevalecendo o entendimento do mesmo como condição de eficácia da sentença, nos termos da literalidade do caput do art. 475, do CPC. Ou seja, “a sentença – embora válida – não produz efeito senão depois de conformada pelo Tribunal.3”
3. DA IMPOSSIBILIDADE DA REFORMA IN PEJUS
Cuidando-se de instrumento com o escopo de salvaguardar o interesse da Fazenda Pública em juízo, a devolução da matéria à instância ad quem não permite a reforma do julgado para prejudicar o ente público que litiga.
Nesse ponto, o reexame necessário ganha contornos idênticos aos recursos voluntários interpostos pelas pessoas jurídicas de direito público, impedindo a reforma in pejus. Sobre o tema, o Colendo Superior Tribunal de Justiça já sumulou a respeito. Vejamos:
Súmula n. º 45 do Superior Tribunal de Justiça:
“NO REEXAME NECESSÁRIO, É DEFESO, AO TRIBUNAL, AGRAVAR A CONDENAÇÃO IMPOSTA À FAZENDA PÚBLICA.”
Nesse mesmo sentido, vejamos o seguinte aresto:
EMENTA:
RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. PRISÃO ILEGAL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. JUROS MORATÓRIOS. TERMO INICIAL. EVENTO DANOSO. REFORMA EM SEDE DE REEXAME NECESSÁRIO. REFORMATIO IN PEJUS CONFIGURADA. SÚMULA 45/STJ. CORREÇÃO MONETÁRIA. INCIDÊNCIA A PARTIR DA DATA DO ARBITRAMENTO DO VALOR INDENIZATÓRIO. SÚMULA 362/STJ. RECURSO PROVIDO. 1. Se apenas uma das partes interpõe recurso, é vedado ao Tribunal agravar a situação do recorrente, sob pena de ensejar reformatio in pejus, vedada pelo ordenamento jurídico. 2. Na hipótese dos autos, o Tribunal de Justiça estadual promoveu reformatio in pejus contra o Estado do Paraná, ao determinar a incidência dos juros moratórios a partir do evento danoso, afastando como termo a quo a data da citação, conforme fixado na r. sentença, sem que, para isso, houvesse o autor da ação indenizatória interposto recurso de apelação pugnando por essa reforma. Nesse contexto, incide a Súmula 45/STJ, segundo a qual “no reexame necessário, é defeso, ao tribunal, agravar a condenação imposta a Fazenda Pública”. 3. Nas ações de reparação de danos morais, o termo inicial de incidência da correção monetária é a data do arbitramento do valor da indenização. A respeito do tema, a Corte Especial editou recentemente a Súmula 362/STJ: “A correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data do arbitramento.” 4. Recurso especial provido.
(RESP 200600177273, DENISE ARRUDA, STJ - PRIMEIRA TURMA, DJE DATA:16/02/2009 ..DTPB:.)
4. DA APLICABILIDADE
O Código de Processo Civil de 1973 estabeleceu, no caput do art. 475, a remessa necessária como condição de eficácia das sentenças, nas seguintes hipóteses: I) contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, e respectivas autarquias e fundações de direito público; II) que julgar procedentes os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública.
A Lei 10.352/2001 incluiu no Código Instrumental ressalvas quanto à aplicabilidade do reexame necessário, reduzindo, razoavelmente, a utilização do instituto. Vejamos o teor dos §§2º e 3º do art. 475:
Art. 475 – CPC:
§ 2o Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos, bem como no caso de procedência dos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor. (Incluído pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001)
§ 3o Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente. (Incluído pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001)
Nesse contexto, observa-se que se limitou a utilização do reexame necessário nas demandas de pequena repercussão financeira (60 salários-mínimos), bem como quando já sedimentado o entendimento pelo Pretório Excelso, ou pelos Tribunais Superiores.
As exceções delineadas pelo legislador pátrio se coadunam com o princípio da eficiência e da razoável duração do processo, haja vista favorecer a redução do volume de remessas necessárias, permitindo que os tribunais otimizem a prestação jurisdicional.
5. DO PROJETO DE LEI N. º 8.046/2010
O projeto de Lei n. º 8.046/2010, cuja redação já foi aprovada na Câmara dos Deputados, e segue em tramitação no Senado Federal, promove consideráveis alterações no reexame obrigatório. Haja vista a importância e atualidade do projeto de lei em questão, oportunamente se transcreve o art. 507:
CAPÍTULO XIV
DA SENTENÇA E DA COISA JULGADA
SEÇÃO III
DA REMESSA NECESSÁRIA
Art. 507. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:
I – proferida contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público;
II – que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução fiscal.
§ 1º Nos casos previstos neste artigo, ultrapassado o prazo sem que a apelação tenha sido interposta, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal; se não o fizer, o presidente do respectivo tribunal avocá-los-á. Em qualquer desses casos, o tribunal julgará a remessa necessária.
§ 2º Não se aplica o disposto neste artigo quando a condenação ou o proveito econômico obtido na causa for de valor certo e líquido inferior a:
I – mil salários mínimos para União e as respectivas autarquias e fundações de direito público;
II – quinhentos salários mínimos para os Estados, o Distrito Federal, as respectivas autarquias e fundações de direito público, e os Municípios que constituam capitais dos Estados;
III – cem salários mínimos para todos os demais municípios e respectivas autarquias e fundações de direito público.
§ 3º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em:
I – súmula de tribunal superior;
II – acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
III – entendimento firmado em incidente de
resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;
IV – entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa.
No que atine ao §3º, andou bem o legislador ao ampliar as hipóteses que dispensam o reexame necessário, prevendo, inclusive, a orientação vinculante no âmbito administrativo. Com efeito, já havendo posicionamento consolidado da Administração, não há que se falar em reanálise da causa pela instância ad quem. O disposto no parágrafo em comento promoverá a redução da litigiosidade nos tribunais, com o consequente aprimoramento do tempo de duração do processo.
Contudo, em relação ao §2º, observa-se que o novo critério do patamar da condenação foi majorado de forma desarrozoada e desproporcional.
A hipótese de dispensa pelo valor da condenação foi inserida no ordenamento jurídico pátrio pela Lei n. º 10.352 de 2001, que estipulou o valor de 60 (sessenta) salários-mínimos (atualmente R$ 43.440,00), ao passo em que o PL n. º 8.046/2010 estabelece, para a União, o valor de 1.000 salários-mínimos (R$ 788.060,00, com base no salário-mínimo, de R$ 788,06, previsto para o ano de 2015).
A majoração também se mostrou demasiada para os Estados (500 salários-mínimos) e Municípios (100 salários), fato que poderá comprometer sobremaneira o equilíbrio das contas públicas.
Caso reste aprovado o texto acima descrito, a quantidade de processos em que haveria o reexame necessário será reduzido substancialmente. Assim como aos Estados e aos Municípios, poucas demandas envolvem valores tão elevados, principalmente em relação à União, suas Autarquias e Fundações Públicas (condenações próximas a 1 milhão de reais).
6.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em face do exposto, em que pese a manutenção do reexame necessário no projeto do novo código de processo civil, o legislador mitigou demasiadamente o instituto em apreço. Com efeito, ao estabelecer valores de condenação tão elevados, limitou-se sobremaneira a quantidade de processos que serão submetidos à remessa obrigatória à instancia ad quem.
A alteração do patamar para altíssimos valores é objeto de preocupação da Fazenda Pública, haja vista ser potencialmente danosa aos cofres públicos, pondo em risco o interesso público. O reexame necessário, nos moldes atuais, mostra-se salutar à proteção do Erário, não devendo ser objeto de modificação, especialmente nos moldes propostos.
Caso reste aprovado o texto em baila, os entes públicos, com maior razão, deverão primar substancialmente pela excelência na estruturação das procuradorias, e respectivos quadros funcionais, viabilizando uma atuação mais diligente, de modo a possibilitar a interposição de recursos voluntários, quando couber.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 26 de novembro de 2014.
BRASIL. Código de Processo Civil Brasileiro (Redação originária). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869.htm>. Acesso em: 01 de dezembro de 2014.
BRASIL. Código de Processo Civil Brasileiro Compilado. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869compilada.htm>. Acesso em: 26 de novembro de 2014.
BRASIL. Projeto de Lei n. º 8.046/2010 (Projeto do Novo Código de Processo Civil – redação final). Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=3A6E35D277D99E08D9A3FFAF7D
801677.proposicoesWeb1?codteor=1246935&filename=Tramitacao-PL+8046/2010>. Acesso em: 03 de dezembro de 2014.
CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 9ª ed. São Paulo: Dialética, 2011.
DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil: Meios de impugnação às decisões judiciais e processos nos tribunais. 4ª ed. Salvador: Edições Podium, 2007.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 5ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
PEREIRA, Hélio do Valle. Manual da Fazenda Pública em Juízo. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
NOTAS:
1 CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 9ª Edição. São Paulo: Dialética, 2011, p. 202.
2 DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil: Meios de impugnação às decisões judiciais e processos nos tribunais. 4ª ed. Salvador: Edições Podium, 2007, p. 393.
3 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 5ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 622.
Bacharel em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal de Pernambuco. Especialista em Direito Civil e Processual Civil. Membro da Advocacia-Geral da União.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: THIAGO Sá ARAúJO THé, . Do reexame necessário no projeto de Lei N. º 8.046/2010 (Projeto do Novo Código de Processo Civil) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42208/do-reexame-necessario-no-projeto-de-lei-n-o-8-046-2010-projeto-do-novo-codigo-de-processo-civil. Acesso em: 23 dez 2024.
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