O Supremo Tribunal Federal possui jurisprudência pacífica no sentido de que, na formulação do pedido da inicial de uma ação direta de inconstitucionalidade, há de ser atacado todo o complexo normativo tido por inconstitucional, no intuito de se evitar a repristinação de normas igualmente eivadas de inconstitucionalidade.
De outro lado, é reiterado naquela Corte o entendimento de que leis ou atos normativos anteriores à Constituição Federal de 1988 não são impugnáveis por meio de ação direta.
Ocorre que determinados complexos normativos passíveis de questionamento por vícios de inconstitucionalidade podem ser compostos por leis anteriores e também posteriores à Constituição.
Em tais situações, haveria um aparente conflito entre as citadas construções jurisprudenciais no âmbito do próprio Tribunal.
É este o objeto da análise que se passa a fazer.
O Supremo Tribunal exige dos requerentes, na formulação das petições iniciais de ação direta de inconstitucionalidade, a impugnação de toda a sequência de leis atinentes a determinada matéria, inclusive aquelas revogadas pelo objeto principal da ação.
A razão para tal exigência está em evitar a restauração da vigência de dispositivos que padeçam de vícios de inconstitucionalidade, tal qual a norma revogadora, o que acabaria por tornar inócua a deflagração do processo de controle concentrado.
O seguinte trecho da decisão proferida pelo Ministro Celso de Mello, ao analisar medida cautelar pleiteada em ação direta de inconstitucionalidade, bem exprime esse raciocínio:
“(...)Não se pode deixar de ter em consideração, neste ponto, a relevantíssima circunstância de que a eventual ocorrência da suspensão cautelar e da declaração final de inconstitucionalidade,
in abstracto, do diploma normativo superveniente (a MP nº 2.187-13, de 24/08/2001, ora impugnada na presente ação direta), importará em restauração da eficácia dos atos normativos que por ela foram revogados ou modificados.
Com efeito, a declaração de inconstitucionalidade in abstracto, de um lado, e a suspensão cautelar de eficácia do ato reputado inconstitucional, de outro, importam - considerado o efeito
repristinatório que lhes é inerente - em restauração das normas estatais revogadas pelo diploma objeto do processo de controle normativo abstrato.” (ADI 2.621-MC, Relator Ministro Celso de Mello, DJ de 8.8.2002)
Esta orientação é confirmada nos seguintes precedentes emanados do Plenário:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE: EFEITO REPRISTINATÓRIO: NORMA ANTERIOR COM O MESMO VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE. I. - No caso de ser declarada a inconstitucionalidade da norma objeto da causa, ter-se-ia a repristinação de preceito anterior com o mesmo vício de inconstitucionalidade. Neste caso, e não impugnada a norma anterior, não é de se conhecer da ação direta de inconstitucionalidade. Precedentes do STF. II. - ADIn não conhecida. (ADI 2.574, Relator Ministro Carlos Velloso, DJ de 29.8.2003)
EMENTA: CONSTITUCIONAL. (...) EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, SE A SUSPENSÃO DA NORMA IMPUGNADA FIZER RESSURGIR NORMA ANTERIOR TAMBÉM INCONSTITUCIONAL, ESTAS DEVERÃO SER IMPUGNADAS NA INICIAL. O QUE NÃO SUCEDEU. SE DECIDIR ESTE TRIBUNAL PELA INCONSTITUCIONALIDADE DO CONVÊNIO 77/95, HAVERÁ A REPRISTINAÇÃO DO CONVÊNIO ANTERIOR - Nº 98/89. AÇÃO NÃO CONHECIDA. (ADI 2.224, Relator Ministro Nelson Jobim, DJ 13.06.2003).
A outra vertente jurisprudencial que há de ser mencionada, no intuito de contextualizar a controvérsia em apreço, diz respeito à incognoscibilidade de ações diretas de inconstitucionalidade voltadas a impugnar normas anteriores à vigência da Carta de 1988.
No entendimento do Tribunal, a verificação de compatibilidade ou não de norma pré-constitucional com o texto da Constituição atualmente em vigor se operaria no campo da revogação ou recepção, não sendo, pois, o caso de declaração de inconstitucionalidade.
Na vigência da CF/88, tal entendimento foi inaugurado logo na ADI 2, da relatoria do Ministro Paulo Brossard, consubstanciada em acórdão assim ementado:
“EMENTA: CONSTITUIÇÃO. LEI ANTERIOR QUE A CONTRARIE. REVOGAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE. IMPOSSIBILIDADE. 1. A lei ou é constitucional ou não é lei. Lei inconstitucional é uma contradição em si. A lei é constitucional quando fiel à Constituição; inconstitucional na medida em que a desrespeita, dispondo sobre o que lhe era vedado. O vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconstitucional em relação à Constituição superveniente; nem o legislador poderia infringir Constituição futura. A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse, ao ser promulgada, leis ordinárias. A lei maior valeria menos que a lei ordinária. 2. Reafirmação da antiga jurisprudência do STF, mais que cinqüentenária. 3. Ação direta de que se não conhece por impossibilidade jurídica do pedido. (Relator Ministro Paulo Brossard, DJ de 21/11/97)
Como adiantado, a controvérsia surge quando se está diante de uma situação onde tais entendimentos, numa primeira análise, acabam por se contrapor.
Isso ocorre quando se está diante de uma cadeia normativa constituída por normas posteriores e anteriores à Constituição, sendo que o vício de inconstitucionalidade que se busca apontar permeia todas elas.
As normas pré-constitucionais, por também padecerem, em tese, dos vícios de inconstitucionalidade que se busca apontar, deveriam ser objeto de impugnação juntamente com o restante do arcabouço normativo, em atendimento à jurisprudência alusiva ao efeito repristinatório.
Sua impugnação, contudo, em atenção à jurisprudência alusiva à não recepção pela Constituição de normas que lhes são anteriores e contrárias, levaria ao não conhecimento do pedido.
A título ilustrativo, vale mencionar situação prática vivenciada pelo STF nesse sentido.
Tratava-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Procurador-Geral da República em face de uma lei fluminense que dispunha sobre destinação da receita proveniente de emolumentos, ao argumento de ofensa a ditames constitucionais alusivos ao Sistema Tributário Nacional.
Seu relator, o Ministro Cezar Peluso, decidiu por indeferir a petição inicial, por ausência de impugnação da totalidade do complexo normativo supostamente viciado, ante a ausência de pedido em relação às normas publicadas nos anos de 1969 e 1981.
Eis o teor da decisão:
“(...) eventual declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados nesta ação restauraria a vigência e a eficácia da norma revogada (art. 1º da Lei nº 489, de 19 de novembro de 1981), coisa que faria inócuo o provimento jurisdicional da Corte.
Ademais, conforme se vê da cópia do Decreto-lei nº 121/1969, do Estado do Rio de Janeiro, seu art. 10 à assegurava ‘à Caixa de Assistência dos Advogados e ao Instituto dos Advogados Brasileiros os percentuais que lhes são devidos.’ (fls. 98).
É jurisprudência assente da Corte, em controle abstrato, que a falta de impugnação dos preceitos revogados que, como conjunto normativo, recuperariam vigência e eficácia (repristinação) em decorrência da declaração de inconstitucionalidade do ato ab-rogatório, induz não conhecimento da ação direta, se aqueloutros também padecem do vício:
‘10. Na hipótese da presente ação, a declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos hostilizados restabeleceria a vigência do texto anterior do artigo 71 da Constituição cearense, cujo conteúdo também está eivado de inconstitucionalidade. Isso não encontra respaldo nos
julgados proferidos por esta Corte (ADI 1.232/MC, Ministro Moreira Alves, DJ de 05/04/02, ADI 2.242, Min. Moreira Alves, DJ de 19/12/01, conforme se infere do precedente abaixo transcrito(...).
O entendimento é que na ação direta que vislumbre impugnação de preceito modificador originário, expressamente conflitante com a Constituição do Brasil, o requerente deve necessariamente pleitear a inconstitucionalidade de ambos, sob pena de a ação ser considerada incabível, consoante reiterados precedentes desta Corte (ADI nº 3.218/CE, Rel. Min. EROS GRAU, DJU de 14.12.2004)’.
Ante o exposto, com fundamento no art. 4º, caput, da Lei nº 9.868/99, indefiro a inicial da presente ação direta de inconstitucionalidade. Arquivem-se oportunamente.” (ADI 3.111, Decisão monocrática da lavra do então Relator, Min. Cezar Peluso, DJ de 19.05.2005).
O fato é que a prevalência deste entendimento levaria, em última análise, à “blindagem” de determinadas normas em relação ao controle concentrado de constitucionalidade.
É que, na prática, existem diversas cadeias normativas cuja sequência de revogações remonta a períodos muito anteriores à vigência da atual Constituição. Algumas delas, possivelmente, eivadas de inconstitucionalidades.
Esta situação não passou desapercebida pelo Tribunal, que posteriormente acabou firmando o entendimento de que a exigência de impugnação da cadeia normativa deveria ter como limite o advento da Constituição de 1988.
A esse respeito, cumpre reproduzir a narrativa apresentada no voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes, no julgamento da ADI 3660, sintetizando a adoção pelo STF da conjugação de ambos os entendimentos:
“Assim, conjugando ambos os entendimentos professados pela jurisprudência do Tribunal, a conclusão não pode ser outra senão a de que a impugnação deva abranger apenas a cadeia de normas revogadoras e revogadas até o advento da Constituição de 1988.
(...)
Tal entendimento acabou prevalecendo neste Tribunal, por ocasião do julgamento de uma série de ações diretas de inconstitucionalidade pelo Procurador-Geral da República contra leis e atos normativos estaduais que tratavam do tema de loterias e jogos de bingo (...). O Tribunal rejeitou questão preliminar de não-conhecimento das ações, levantada com fundamento no fato da não-impugnação, pelo Procurador-Geral da República, de diplomas anteriores à Constituição de 1988. Entendeu-se que tais diplomas, por constituírem normas pré-constitucionais, não seriam repristinados pela declaração de inconstitucionalidade dos diplomas revogadores e, portanto, não deveriam ter sido impugnados pelo autor da ação, apesar de tratarem do mesmo tema das demais leis e atos normativos impugnados.
Não se pode deixar de considerar, ademais, que, nos casos em que o requerente, por excesso de cuidado, impugnou toda da cadeia normativa, mesmo as normas anteriores ao texto constitucional de 1988, poderá o Tribunal conhecer da ação e declarar a inconstitucionalidade das normas posteriores a 5 de outubro de 1988 e, na mesma decisão, declarar a revogação das normas anteriores a essa data.” (ADI 3660, Relator Ministro Gilmar Mendes, DJe de 9.5.2008)
Em suma, considerando a falta de razoabilidade advinda do raciocínio empreendido pelo Ministro Cezar Peluso, para determinar a extinção anômala de ação direta por ausência de impugnação de normas pré-constitucionais, a Corte acabou harmonizando este conflito de entendimentos detectado.
Cabe assinalar, finalmente, que tal solução, inclusive, foi adotada na própria ADI 3111, na qual havia sido proferida a questionável extinção anômala.
No exercício do juízo de retratação, seu atual relator, Ministro Teori Zavascki, deu provimento ao agravo regimental interposto, reconhecendo injustificável a exigência de impugnação, na petição inicial de ação direta, de normas anteriores à Constituição Federal:
“É caso de reconsideração da decisão de fls. (...).
(...)
Em primeiro lugar, cabe esclarecer que a jurisprudência da Corte é consolidada em reconhecer que, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), a jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal (STF) não se estende, como regra, ao direito pré-constitucional.
(...)
Em suma, a partir da tese prevalecente no Voto do Min. Paulo Brossard no julgamento da ADI 2/DF (j. 06.02.1992, DJ 21.11.1997), o processo de fiscalização abstrata instaurada em sede de ADI, via de regra, não é adequado para a apreciação de atos normativos pré-constitucionais. Esta tem sido, inclusive, a orientação deste STF para fins do reconhecimento de que, em sede de controle abstrato, a ADPF é a medida usualmente cabível por aplicação do denominado “princípio da subsidiariedade” (Lei 9.882/1999, art. 4º, § 1º). Quando se está diante de direito pré-constitucional, portanto, a questão constitucional decorrente do conflito intertemporal resolve-se no âmbito da “não-recepção”, e não, propriamente, da declaração de inconstitucionalidade propriamente dita (= cotejo normativo vertical entre a norma objeto do controle e a CRFB/1988).
Não bastasse esse primeiro fundamento – suficiente, por si só, para justificar o juízo de retratação –, ressalta-se que, em todos os precedentes invocados (colegiados e monocráticos) pela decisão impugnada, a exigência jurisprudencial de impugnação completa de todos as eventuais normas repristináveis, em tese, se referia, especificamente, a atos normativos posteriores à promulgação do texto constitucional vigente.
(...)
Por essa razão, também pela incorreta aplicação dos precedentes colegiados e monocráticos suscitados pela decisão agravada, tem razão o recurso de fls.(...).
Diante do exposto, reconsidero a decisão de fls. (...) para admitir o presente pedido de Ação Direta de Inconstitucionalidade.” (ADI 3.111, Relator Ministro Teori Zavascki, Dje de 30.10.2013)
CONCLUSÃO
Por meio da presente sequência narrativa de precedentes da Suprema Corte, buscou-se demonstrar a existência de um aparente conflito jurisprudencial relacionado aos requisitos de admissibilidade das ações diretas de inconstitucionalidade.
Apontou-se um aparente descompasso entre a necessidade de impugnação de todo o complexo normativo de leis revogadas e revogadoras e a incongnoscibilidade de pedidos de deduzidos em face de normas pré-constitucionais.
Ao final, explicitou-se a solução encontrada pelo Tribunal, no sentido de que a exigência de impugnação da cadeia normativa deveria ter como limite o advento da Constituição de 1988.
Procurador Federal. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília - Uniceub. Bacharel em Administração de Empresas pela Universidade de Brasília - Unb. Procurador Federal em atuação no Departamento de Consultoria da Procuradoria-Geral Federal<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROCHA, Leonardo Vasconcellos. Juízo de admissibilidade de petições iniciais de ADIN: conflito de entendimentos jurisprudenciais no STF Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 dez 2014, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42232/juizo-de-admissibilidade-de-peticoes-iniciais-de-adin-conflito-de-entendimentos-jurisprudenciais-no-stf. Acesso em: 23 dez 2024.
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