1. Definição e alcance
Diz a Constituição Federal, em seu art. 5º, inc. LV, que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Esse mandado constitucional que significar em primeiro lugar que a lei deve garantir meios para a participação dos litigantes no processo e o juiz deve, por sua vez, franquear-lhes esses meios.[1]
Como bem lembra Dinamarco, “significa também que o próprio juiz deve participar da preparação do julgamento a ser feito, exercendo ele próprio o contraditório”.[2]
A garantia do contraditório, nesse linha de raciocínio, resolve-se em um direito das partes e uma série de deveres do magistrado. [3]
Como acentua Nelson Nery, o princípio do contraditório tem íntima relação com o princípio da igualdade das partes no processo, sobre o qual já se tratou, e o direito de ação, porquanto a Constituição, ao garantir aos litigantes o contraditório e a ampla defesa, quer significar que tanto o direito de ação quanto o direito de defesa são manifestação do princípio do contraditório.[4]
No processo administrativo da mesma forma incide o princípio do contraditório. E foi essa a inovação profunda introduzida pelo art. 5º, inc. LV, ao exigir a observância do contraditório nos processos administrativos em geral. Observe-se, nesse passo, que na carta constitucional revogada havia previsão expressa do contraditório tão-somente para o processo penal, nada obstante já houvesse razoável manifestação doutrinária de que aquele princípio se aplicava, igualmente, ao processo civil e ao administrativo.
O processo administrativo para a apuração de ato infracional cometido por criança ou adolescente também é otimizado pelo princípio cnostitucional do contraditório e ampla defesa, uma vez que sua finalidade consiste na aplicação de medida socioeducativa pela conduta infracional, que se assemelha à imposição de sanção administrativa.
No que concerne ao inquérito policial, bem como ao inquérito civil, sabe-se que o princípio do contraditório não incide sobre eles. Tal acontece porque não tratam ele de processo administrativo, mas de simples procedimento inquisitório que têm a teleologia de aparelhar o Ministério Público para que possa promover a ação judicial penal ou civil, conforme se trate de inquérito policial ou civil, respectivamente. Não têm como destinatário o juiz, mas o Ministério Público, não se destinando, portanto, à aplicação de sanção, mas tão-somente de colheita de elementos de convicção que vão embasar o discernimento do órgão ministerial para a promoção da ação pertinente.
O princípio do contraditório no processo civil otimiza não só o processo de conhecimento, mas as três modalidades clássicas previstas em nosso sistema de direito positivo: processo de conhecimento, de execução e cautelar.
Por outro lado, é indiferente o tipo de procedimento que se trate no processo civl, isto é, se se trata de procedimento de jurisdição contenciosa ou de jurisdição voluntária: em ambos os casos o contraditório atua normalemente. Nelson Nery lembra, no entanto, que
relativamente aos procedimentos de jurisdição voluntária, é preciso que se tenha em conta que não se trata de observar o contraditório em seu aspecto técnico-processual, de dar aos litigantes igualdade de chances, porque não existem partes em sentido técnico nesses procedimentos, aliado ao fato de que o princípio inquisitório é que preside os procedimentos de jurisdição voluntária, podendo o juiz decidir até por eqüidade (arts. 1.107 e 1.109, CPC).[5]
Reconheça-se, ainda, que é conhecida a posição restritiva de parcela da doutrina quanto à existência do contraditório no processo de execução, dado o notório desequilíbrio entre devedor e credor, este normalmente exeqüente. Entretando, como bem salienta Nelson Nery, cuja argumentação sobre o assunto merece ser registrado na íntegra,
O contraditório também se manifesta no processo de execução, embora de forma menos abrangente e incisiva do que nos processos de conhecimento e cautelar, pelas próprias peculiaridades do processo executivo. Com os embargos do devedor se instaura verdadeiro processo de conhecimento, incidentemente ao processo de execução. Nos embargos, por óbvio, incide o contraditório amplo. No entanto, mesmo antes de opor embargos do devedor, o que somente pode ocorrer depois de seguro o juízo pela penhora, o devedor pode utilizar-se de outros instrumentos destinados à impugnação no processo de execução, notadamente no que respeita às questões de ordem pública por meio da impropriamente denominada exceção de preexecutividade. A expressão é imprópria porque “exceção” traz ínsita a idéia de disponibilidade do direito, razão por que não oposta a exceção ocorre preclusão. O correto seria denominar esse expediente de objeção de preexecutividade, porque seu objeto é matéria de ordem pública decretável ex officio pelo juiz e, por isso mesmo, insuscetível de preclusão.
Assim, a possibilidade de o devedor, sem oferecer bens à penhora ou embargar, poder apontar a irregularidade formal do título que aparelha a execução, a falta de citação, a incompetência absoluta do juízo, o impedimento do juiz e outras questões de ordem pública, é manifestação do princípio do contraditório no processo de execução. Da mesma forma, sobre todo e qualquer ato praticado no processo de execução, deve dar-se oportunidade ao devedor para manifestar-se, sob pena de ofensa ao princípio constitucional do contraditório. Pode o devedor, portanto, falar sobre a atualização de cálculo no curso da execução, sobre a ordem de preferência na penhora etc. Contraditório na execução, portanto, existe embora limitado pela própria natureza desse tipo de processo.[6]
Ainda nessa linha de raciocínio, assevera Cândido Rangel Dinamarco que
No processo de execução, que não comporta discussões nem julgamento sobre a existência do crédito – mas comporta-os com referência a outras questões – o contraditório que se estabelece endereça-se somente aos julgamentos que nesse processo podem ter lugar. Não há processo sem decisão alguma, não há decisão sem prévio conhecimento e não há conhecimento sem contraditório.[7]
2. Contraditório, poder e democracia
Interessante a reflexão que Luiz Guilherme Marinoni faz acerca do princípio do contraditório, fazendo um link com os conceitos de poder e democracia:
Como o poder, nas democracias, é legitimado pela participação daqueles que são atnigidos pelo seu exercício, a participação no procedimento que culmina na criação da lei dá-se através da eleição de representantes capazes de criá-la, isto é, através da chamada democracia representativa. Como o juiz não é eleito, a pargunta que deve surgir é no sentido de como o exercício do poder jurisdicional é legitimado. Pois o exercício do poder jurisdicional somente é legítimo quando participam do procedimento que terminará na edição da decisão aqueles que serão por ela atingidos. Em outros termos, somente existirá procedimento legítimo e, portanto, processo, quando dele participarem aqueles que serão atnigidos pela decisão do juiz.
Se o que importa é o princípio político da participação, no processo jurisdicional essa necessidade de participação é representada pelo instituto do contraditóri. O “princípio do contraditório” é apenas o nome jurídico que se dá à necessidade de, no processo jurisdicional, participarem os interessados. Fala-se, por isso mesmo, em participação em contraditório.[8]
Destaca Cândico Rangel Dinamarco que tal é uma derivação da conhecida tese da legitimação pelo procedimento, lançada em estudos de sociologia política e de valia relativamente a todas as áreas que envolvem o exercício do poder.[9]
De ver-se, portanto, que essa participação em contraditório, devendo estar afinado com os valores da nossa Constituição da República, e, mormente com a igualdade substancial – e não com a mera igualdade formal –, deve traduzir-se na possibilidade de uma participação concreta na relação jurídica processual.
3. Contraditório e juiz
A garantia constitucional do contraditório também, e talvez principlamente, endereça-se ao juiz, como imperativo de sua função no processo, e não mera faculdade. A participação que o princípio do contraditório impõe ao magistrado consiste em atos de direção – mediante o impulso do procedimento[10] –, de prova[11] – suprindo deficiências probatórias – e de diálogo[12] – tentando a conciliação ou mesmo alertando as partes acerca do ônus probatório a cargo de cada qual. O sistema processual, portanto, impõe ao juiz, entre seus deveres fundamentais no processo, o de participar efetivamente.[13]
4. Liminar inaudita altera pars
Existe uma limitação imanente à bilateralidade da audiência no processo civil, na hipótese de a natureza e a finalidade do provimento jurisdicional pedido ensejaram a necessidade de concessão de medida liminar, inaudita altera pars, como sói ocorrer com a antecipação da tutela de mérito, do provimento cautelar ou das liminares em ação possessória, mandado de segurança, ação popular, ação coletiva (CDC, art. 81, parágrafo único) e ação civil pública.[14] Isto não quer significar, no entanto, um choque ao princípio constitucional do contraditório, uma vez que “a parte terá oportunidade de ser ouvida, intervindo posteriormente no processo, inclusive em direito a recurso contra a medida liminar concedida sem sua participação”.[15] Some-se a isto, ainda, que a própria provisoriedade dessas medidas aponta a possibilidade de sua modificação posterior, após a interferência da manifestação da parte contrária interessada, por exemplo.
Esta limitação imanente não fere de morte o contraditório, portanto, uma vez que está posta no interesse superior da justiça, “dado que em certas ocasiões a ciência dos atos processuais à parte adversa e mesmo a demora na efetivação da medida solicitada poderiam resultar em ineficácia da atividade jurisdicional”.[16] Note-se, pois, que a concessão da liminar inaudita altera pars atende perfeitamente ao princípio da efetividade da tutela jurisdicional.
Salta à evidência, nesse contexto, que a concessão de medida liminar inaudita altera pars apenas adia temporalmente a concretização prática do contraditório, e isso em homenagem ao princípio da efetividade processual. Trata-se, pois, de uma hipótese d contraditódio diferido.
Só haveria ofensa ao mandado constitucional do contraditório caso ao réu não se desse a oportunidade – informação-reação – de defesa ou de recurso contra a referida liminar concedida a seu desfavor. Como bem afirma Nelson Nery, “o cerne da questão se encontra na manutenção da provisoriedade da medida, circunstância que derruba, a nosso ver, a alegada inconstitucionalidade das liminares concedidas sem a ouvida da parte contrária”.[17]
5. REFERÊNCIAS
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 3 ed., São Paulo: Malheiros, 2003;
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004;
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
[1] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 3 ed., São Paulo: Malheiros, 2003.
[2] Ibid., p. 214.
[3] Como destaca Dinamarco, “é do passado a afirmação do contraditório exclusivamente como abertura para as partes, desconsiderada a participação do juiz” (p. 215).
[4] NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
[5] NERY JÚNIOR, op. cit., p. 135.
[6] Ibid., p. 136/137.
[7] DINAMARCO, op. cit., p. 218/219. É conhecida a perspectiva moderna segunda a qual o princípio do contraditório identifica-se com o binômio informação-reação, com a ressalva de que, embora a primeira seja absolutamente necessária sob pena de ilegitimidade do processo e nulidade de seus atos, a segunda é somente possível.
[8] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 79.
[9] DINAMARCO, op. cit. Continua o processualista: “Na realidade, o que legitima os atos de poder não é a mera e formal observância dos procedimentos, mas a participação que mediante o correto cumprimento das normas procedimentais tenha sido possível aos destinatários. Melhor falar, portanto, em legitimação pelo contraditório e pelo devido processo legal” (p.215).
[10] Dinamarco destaca que “embora possam as partes ter a disponibilidade das situações de direito material pela qual litigam, não pode o Estado-juiz permanecer inteiramente à disposição do que elas fizerem ou omitirem no processo, sem condições de cumprir adequadamente sua função. O processo não é um negócio, ou memso um jogo entre os litigantes, mas uma instituição estatal” (op. cit., p. 221/222).
[11] Dinamarco salienta que “O dever de iniciativa probatória é maior quando a relação jurídico-material litigiosa é marcada pelo indisponibilidade. (...) É menos intenso esse poder-dever nos litígios sobre direitos disponíveis entre capazes, mas mesmo nessas hipóteses ele não se aniquila por completo porque isso significaria reduzir o juiz a mero expectador sem consciência da função pública que exerce no processo” (op. cit., p. 224).
[12] Destaca o processualista que “A moderna ciência do processo afastou o irracional dogma segundo o qual o juiz que expressa seus pensamentos e sentimentos sobre a causa, durante o processo, estaria prejulgando e, portanto, afastando-se do cumprimento do dever de imparcialidade” (op. cit., p. 224/225).
[13] DINAMARCO, op. cit. Dinamarco lembra que “tal é a perspectiva do ativismo judicial, que vem sendo objeto de ardorosos alvitres nos congressos internacionais de direito processual, marcados pelo tônica da efetividade do processo. Opõe-se aos postulados do adversary system prevalente no direito anglo-americano, onde o juiz participa muito menos (especialmente no tocante à colheita de prova) e desenvolve, como se diz, a relatively passive role (p. 221).
[14] NERY JUNIOR, op. cit.
[15] NERY JÚNIOR, op. cit., p. 141.
[16] Ibid., loc. cit.
[17] Ibid., p. 144.
Procurador Federal da AGU - Advocacia Geral da União. Mestrando em Direito. Especialista em Direito Constitucional. Especialista em Direito Administrativo. Especialista em Direito Processual Civil. Especialista em Ciências Criminais.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIAS, Jorge Andersson Vasconcelos. Do princípio processual do contraditório Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 dez 2014, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42236/do-principio-processual-do-contraditorio. Acesso em: 22 dez 2024.
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