Resumo: O presente artigo analisa o instituto constitucional das cláusulas pétreas como limite à definição de políticas públicas restritivas de direitos sociais, espécie de direitos fundamentais. Palavras-chave: Direito Constitucional. Direitos Fundamentais. Direitos Sociais. Restrição. Cláusulas pétreas.
1. Introdução
Direitos fundamentais são direitos humanos positivados em determinada ordem jurídica. Essa positivação confere efetividade aos direitos humanos e efetividade significa que podem ser cobrados do Estado.
Para Bonavides, “Criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana, eis aquilo que os direitos fundamentais almejam, segundo Hesse”[1].
A doutrina de Direito Constitucional classifica os direitos fundamentais em gerações ou dimensões, cujo entendimento torna-se útil na presente exposição, porque identifica a ação estatal exigida para sua concretização e, por conseguinte, permite inferir sua forma de restrição.
2. Desenvolvimento
A primeira geração compreende os chamados direitos de liberdade, como o direito de propriedade, direito de locomoção, direitos de opção política, direito à vida. Para dar efetividade a esses direitos, o Estado precisa praticar apenas uma conduta omissiva, isto é, não produzir ato normativo (oriundo de qualquer dos Poderes do Estado) que fira tais direitos.
A segunda geração dos direitos fundamentais abarca os direitos sociais, que são o direito à saúde, à previdência social, à assistência social, à educação, à moradia. Diferentemente dos direitos de primeira dimensão, os direitos de segunda geração demandam, para seu cumprimento, uma ação comissiva do Estado, uma prestação (que pode ser a produção de uma norma ou a execução de uma ação concreta). A inclusão desses direitos no rol de direitos fundamentais configurou grande avanço, porque conferiu-lhes efetividade, restando ultrapassado o entendimento de que se tratavam de normas programáticas tão-somente.
Conforme ensina Pedro Lenza,
Os direitos sociais, direitos de segunda dimensão, apresentam-se como prestações positivas a serem implementadas pelo Estado (Social de Direito) e tendem a concretizar a perspectiva de uma isonomia substancial e social na busca de melhores e adequadas condições de vida, estando, ainda, consagrados como fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º., IV, da CF/88)”[2].
Para Lazzari e Castro,
“Os Direitos Sociais se legitimam também em função da construção de um mínimo de condições existenciais do ser humano, como retrata Robert Alexy. Este, ao tratar do regramento dos Direitos Fundamentais, divide as normas de direito fundamental em normas escritas e adscritas, ambas, todavia, com conteúdo normativo pleno, pois que se revelam em um conteúdo de argumentação jusfundamental.[3]”
Mais adiante, continuam os reconhecidos autores afirmando que
“Na mesma obra, Alexy refere-se aos Direitos Sociais Fundamentais como direitos do indivíduo em face do Estado, afirmando que, em função da preservação da autodeterminação do ser humano – que se obtém não apenas a partir da liberdade de agir, mas sim de uma liberdade de fato – há que se ter um conteúdo mínimo a ser provido, para assegurar as condições mínimas de vida digna. Os fenômenos que levaram a existir uma preocupação maior do Estado e da sociedade com a questão da subsistência no campo previdenciário são de matiz específica: são aqueles que atingem indivíduos que exercem alguma atividade laborativa, no sentido de assegurar direitos mínimos na relação de trabalho, ou de garantir o sustento, temporária ou permanentemente, quando diminuída ou eliminada a capacidade para prover a si mesmo e a seus familiares.[4]”
Conforme ensina Bonavides, os direitos fundamentais sociais
“Dominam o século XX do mesmo modo como os direitos da primeira geração dominaram o século passado. São os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado social, depois que germinaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal do século XX. Nasceram abraçados ao princípio da igualdade (...) Passaram primeiro por um ciclo de baixa normatividade ou tiveram eficácia duvidosa, em virtude de sua própria natureza de direitos que exigem do Estado determinadas prestações materiais nem sempre resgatáveis por exigüidade, carência ou limitação essencial de meios e recursos. De juridicidade questionada nesta fase, foram eles remetidos à chamada esfera programática, em virtude de não conterem para sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos da liberdade. (...) recentes Constituições, inclusive a do Brasil, formularam o preceito da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais.[5]”
E assim continua
“De tal sorte que os direitos fundamentais da segunda geração tendem a tornar-se tão justiciáveis quanto os da primeira; pelo menos esta é a regra que já não poderá ser descumprida ou ter sua eficácia recusada com aquela facilidade de argumentação arrimada no caráter programático da norma. Com efeito, até então, em quase todos os sistemas jurídicos, prevalecia a noção de que apenas os direitos da liberdade eram de aplicabilidade imediata, ao passo que os direitos sociais tinham aplicabilidade mediata, por via do legislador.[6]”
A terceira geração dos direitos fundamentais são os direitos difusos e coletivos, cuja titularidade não é individualizada, típicos de sociedade de massa. São os direitos ao meio ambiente saudável, às relações de consumo, ao patrimônio histórico, cultural e paisagístico, ao desenvolvimento. Tais direitos também demandam atuação positiva por parte do Estado, seja ela fática ou normativa.
Os direitos de quarta geração, por sua vez, são os direitos decorrentes da biotecnologia e da telemática. Paulo Bonavides acrescenta uma quinta geração de direitos fundamentais, na qual classifica o direito à paz. Segundo esse renomado doutrinador, “A concepção da paz no âmbito da normatividade jurídica configura um dos mais notáveis progressos já alcançados”[7].
Outra importante classificação dos direitos fundamentais é feita pela doutrina pátria, cujo critério é a distribuição topográfica desses direitos no texto da Constituição Federal. Cabe frisar que a doutrina e o Supremo Tribunal Federal são unânimes em afirmar que os direitos e garantias fundamentais não se encontram restritos ao Título II, estando espalhados por todo o texto constitucional, assim como na legislação infraconstitucional[8]. Essa classificação identifica cinco categorias, conforme a previsão nos capítulos do Título II, a saber: direitos individuais, direitos coletivos, direitos sociais, direitos de nacionalidade e direitos políticos. Essa classificação é importante na presente abordagem, porque a Constituição Federal, no art. 60, § 4º., IV, estabelece um limite ao poder constituinte derivado – as chamadas doutrinariamente de cláusulas pétreas. Uma delas se refere ao tema em comento[9].
3. Conclusão
Independente da classificação que se adote para trabalhar academicamente o tema, é certo que a concretização de todo direito fundamental depende de uma atuação estatal, seja ela omissiva ou comissiva, conforme acima aduzido. A atuação estatal, por sua vez, para se efetivar, depende de disponibilidade de recursos públicos, compreendidos os recursos financeiros, os recursos estruturais, os recursos de pessoal. E é cediço que os recursos estatais são limitados. Por essa razão, os direitos fundamentais não podem ser assegurados, de modo absoluto, em seu maior âmbito de alcance, a todos os cidadãos, em todas as situações. Diante dessa inexorável limitação fática, os direitos fundamentais podem ser restringidos, seja em previsão normativa, seja em uma atuação concreta estatal, através da definição das políticas públicas.
Contudo, a restrição aos direitos fundamentais encontra limites, como o instituto das cláusulas pétreas.
As cláusulas pétreas consistem em uma limitação imposta pelo poder constituinte originário ao poder constituinte reformador e derivado, consistente na vedação de elaboração de qualquer emenda à constituição tendente a abolir os direitos e garantias individuais. Uma das finalidades desse instituto é proteger institutos e valores essenciais consagrados na Norma Fundamental.
O Supremo Tribunal Federal entende que as cláusulas pétreas não significam intangibilidade material da matéria em emenda constitucional, mas uma proteção ao núcleo essencial desses direitos.
No sistema jurídico pátrio, a corrente restritiva, baseada na interpretação literal do texto constitucional, defende que as cláusulas pétreas proíbem a supressão de direito fundamental individual tão-somente. Não obstante, o tema é controverso entre os operadores do Direito. A doutrina aborda principalmente a questão sob o prisma dos direitos sociais, já que eles são os que mais demandam atuação concreta do Estado e, por conseguinte, sofrem restrição diuturnamente.
Contudo, para uma corrente mais ampliativa do texto constitucional, trata-se de uma questão de hermenêutica constitucional. Bonavides, que se filia à corrente ampliativa, afirma que
“introduzida e positivada em grau máximo de intangibilidade no § 4º. Do art. 60, deve-se entender que a rigidez formal de proteção estabelecida em favor dos conteúdos ali introduzidos, nomeadamente os respeitantes às duas acepções ora examinadas, não abrange apenas o teor material dos direitos da primeira geração, herdados pelo constitucionalismo contemporâneo, senão que se estende por igual aos direitos da segunda dimensão, a saber, os direitos sociais.[10]”
Por sua vez, Ingo Sarlet entende que os direitos fundamentais sociais estão protegidos como cláusulas pétreas implícitas, porque os direitos sociais são pressupostos elementares para o exercício dos direitos de liberdade.
Paulo Gustavo Gonet Branco, ao retratar a controvérsia, resume muito bem os fundamentos da corrente ampliativa:
“De outro lado, argúi-se que os direitos sociais não podem deixar de ser considerados cláusulas pétreas. No título I da Constituição (Dos Princípios Fundamentais) fala-se na dignidade da pessoa humana como fundamento da República e essa dignidade deve ser compreendida no contexto também das outras normas do mesmo Título em que se fala no valor social do trabalho, em sociedade justa e solidária, em erradicação da pobreza e marginalização e em redução de desigualdades sociais. Tudo isso indica que os direitos fundamentais sociais participam da essência da concepção de Estado acolhida pela Lei Maior. Como as cláusulas pétreas servem para preservar os princípios fundamentais, situando os direitos sociais como centrais para a sua idéia de Estado democrático, os direitos sociais não podem deixar de ser considerados cláusulas pétreas. No inciso IV do § 4º. Do art. 60, o constituinte terá dito menos do que queria, terá havido uma “lacuna de formulação”, devendo-se ali ler os direitos sociais, ao lado dos direitos e garantias individuais. A objeção de que os direitos sociais estão submetidos a contingências financeiras não impede que se considere que a cláusula pétrea alcança a eficácia mínima desses direitos”[11].
Portanto, é certo que os direitos sociais, a exemplo do direito à previdência social, são direitos fundamentais e, como tal, são dotados de efetividade, razão pela qual podem ser pleiteados judicialmente. Por serem direitos que demandam uma prestação positiva por parte do Estado, que pode ser uma ação normativa ou fática, sua efetividade diuturnamente encontra limites financeiros e estruturais. A limitação de recursos, por sua vez, torna esses direitos muito suscetíveis de restrições. Por isso, o tema das restrições aos direitos fundamentais é se suma importância. Um dos mecanismos de proteção à restrição dos direitos fundamentais são as cláusulas pétreas. Fundamentada na hermenêutica constitucional, a maior parte da doutrina entende que os direitos sociais estão protegidos pelas cláusulas pétreas, as quais servem de importante limitação à atuação estatal tendente a abolir tais direitos.
Referências bibliográficas:
Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 24ª. ed, Malheiros Editores, São Paulo, 2009.
Lenza, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 13ª. ed, Editora Saraiva, São Paulo, 2009.
Castro, Carlos Alberto Pereira de; Lazzari, João Batista. Manual de direito previdenciário. 10ª. ed, Editora Conceito Editorial, Santa Catarina, 2008.
Mendes, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio Mártires; Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direitos Constitucional, 4ª. ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2009.
[1] Idem, p. 560.
[2] Lenza, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 13ª. ed, Editora Saraiva, São Paulo, 2009, p. 758.
[3] Castro, Carlos Alberto Pereira de; Lazzari, João Batista. Manual de direito previdenciário. 10ª. ed, Editora Conceito Editorial, Santa Catarina, 2008, p. 48.
[4] Idem, p. 49
[5] Bonavides, Paulo. Curso de direito constitucional, 24ª. ed, Malheiros Editores, São Paulo, 2009, p. 607.
[6] Idem, p. 565
[7] Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 24ª. ed, Malheiros Editores, São Paulo, 2009, p. 579-590.
[8] Consoante o que dispõe o § 2º. do art. 5º. da Constituição Federal: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
[9] Assim dispõe o art. 60 da Constituição Federal: “Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (...) § 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) IV – os direitos e garantias individuais. (...)” (sem grifos no original)
[10] Idem, p. 655.
[11] Mendes, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio Mártires; Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direitos Constitucional, 4ª. ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2009, p. 258-9.
Procuradora Federal desde novembro de 2007. Ex-Advogada da Caixa Econômica Federal. Especialista em Direito Previdenciário e em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Federal - ESMAFE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Cristiane Castro Carvalho de. As cláusulas pétreas como instrumento limitador à restrição aos direitos sociais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 dez 2014, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42245/as-clausulas-petreas-como-instrumento-limitador-a-restricao-aos-direitos-sociais. Acesso em: 23 dez 2024.
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