1. Introdução:
Versa o presente artigo sobre breve reflexão acerca da distinção entre processo e procedimento e algumas das suas implicações práticas.
Trata-se, como é cediço, de diferenciação costumeiramente realizada nos estudos da teoria geral do processo e que se reveste, indubitavelmente, de razoável importância – embora não possa ou não deva ser levada ao extremo, eis que por vezes as expressões são utilizadas de forma indistinta ou imprecisa, notadamente em estudos não específicos do ramo do processo civil.
2. Das teorias processualistas. Distinções propostas entre processo e procedimento.
Assim como as diversas teorias que versam sobre o Direito Processual Civil tiveram total influência sobre a elaboração do conceito de ação, bem como das suas consequências, foram formuladas teorias que tratam da natureza jurídica do processo.
Dentre as principais teorias que explicam a natureza jurídica processual, três merecem relevo, tendo em vista que concernentes a momentos históricos diversos, a saber: a teoria imanentista, a teoria privatista e a teoria publicista.
Na fase imanentista, não se pode falar, com precisão, acerca da existência de uma “teoria do processo”. Por conseguinte, o processo era visto como procedimento.
Isso porque, para os imanentistas, inexistia autonomia entre o processo e o direito material. A ação nada mais era que uma reação a uma agressão ao direito material, e dele dependia.
Assim, na fase em questão, não havia distinção entre processo e procedimento, que se confundiam, tendo em vista os atos praticados para a efetiva proteção do direito material perante o Poder Judiciário, que era o procedimento, representavam o próprio processo.
Entre os séculos XVIII e XIX, considerando que o Estado não era suficientemente forte para intervir na vida dos seus cidadãos, tendo como base o direito romano, foi elaborada a teoria segundo a qual o processo era visto como contrato.
Para os defensores do processo como contrato, a submissão à tutela jurisdicional decorria de acordo entre as partes, que concordavam em sofrer os efeitos da demanda, acatando a decisão do julgamento.
A natureza jurídica de contrato do processo, que pode ser atribuída aos privatistas, não encontra respaldo nos princípios da jurisdição, haja vista que, como atualmente entendida, não podem as partes escapar da sujeição ao processo, bem como aos seus efeitos.
Na fase privatista, na busca de uma natureza jurídica que mantivesse a ótica de direito privado ao processo, mas buscando afastá-lo da natureza meramente contratual, assim como reconhecer que igualmente não pode ser considerada um delito, aos privatistas competiu igualmente atribuir a natureza de quase contrato ao processo.
Superadas as fases imanentista e privatista, segundo a doutrina publicista, que ainda é atualmente aceita, coube à Oskar Von Bullow distinguir a relação de jurídica processual da relação jurídica material.
A diferença nítida entre os dois planos permitiu ao doutrinador perceber que, em seus três elementos essenciais, a relação jurídica processual não se confunde com a relação jurídica material. Observou diferenças nos sujeitos que dela participam, dos seus objetos e de seus requisitos formais (para a relação processual chamou-os de pressupostos processuais, em consagrada nomenclatura até os dias atuais acolhida). A existência do processo de múltiplos e variados liames jurídicos entre o Estado-juiz e as partes, criando a esses sujeitos a titularidade de situações jurídicas a exigir uma espécie de conduta ou a permitir a prática de uma ato, representaria a relação jurídica processual. Essa relação jurídica é complexa e continuada – conforme será amplamente analisado em tópico próprio -, sendo composta de inúmeras posições jurídicas ativas (poderes, ônus faculdades e direitos) e passivas (sujeição e deveres e obrigações)[1].
A primeira fase da teoria publicista trouxe o processo como relação jurídica. Contudo, esta não a única natureza jurídica que foi atribuída ao processo pelos publicistas.
Para alguns publicistas, o processo deveria ser visto como situação jurídica. Neste contexto, o processo era uma “sucessão de situações jurídicas, capazes de gerar para os sujeitos deveres, poderes, ônus, faculdades e sujeições”, a fim de possibilitar o reconhecimento do direito.
Embora não seja recepcionado pela doutrina, alguns elementos trazidos por esta corrente ainda apresentam utilização atual.
Ademais, os publicistas trouxeram o processo como procedimento em contraditório. De acordo com os defensores da tese, a cada ato deve ser permitida a participação da parte contrária, em contraditório, de modo que este conjunto de atos se torne um processo.
De todas as teorias acima expostas, podem ser extraídos os elementos que fazem parte do processo, a saber: procedimento, natureza jurídica processual e contraditório.
Do primeiro ponto-de-vista, deve-se salientar que os atos de um processo são ligados entre si como elementos de um todo, como partes de uma unidade que se protrai no tempo. O princípio dessa ligação recíproca reside na identidade do escopo formal (o ato final do processo, a sentença), para atingir o qual cada ato traz a sua contribuição, embora os sujeitos que realizam os vários atos possam ler e geralmente tenham interesses e finalidades pessoais diferentes e em parte contraditórios (cada parte visa a uma sentença de conteúdo diferente e a elas se contrapõe a posição "neutral" do juiz). Assim, tais atos são como as fases de um caminho que se percorre para chegar ao ato final, no qual se identificam a meta do itinerário preestabelecido e ao mesmo tempo o resultado de toda operação.
O conjunto dos atos, na sua sucessão e unidade formal, tem o nome técnico de procedimento.
Do segundo ponto-de-vista, deve ser realçado que a pendência
do processo determina a existência de toda uma série de posições e de relações recíprocas entre os seus sujeitos, as quais são reguladas juridicamente e formam, no seu conjunto, uma relação jurídica, a relação jurídica processual[2].
Da simples análise dos elementos do processo acima citados, é possível concluir que, de forma diversa do que era asseverado na fase imanentista, que, o processo e o procedimento não se confundem.
Feita essa reflexão, importa trazer à baila a diferença entre processo e procedimento, e as duas conceituações, na lição de Humberto Theodoro Junior, qual seja: “Enquanto o processo é uma unidade, como relação processual em busca da prestação jurisdicional, o procedimento é a exteriorização dessa relação e, por isso, pode assumir diversas feições e modo de ser. A essas várias formas exteriores de se movimentar o processo aplica-se a denominação de procedimento”[3].
Demais disso, deve-se destacar que:
“Ainda que não seja possível confundir o procedimento como o processo, como feito à época imanentista, o certo é que o processo não vive sem o procedimento. Tanto essa constatação é verdadeira que os próprios defensores modernos da teoria da relação jurídica explicam que relação jurídica não é sinônimo de processo, sendo sempre necessária a presença de um procedimento, ainda que impulsionado pelos participantes da relação jurídica processual no exercício contínuo de suas posições jurídicas ativas e passivas. Para os defensores da tese de Fazzalari, igualmente o procedimento é indispensável, o que naturalmente também se verifica com a corrente doutrinária que conjuga essas duas teorias”[4].
Verifica-se, portanto, que as diferenças entre o processo e o procedimento são reconhecidas pelas mais atuais teorias aplicáveis ao direito processual.
3. AspectosPráticos.
Feita essa breve digressão, importa asseverar alguns aspectos práticos atinentes à diferenciação acima proposta.
Inicialmente, deve-se ressaltar um dos aspectos práticos já mencionados no item anterior, a saber: a presença do contraditório como intrínseco à existência do processo.
Enrico Tulio Liebmanassevera, em compreensão que parece corroborar com tudo o que já foi até aqui exposto, que o fenômeno que transforma o “procedimento” em “processo” é justamente o contraditório, tendo em vista que será este o elemento a definir de forma clara o que ele chama de relação jurídica processual, senão veja-se:
[...] deve ser realçado que a pendência do processo determina a existência de toda uma série de posições e de relações recíprocas entre os seus sujeitos, as quais são reguladas juridicamente e formam, no seu conjunto, uma relação jurídica, a relação jurídica processual.
A partir do momento de instauração do processo, o órgão investido de autoridade para presidi-lo e as partes nele empenhadas encontram-se, realmente, numa relação especial que cria, para cada um deles, reciprocamente, consequências jurídicas relevantes. Trata-se, é claro, de uma relação de direito processual, diferente pelo seu conteúdo das relações de direito substancial. [...]
Todas essas diferentes posições jurídicas subjetivas (autoridade, direitos subjetivos, sujeições, ônus) são agrupadas em um feixe na relação processual, representando a tessitura jurídica interna do processo.” (LIEBMAN, p. 40/41)
Percebe-se, assim, que, em verdade, emborao “processo” contemple em seu bojo a ideia de “procedimento”, carrega consigo caracteres mais ampliados, eis que, como dito, engloba, além das características deste, também a relação jurídica estabelecida em seu bojo, à qual se costuma denominar relação processual, ordinariamente consistente na triangulação entre partes e Estado-Juiz.
Além do exposto, deve-se asseverar outro aspecto atinente à distinção em tela, fato específico da ordem jurídica brasileira, consistente no tratamento constitucional das chamadas competências legiferantes, prevista no título III da Carta Política em vigor.
Com efeito, depreende-se da leitura do texto constitucional vigente que a competência para legislar sobre “processo” foi determinada com exclusividade para a União, senão veja-se:
“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;”
Por outro lado, a competência legiferante relativa a “procedimento” se insere no campo da competência concorrente, não sendo, portanto, privativa da União, conforme se depreende do texto constitucional abaixo transcrito:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
[...]
XI - procedimentos em matéria processual;
Pode-se concluir, frise-se, que a distinção em questão é também relevante em razão do tratamento constitucional das competências legislativas, tendo em vista que, como é cediço, a norma de direito processual porventura editada por Estado-membro da Federação estará eivada de inconstitucionalidade, uma vez que não terá observado a distribuição de competências previstas na Constituição Federal.
De outro lado, pode-se afirmar ser ao Estado-membro legislar sobre “procedimento” em matéria processual, em concorrência com a própria União, o que se faz presente, no mais das vezes, por intermédio das chamadas “Leis de Organização Judiciária”, que regulam os “procedimentos”.
4. Conclusão:
De todo o exposto, verifica-se que o estudo da diferenciação aqui analisada possui aspectos práticos que vão além do mero conceito ou compreensão dos institutos do processo e do procedimento, os quais podem, inclusive,escapar do específico âmbito de análise do direito processual civil.
5. Bibliografia:
LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil, Volume 1. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Método, 2011.
THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, Volume 1. 44. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 364.
[1] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Método, 2011. p. 49.
[2] LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil, Volume 1. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p. 39.
[3] THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, Volume 1. 44. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 364.
[4] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Método, 2011. p. 51.
Procuradora Federal - membro da Advocacia-Geral da União, em exercício na Procuradoria Federal Especializada Junto à Universidade Federal do Sul da Bahia. Graduação em Direito pela Universidade Católica de Salvador (2005), especialização em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia (2008) e especialização em Direito Público pela Universidade de Brasília (2013).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, Roberta Rabelo Maia Costa. Considerações sobre a distinção entre processo e procedimento à luz das teorias processualistas e suas implicações práticas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 dez 2014, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42249/consideracoes-sobre-a-distincao-entre-processo-e-procedimento-a-luz-das-teorias-processualistas-e-suas-implicacoes-praticas. Acesso em: 23 dez 2024.
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