Resumo: São comuns na praxe administrativa situações em que o Poder Público necessita celebrar avenças contratuais com outras entidades pertencentes à Administração, quando para uso de bens imóveis.
1. Introdução
Neste artigo serão estudadas duas modalidades de avenças contratuais para uso de imóveis frequentemente celebradas pelo Poder Público com outras entidades pertencentes à Administração. Serão abordados no presente trabalho os institutos jurídicos da cessão de uso gratuito de bem e do comodato. A escolha da forma ideal é polêmica, como será visto a partir de casos concretos que chegaram ao Poder Judiciário, bem como apreciados pelo Tribunal de Contas da União.
2. Desenvolvimento
A cessão de uso e instituto jurídico em que o Poder Público consente o uso gratuito de bem público por órgãos da mesma pessoa ou de pessoa diversa, devendo ser realizada por termo. Ela pode ser estabelecida por tempo certo ou indeterminado. Conforme bem cotejado por José dos Santos Carvalho Filho, há autores que limitam a cessão às entidades públicas; outros a admitem para entidades da Administração. Carvalho Filho, entretanto, entende que o uso pode ser cedido, também, em casos especiais, a pessoas privadas, desde que desempenhem atividade não-lucrativa que vise a beneficiar, geral ou parcialmente a coletividade.[1]
Comodato, segundo o Código Civil, art. 579, é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis. Não há, pois, onerosidade nessa modalidade contratual, que pode ter prazo determinado ou indeterminado. Nota-se, assim, que as figuras são semelhantes. A diferença reside, basicamente, na fonte dos institutos: um é próprio de direito público e o outro, do direito privado.
A doutrina administrativista defende que o Poder Público sempre deve preferir a adoção das formas regidas pelo direito público, mas não há, por outro lado, legislação que impeça o uso dos institutos de direito privado para regrar determinada situação. O que não se pode deixar de lado será o interesse público. José dos Santos Carvalho Filho[2] salienta que
A Administração também pode conceder o uso privativo de bem público por comodato, embora, repetimos, deva priorizar a concessão gratuita de uso de bem público, por ser instituto próprio de direito público. Se, mesmo assim, insistir no comodato, a Administração sujeitar-se-á às regras estatuídas no Código Civil sobre a matéria.
Suponhamos a seguinte hipótese: a celebração de avença contratual (comodato ou cessão de uso gratuito) entre empresa pública e autarquia. Sendo empresa pública, tem personalidade jurídica de direito privado, patrimônio próprio e autonomia administrativa e financeira. Sujeita-se, portanto, ao regime jurídico de Direito Privado, ressalvadas as hipóteses previstas na Constituição Federal.
As empresas públicas, por integrarem a Administração Pública Indireta, devem, todavia, observar os princípios constitucionais da impessoalidade, moralidade, eficiência e publicidade. Como bem ponderado por Lucas Rocha Furtado, a incidência das prerrogativas do Direito Público às empresas estatais somente se verifica nas hipóteses previstas em lei.[3]
Os bens que compõem o patrimônio de uma empresa pública são privados. Logo, a eles não são atribuídas as prerrogativas próprias dos bens públicos, como a imprescritibilidade, a impenhorabilidade, a alienabilidade condicionada, dentre outras. De acordo com o Código Civil, art. 98, são públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem. Elucidativa foi a explicação de José dos Santos Carvalho Filho[4], segundo o qual
A administração dos bens, incluindo conservação, proteção e os casos de alienação e oneração, é disciplinada pelos estatutos da entidade. Nada impede, porém, que em determinados casos a lei (até mesmo a lei autorizadora) trace regras específica para os bens, limitando o poder de ação dos administradores da empresa. No silencio da lei, entretanto, vale o que estipularem o estatuto da empresa e as resoluções emanadas de sua diretoria.
Em relação aos bens de empresas públicas, o tema suscita muita divergência e não há consenso algum. O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no seguinte sentido:
REsp 206.044 / ES - RECURSO ESPECIAL 1994/0030706-3
Relator Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, Relator para Acórdão Ministro MILTON LUIZ PEREIRA
Data do julgamento: 02/05/2000
Administrativo. Empresa Pública e Empresa Privada. Locação de Imóvel. C.F., arts. 37 e 173, § 1º. Lei 8.666/93 (arts. 1º e 54). Decreto-lei 200/67.
1. A empresa pública, de finalidade e características próprias, cujos bens são considerados públicos, sujeita-se aos princípios da Administração Pública, que são aplicáveis para as suas atividades fins, bem distanciado do Direito Privado. A rigor, a sua função administrativa consiste no dever do Estado, com regime jurídico-administrativo, com regras próprias e prevalecentemente de Direito Público. Os contratos que celebra têm por pressuposto lógico o exercício de função pública. Soma-se que a empresa pública está inserida no capítulo apropriado à Administração Pública (art. 37, C.F.).
2. A remuneração pelo uso de bem público não configura aluguel e o disciplinamento do ajuste, firmado entre a empresa pública e a particular, não se submetem às normas ditadas à locação comum, e sim do Direito Público. Forçando, caso admitida a locação, mesmo assim, não escaparia dos preceitos de Direito Público (arts. 1º e 54, Lei 8.666/93).
3. Recurso provido.
O caso envolvia a Infraero e uma empresa privada. O Ministro Relator Humberto Gomes de Barros ficara vencido. No seu voto, aduziu que o tema envolve-se no direito privado. Para o Ministro, nos termos do art. 173 da Constituição, a Infraero, sendo empresa privada, rege-se pelos preceitos do Direito Privado.
A situação acima relatada tinha a peculiaridade de a União, valendo-se do Decreto-lei nº 9.760/46, ter outorgado a posse das instalações da estação de passageiros do aeroporto de Vitória à Infraero. Esta entregou o imóvel a particulares, a título de permissão de uso. Para ficar mais claro, tratava-se de um bem público da União cedido, para efeito de administração, à Infraero.
A tese vencedora do julgado deixou clara a situação quando, questionada pelo Ministro Humberto Gomes de Barros acerca de precedentes referentes ao Banco do Brasil da não utilização do Decreto-lei nº 9.760/46, explanou que imóveis do Banco do Brasil pertencem a este e, não, à União. Nos dizeres do Ministro Demócrito Reinaldo, que acompanhou a corrente que venceu, “caso pertencesse à União a decisão teria que ser outra”.
Ao esmiuçar os votos daquele julgado, nota-se que não se trata, simplesmente, de generalizar os bens de empresa pública tipificando-os como públicos, como se tem ao ler a ementa do REsp nº 206.044 / ES. Aprofundando o estudo sobre o entendimento da Corte acerca do tema, no REsp nº 55.276/ES o sumário ficou menos genérico e assim dispôs:
REsp 55276 / ES - RECURSO ESPECIAL 1994/0030706-3
Relator Ministro Edson Vidigal
Data do Julgamento: 25/02/1997
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. CONTRATO FIRMADO PELA INFRAERO COM EMPRESA PRIVADA, ENVOLVENDO IMÓVEL DE PROPRIEDADE DA UNIÃO FEDERAL. NATUREZA DO CONTRATO: DIREITO PÚBLICO. LEGISLAÇÃO APLICÁVEL À ESPÉCIE: DEL 9.760/1946, E NÃO A LEI 6.649/1979. PRECEDENTES. RECURSO IMPROVIDO.
1. Tratando-se de contrato envolvendo imóvel de propriedade da União Federal, não ha que se falar em aplicação da lei 6.649/1979, mas sim do Dec-lei 9.760/1946.
2. Recurso conhecido, mas improvido.
Com efeito, se o bem é de propriedade da União, a cessão será regida pelo Decreto-lei nº 9.760/46. O Ministro Edson Vidigal aduziu que, “tratando-se de cessão de imóvel de propriedade da União Federal, o contrato – não importando quem o tenha firmado – será regido pelo Decreto-lei nº 9.760/46”.
Mostra-se relevante apontar, ainda nesse tema de avenças contratuais no âmbito administrativo, a análise acerca da afetação ou não da área ao serviço público. Quando não houver afetação do bem ao fim específico de serviço público, o regramento há que ser pautado pelo direito privado.[5] Rechaçando esse entendimento, José dos Santos Carvalho Filho sustenta que:
(...) nem se o bem fosse efetivamente público ( e os de empresas públicas não o são) haveria objeção para a relação locatícia. Por outro lado, se a entidade administrativa é privada, com mais razão deve regular-se pelas normas aplicáveis às empresas privadas quanto a direitos e obrigações civis e comerciais, como registra o art. 173, § 1º, inc. II, da Lei Fundamental. Não obstante, repetimos, não é pacífico o entendimento dos especialistas sobre a matéria.
O Tribunal de Contas da União já se manifestou em relação à utilização indevida do contrato de comodato no Acórdão nº 1.817/2004-1ª Câmara. Não se pode, contudo, aplicar o entendimento da Corte, indiscriminadamente, em qualquer caso que envolva empréstimo de imóveis entre entidades da Administração Pública.
Naquela oportunidade o caso submetido ao Tribunal de Contas da União dizia respeito à cessão de imóvel entre a Funasa e Estados e Municípios, ou seja, tratava-se de uma fundação pública que cedia o uso de seus imóveis a pessoas jurídicas de direito público. Em outras palavras, era cabível a utilização do instituto de direito público, em razão de as partes envolvidas serem de direito público, ou melhor, em razão da parte cedente ser pessoa jurídica de direito público.
Foi bem enfrentada, naquele acórdão, a questão da legislação aplicável à situação, pois não há instrumento normativo que regule a cessão de imóveis para bens das fundações públicas. Em outras palavras, o Decreto-lei nº 9.760, de 6 de setembro de 1946, dispõe sobre os bens imóveis da União. Seu art. 64 vem tratar da cessão dos bens da União: esta, enquanto pessoa jurídica de direito público interno, cedente de seus imóveis. O regramento é específico para esta pessoa jurídica de direito público interno. Tanto o é que o art. 79, caput e parágrafos, trata da entrega dos imóveis da União para uso da Administração Pública Federal direta e indireta.
A interpretação analógica empregada pelo Tribunal de Contas da União no Acórdão nº 1.817/2004-1ª Câmara para utilizar o Decreto-lei nº 9.760/46 à cessão de imóveis da Funasa fazia sentido, pois a entidade cedente, repita-se, era de pessoa de direito público.
Quando, contudo, quem cede o imóvel é uma pessoa jurídica de direito privado, a exegese é diferente. Em sendo bem particular, cabe à própria entidade a disciplina sobre a gestão de seu patrimônio.
3. Conclusão
Sabendo que os institutos jurídicos da cessão de uso gratuito e do comodato são figuras assemelhadas, pois no primeiro o Poder Público consente o uso gratuito de bem público por órgãos da mesma pessoa ou de pessoa diversa por termo e o segundo representa o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis, é frequente na Administração a dúvida sobre a avença contratual que melhor vele pelo interesse público. O distintivo entre os dois refere-se ao ramo do direito: enquanto a cessão advém do direito público, o comodato vem do direito privado.
O assunto é extremamente polêmico, havendo grande de divergência acerca do instituto adequado. O que se mostra relevante para a definição do ajuste mais apropriado é verificar as partes envolvidas, se de direito público ou se direito privado.
4. Referências Bibliográficas
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 13 ed. São Paulo: Lúmen Juris, 2007.
FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito Administrativos. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
[1] In Manual de Direito Administrativo. 13 ed. São Paulo: Lúmen Juris, 2007, p. 883.
[2] Ob. cit., p. 886.
[3] In Curso de Direito Administrativos. Belo Horizonte: Fórum, 2007, pág. 203.
[4] Ob. cit, p. 391.
[5] Confira o entendimento do STJ assentado no REsp nº 41549/ES, segundo o qual os bens de empresa pública afetados à sua finalidade não podem ser utilizados senão dentro das regras de Direito Público.
Procuradora Federal em Brasília - DF
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Teresa Resende. Um comparativo entre os institutos jurídicos do comodato e da cessão de uso Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42261/um-comparativo-entre-os-institutos-juridicos-do-comodato-e-da-cessao-de-uso. Acesso em: 23 dez 2024.
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