A palavra “constitucionalismo” não possui, nem de longe, um significado uníssono. Não se quer dizer, com isso, que se trate de instituto polêmico, que encerre grandes celeumas. Na verdade, o termo “constitucionalismo” pode ser tomado em diversas acepções porque, em cada época ou contexto histórico, ele é visto sob uma perspectiva diferente. A sua essência, contudo, não se modifica, de modo que ele preserva sempre a sua identidade, a despeito dos diversos enfoques dados. É sobre esse assunto que se debruça esta breve reflexão.
“Querer dar a um povo a priori uma constituição a priori, até quando ela seja em seu conteúdo mais ou menos racional, é uma fantasia que não tem em conta o elemento que faz dela mais do que um ser de razão. Cada povo tem, por conseguinte, a constituição que lhe convém e se lhe adequa”[1].
A passagem acima, bastante antiga, bem reflete o papel de uma constituição para determinado Estado. Ela precisa, pois, estar contextualizada com cada momento histórico, com a realidade da sociedade da época, refletindo seus projetos, anseios, enfim, seu projeto e ideal de Estado a preservar e/ou construir, não podendo ser simplesmente estabelecida aprioristicamente, a despeito do meio em que se insere e pretende reger.
Como está intimamente – aliás, absolutamente – ligado à noção de constituição, o termo constitucionalismo segue essa mesma linha de pensamento. Em outras palavras, pode-se dizer que esse termo ganhou diversas acepções ao longo do tempo porque foi visto sob um ângulo diferente em cada momento da história, acompanhando a realidade, cuja conjuntura igualmente se modificava à medida do tempo.
Com efeito, “o processo de afirmação e reconstrução do Estado (Constitucional) de Direito, que nasceu como um Estado Liberal de Direito, revela que se trata de uma trajetória gradual, marcada pelo surgimento de outras experiências constitucionais que exerceram sua influência e são dignas de nota, seja pelas suas peculiaridades, seja pela influência gerada no que diz com a reconstrução do próprio constitucionalismo”[2].
Numa definição bastante simplória, Leib Soibelman afirma que constitucionalismo é uma “doutrina política que sustenta ser a Constituição o melhor meio de governar democraticamente”[3]. Essa afirmação não deixa de ser verdadeira, posto que, de fato, a idéia de constitucionalismo desenvolve-se no sentido da consagração de um Estado Democrático de Direito. Esse conceito, todavia, se mostra bastante limitado, porque a idéia que nos traz o constitucionalismo se estende para além disso.
No século XVIII foi quando efetivamente surgiu, em toda a sua essência, a idéia de constitucionalismo. Fala-se, então, do chamado constitucionalismo moderno, que representava uma técnica de limitação do poder com a finalidade de garantir certos direitos aos cidadãos. O constitucionalismo, nessa perspectiva, portanto, visava coibir o poder arbitrário e autoritário, limitando seu poder de ingerência sobre a esfera dos direitos dos cidadãos e fazendo prevalecer os direitos fundamentais. As constituições escritas, nesse ponto, destacaram-se como instrumentos para conter esse poder arbitrário. Essa foi justamente a época do Iluminismo e do Liberalismo, concretizado como uma contraposição ao absolutismo das Monarquias, por meio do qual se elegeu o povo como titular legítimo do poder.
Assim, “a Constituição legítima, jurídica, verdadeira, era aquela que se curvava ao dogma – então no seu momento matinal – do Estado de Direito do liberalismo. O constitucionalismo era, pois, a expressão sistematizada do conceito de democracia liberal ou constitucional. Era, também, o movimento que a economia capitalista necessitava para garantir a sua expansão”[4].
Essa concepção de constitucionalismo liberal, contudo, perdeu posteriormente espaço para a noção de constitucionalismo social. Viu-se que o liberalismo, marcado pelo absenteísmo estatal nas relações privadas, gerava concentração de renda e exclusão social, o que fez com que o Estado passasse a ser chamado para evitar determinados abusos e limitar o poder econômico.
Hoje, o constitucionalismo contemporâneo avança ainda mais na garantia de direitos. Para além de direitos de primeira e segunda geração, surge agora a necessidade de proteção aos direitos de fraternidade ou solidariedade (direitos de terceira geração). Fala-se em “totalitarismo constitucional”, na medida em que os textos vêm carregados de forte conteúdo social, estabelecendo normas programáticas. Essa perspectiva, inclusive, foi consagrada pela Constituição de 1988.
A partir do século XXI, contudo, a doutrina passou a desenvolver um novo enfoque em relação ao constitucionalismo, a que se denominou neoconstitucionalismo (ou constitucionalismo pós-moderno ou pós-positivismo).
O pós-positivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas. A interpretação e aplicação do ordenamento jurídico hão de ser inspiradas por uma teoria de justiça, mas não podem comportar voluntarismos ou personalismos, sobretudo os judiciais. No conjunto de idéias ricas e heterogêneas que procuram abrigo neste paradigma em construção incluem-se a atribuição de normatividade aos princípios e a definição de suas relações com valores e regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica constitucional; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade humana”.[5]
Busca-se, a partir de então, não apenas limitar o poder político. O objetivo é, acima de tudo, buscar a eficácia da Constituição, concretizando os direitos fundamentais. A Constituição, nessa visão, é vista como um valor em si, cujas normas são hierarquicamente superiores, não apenas pela sua forma, mas principalmente pelo seu valor. Acredita-se, portanto, na força normativa da Constituição, apregoada por Konrad Hesse.
Diante dessas considerações, portanto, vê-se que a palavra constitucionalismo possui vários significados possíveis. Não por ser uma palavra ambígua ou polêmica, mas sim porque cada significado precisa ser analisado sob a perspectiva histórica em que se vê inserido. E não poderia ser diferente, haja vista que a Constituição e, por conseguinte, o constitucionalismo, não podem ser compreendidos à margem da sociedade que lhes é contemporânea.
REFERÊNCIAS:
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/7547>. Acesso em: 13 jun. 2011.
HEGEL, George Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Tradução Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. 1 ed. 2ª tir. Brasília: Brasília Jurídica, 2002.
SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de direito constitucional / Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni, Daniel Mitidiero. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
SOIBELMAN, Leib. Enciclopédia do Advogado. 3. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1981.
[1] HEGEL, George Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Tradução Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 251.
[2] SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de direito constitucional / Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni, Daniel Mitidiero. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 52.
[3] SOIBELMAN, Leib. Enciclopédia do Advogado. 3. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1981, p. 89.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. 1 ed. 2ª tir. Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p. 108.
[5] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/7547>. Acesso em: 13 jun. 2011.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROS, Larissa Suassuna Carvalho. O constitucionalismo e suas acepções Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42313/o-constitucionalismo-e-suas-acepcoes. Acesso em: 23 dez 2024.
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