Resumo: Este artigo busca definir o alcance da expressão “competência específica”, empregada em alguns diplomas legais, tendo em vista a dificuldade por parte dos operadores de direito saber se se trata de competência passível de delegação ou não.
1. Introdução
Tendo em vista a dificuldade de interpretar as expressões adotadas nos diplomas legais e outros atos normativos, apresenta-se o presente artigo que estuda, de modo breve e sucinto, acerca da abrangência do termo “competência específica”. Partiu-se de uma fonte: as expressões contempladas na Constituição Federal para se elucidar a possível interpretação para tal locução. Considera-se o tema relevante, visto que a exegese pode desaguar na viabilidade de delegação ou não.
2. Desenvolvimento
A competência é elemento que não se presume: sua fonte é a lei (esta, em sentido lato). Ao administrador somente é dado fazer o que a lei autoriza e determina. Em não existindo definição da competência, aplica-se o art. 17 da Lei nº 9.784/1999, o qual dispõe que o processo se iniciará pela autoridade de menor grau hierárquico.
A competência tem as seguintes características:
a) a irrenunciabilidade: o interesse público é indisponível;
b) o exercício obrigatório: se a norma imputou ao agente determinada ação, a inércia representará uma inevitável responsabilização;
c) intransferibilidade: não obstante a possibilidade de delegação, esta via é excepcional;
d) imodificabilidade: a competência é estabelecida por lei e somente por esta operam-se as eventuais alterações. A simples vontade do agente inviabiliza a modificação da competência;
e) imprescritibilidade: o não uso não extingue a competência.
Sem embargo de tais características, existem formas de transferência de parcelas de atribuições conferidas a um determinado agente. É o caso da delegação e da avocação. Na primeira hipótese, a autoridade transfere a outrem uma determinada competência para exercer certos encargos originariamente conferidos ao delegante. Na segunda, um superior hierárquico chama para si parcela de atribuições de um subordinado. As duas formas são, como já dito, execpcionais, ou seja, somente se dão por motivos relevantes e devidamente justificados.
Na legislação o termo “competência específica” aparece em alguns preceitos legais para fixação de atribuições por parte de autoridades. Cite-se, por exemplo, o art. 17[1] da Lei nº 9.784/1999. É de se notar que, em geral, as expressões “competência exclusiva”, “competência privativa”, “competência comum”, “competência concorrente” são mais empregadas pelo legislador.
Uma possível saída para se compreender o que representaria o vocábulo “específica” seria o de assimilar que se trata do rol de atribuições do órgão ou agente da Administração delineado, discriminado, especificado na própria norma definidora da competência. Seria, pois, o antônimo do termo “genérica”, que representaria um conjunto de atribuições não discriminadas pela norma definidora da competência. Tais expressões seriam, portanto, autoexplicativas.
O legislador, por vezes, não é suficientemente técnico. Esse mal dá ensejo a grandes dificuldades hermenêuticas a serem enfrentadas pelos operadores de direito. Um exemplo disso é a competência constitucional delimitada nos arts. 21 e 22. Apesar de simplesmente falar “compete à União”, sem nada adjetivar ou qualificar, a Constituição Federal quis tratar de uma competência exclusiva quando delimitou o rol de atribuições contempladas no art. 21. Nela nada se excepcionou.
Já no art. 22, quando a Constituição empregou o termo “privativamente”, o que poderia parecer indelegável pela própria definição da expressão[2], sofreu restrição sensível em seu parágrafo único, para possibilitar a delegação.
O termo “específica”, seguindo o que ocorreu na Constituição Federal, poderia significar “exclusiva” ou “privativa” (esta, com possibilidade de delegação). Ainda que nada empregasse, ou seja, ainda que não houvesse qualquer adjetivo na delimitação da competência, a mesma consequência poderia advir, não obstante o clássico princípio hermenêutico verba cum effectu sunt accipienda (a lei não contém palavras inúteis).
Assim, seria cabível e razoável compreender que a “competência específica”, empregado em alguns diplomas legais, se inclina para a divisão de competências, ou competência compartilhada. Agora se houver extrapolação de competência, com a consequente ilegalidade, é outro terreno.
O que existe de certo e inafastável é que a edição de atos de caráter normativo, a decisão de recursos administrativos e as matérias de competência exclusiva do órgão ou autoridade não podem ser objeto de delegação (art. 13 da Lei nº 9.784/1999).
O estudo dos mais variados Regimentos Internos de órgãos e entidades públicas revela a utilização maciça do compartilhamento de competências, ou seja, várias autoridades desempenhando múltiplas atribuições. Isso se dá em razão da necessidade de pulverização das diversas funções desempenhadas pelos agentes. A concentração de encargos em uma mesma pessoa não vai de encontro ao princípio da eficiência.
Atento às vicissitudes administrativas rotineiras, o próprio legislador possibilitou a delegação da competência por motivos de conveniência, em razão de circunstâncias de índole técnica, social, econômica, jurídica ou territorial (art. 12 da Lei nº 9.784/1999).
Nessa ordem de ideias, até mesmo o princípio da segregação de funções poderia ser lembrado e aplicado, segundo o qual nenhum agente deve acumular todos os encargos de uma determinada operação. A divisão de funções possibilita o controle cruzado.
A “competência específica” poderia ser encarada como uma competência própria e não exclusiva. Em se tratando de distribuição interna de competências, é possível inferir que há uma grande margem de liberdade na definição de atribuições entre os diversos órgãos. Seguindo a linha do que foi construído na Constituição Federal, poderia se encarar a “competência específica” como sendo privativa (delegável) e não exclusiva, que é a indelegável.
Assim, uma interpretação cabível é a de se encarar que na distribuição interna de competências, onde os efeitos se operam apenas internamente, ao administrador foi dada a possibilidade de definir quais encargos seriam desempenhados por determinados agentes e outras atribuições por outros representantes.
Ultrapassada a fase de normatização, fixada está a competência. Se esta foi tida como exclusiva, dentro da discricionariedade administrativa, não haveria espaço para delegação (tudo em conformidade com a Lei nº 9.784/1999, art. 13, inciso III).
Em relação ao citado art. 13 da Lei nº 9.784/1999, compreende-se que existem duas normas específicas (incisos I e II) e uma geral (inciso III). Ainda que determinado órgão ou entidade estabeleça uma norma que, aparentemente, não seja exclusiva, se disser respeito a atos de caráter normativo ou à decisão de recursos administrativos, não haveria possibilidade de delegação, por força de disposição legal específica.
Para ilustrar melhor a questão, é possível citar a Instrução Normativa nº 03, do Secretário de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, de 15 de outubro de 2009, que altera a Instrução Normativa nº 02, de 30 de abril de 2008, prevendo a possibilidade de delegação de competência.
§ 3º A contratação deverá ser precedida e instruída com plano de trabalho, aprovado pela autoridade máxima do órgão ou entidade, ou a quem esta delegar competência, e conterá, no mínimo:
I - justificativa da necessidade dos serviços;
II - relação entre a demanda prevista e a quantidade de serviço a ser contratada;
III - demonstrativo de resultados a serem alcançados em termos de economicidade e de melhor aproveitamento dos recursos humanos, materiais ou financeiros disponíveis.
3. Conclusão
Inclinamos nesse artigo para firmar a compreensão pela possiblidade de se interpretar o termo “competência específica” empregado em alguns diplomas legais como sendo uma competência compartilhada. A expressão poderia ser encarada como “privativa”, delegável, portanto, e não “exclusiva” (indelegável), tal como ocorreu na Constituição Federal de 1988.
4. Referências Bibliográficas
CANOTILHO, J. J. GOMES LEONCY, Léo. FERREIRA MENDES, Gilmar Ferreira e outros. Comentários À Constituição do Brasil - Série Idp. São Paulo. Saraiva, 2008.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva. 10 ed., 2008.
[1] Inexistindo competência legal específica, o processo administrativo deverá ser iniciado perante a autoridade de menor grau hierárquico para decidir.
[2] Exclusivo, especial, individual, reservado, restrito, único (...). Confira in Dicionário Houaiss: sinônimos e antônimos – 2. ed. – São Paulo: Publifolha, 2008, p. 660.
Procuradora Federal em Brasília - DF
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Teresa Resende. Da "competência específica" Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42354/da-quot-competencia-especifica-quot. Acesso em: 23 dez 2024.
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