RESUMO: as recentes propostas de reforma política podem esbarrar nos limites do poder constituinte derivado, razão pela qual se cogita a convocação do povo para que por meio de plebiscito ou referendo se busque afastar a salvaguarda constitucional.
Palavras-chave: Constituição Federal, poder constituinte, plebiscito, referendo, limitações implícitas.
1. Introdução
A importância dos limites ao poder de reforma do poder constituinte derivado é, em parte, decorrência da forma extensa e analítica da Constituição Federal de 1988. Com um minucioso texto de 250 artigos e inúmeros parágrafos e alíneas, muitos dos quais tratam de questões que não são materialmente constitucionais e poderiam ser tratadas por legislação ordinária, é inevitável que muitas inovações legislativas acabem passando pela necessária modificação da Constituição, o que, por sua vez, gera a proliferação de emendas constitucionais – mais de 80 até o momento.
Como se sabe, o Congresso Nacional tem o poder de alterar a Constituição Federal por meio de emenda constitucional, mas não pode fazê-lo de forma ilimitada, devendo respeitar as regras impostas pelo constituinte originário.
Tais limitações, no entanto, tornam mais dificultosa (ou, em alguns casos, impossível), as reformas políticas pretendidas e desejadas por parte da população e dos legisladores, em especial nos últimos anos. Por isso, cogita-se a convocação do povo (do qual, afinal, todo poder emana), por meio de plebiscito ou referendo, para que se possibilite a flexibilização ou alteração, ao menos temporária, de tais limitações.
É de tal possibilidade que trata o presente artigo.
2. Dos limites ao poder constituinte derivado
Entre as muitos limites constitucionais ao poder constituinte derivado, três classes são especialmente relevantes para o escopo do presente artigo.
Os limites formais estão contidos em especial no art. 60, incisos I a III, e seus parágrafos 2º, 3º e 5º:
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;
II - do Presidente da República;
III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.
[...]
§ 2º - A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.
§ 3º - A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem.
[...]
§ 5º - A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.
Os limites materiais, ou clausulas pétreas, estão descritos no art. 60, §4º:
§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
Por fim, e considerando que os limites chamados pela doutrina de temporais e circunstancias não se mostram especialmente relevantes ao presente trabalho, vale mencionar as chamadas limitações implícitas ao poder de reforma, pois é neles que reside grande parte da controvérsia.
As limitações implícitas (também chamadas de “cláusulas pétreas implícitas”) são reconhecidas por grande parte da doutrina, embora sua extensão seja objeto de debate. Elas consistem naquelas limitações que, embora não constem de foram expressa no texto constitucional, decorrem naturalmente do sistema por ele instituído.
Entre as diversas limitações implícitas citadas pela doutrina, Nelson de Souza Sampaio (segundo lição de José Afonso da Silva¹) cita três classes de especial interesse para a discussão: o titular do poder constituinte (ou seja, o povo), o titular do exercício do poder reformador (ou seja, o congresso nacional), e as limitações formais ao poder constituinte reformador.
3. Da reforma política e seus limites
A reforma política não consiste numa proposta única, mas em variadas ideias defendidas por diferentes partidos e movimentos sociais. São mencionadas, entre outras ideias, o voto distrital, o voto em lista fechada, a criação de uma constituinte exclusiva para dar maior amplitude e celeridade aos trabalhos, e assim por diante.
Em primeiro lugar, cumpre ressaltar, como muitos juristas fizeram ante tais propostas, que a reforma política pode ser feita, em princípio, sem qualquer necessidade de convocação de constituinte exclusiva para tal fim. Como acima demonstrado, a Constituição Federal pode ser alterada regularmente pelo Congresso Nacional por meio de emendas. A necessidade de convocação de uma constituinte só se faz necessária se houver a intenção de se alterar os limites ao poder constituinte derivado.
Sem entrar em particularidades sobre cada proposta de reforma política, podemos dizer, em tese, que alguns dos temas discutidos na reforma política poderiam violar a garantia do voto direito (podemos citar, como exemplo, o que os modelos de voto em lista fechada e “distritão” foram rejeitados pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania em 2011²) e, especialmente, as limitações implícitas acima explanadas, em especial as limitações formais (caso pudessem os novos constituintes alterar a constituição por maioria absoluta, por exemplo) e o titular do exercício do poder reformador (caso se pretendesse que as alterações não fossem feitas pelo próprio congresso).
Passamos a discutir, portanto, se o povo, por meio de referendo ou plebiscito, poderia afastar tais limites.
4. O referendo e o plebiscito como forma de alteração dos limites do poder constituinte derivado
Como claramente demonstrado no parágrafo único art. 1º da Lei Maior, “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”.
Logo se vê, portanto, a possibilidade de manifestação direta do povo. Isso se dá por meio de institutos como o referendo, o plebiscito, a iniciativa popular e a ação popular, sendo os dois primeiros o foco do presente artigo.
Poderia o povo, portanto, como titular de todo o poder, alterar os limites do poder constituinte derivado?
O tema é controverso na doutrina. Prevalece, no entanto, que embora todo o poder emane do povo, isso não significa a possibilidade de alteração dos limites do poder constituinte derivado. É a corrente que adotamos, pelas razões que passamos a expor.
Em primeiro lugar, cabe ao Congresso Nacional convocar plebiscito ou referendo. Para convocar um plebiscito ou referendo capaz de alterar as cláusulas pétreas, é evidente que tal projeto teria que ser objeto de deliberação antes de ser votado. No entanto, tal proposta aprestaria inevitável tendência a abolir as cláusulas pétreas, não podendo nem ao menos ser deliberada, por força do art. 60, § 4º, da Constituição Federal, o que consiste um sério obstáculo de ordem formal.
Em segundo lugar, para os que acreditam na inexistência de limites implícitos, caberia, ao menos, possibilitar a alteração dos limites formais, já que não estão expressamente incluídos no art. 60, § 4º. Tal possibilidade poderia parecer menos agressiva ao ordenamento por preservar os direitos e garantias individuais, o voto, e assim pro diante. No entanto, a inexistência de tais limites implícitos permitiria ao constituinte derivado que conferisse a si mesmo poderes maiores do que os que lhe foram conferidos pelo constituinte derivado, tornando inútil o próprio conceito de limitações ao poder constituinte derivado, que se igualaria ao originário.
Cabe ainda ressaltar que um estudo sistemático da Constituição Federal demonstra que não foi a intenção do constituinte originário tal flexibilização das normas fundamentais sob o simples pretexto de participação do povo. Veja-se, por exemplo, as enormes dificuldades pelo texto constitucional à proposição de lei de iniciativa popular.
Por fim, não é cabível estudar a questão sem considerar as consequências práticas que tal tese poderia causar. As minorias ficariam sob o completo jugo das maiorias, tanto no Congresso Nacional – onde a Constituição passaria a ser emendada por maioria, por exemplo – quanto fora dele, com maiorias sendo capazes de extinguir os direitos e garantias individuais das minorias sem impedimento constitucional.
Estariam desprotegidos, portanto, não só o pluralismo político, mas a dignidade da pessoa humana, além dos direitos e garantias fundamentais e demais cláusulas pétreas. Em suma, os próprios fundamentos da Constituição Federal.
5. Conclusão
Por meio do presente trabalho, visamos demonstrar que a reforma política é possível no nosso ordenamento, contanto que sejam respeitados os limites do poder constituinte derivado. Não se mostra possível o enfraquecimento ou destruição de tais limites pela simples manifestação de vontade de uma maioria, uma vez que esses limites servem de salvaguarda aos próprios fundamentos da Constituição Federal, sem os quais o ordenamento jurídico como um todo não se sustenta.
NOTAS:
¹ SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27a. Ed. – São Paulo: Malheiros, 2006, p. 442.
² Altafin, Iara Guimarães. CCJ rejeita voto em lista fechada e 'distritão' Agência Senado. Publicado em 06/07/2011. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/noticias/Especiais/reformapolitica/noticias/ccj-rejeita-voto-em-lista-fechada-e-distritao.aspx>. Acesso em: 9 dez. 2014.
REFERÊNCIAS:
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado / Pedro Lenza. – 16. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo : Saraiva, 2012.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27a. Ed. – São Paulo: Malheiros, 2006.
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997.
Procurador Federal em exercício na Procuradoria Geral Federal de Santos-SP, órgão da Advocacia-Geral da União (AGU)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AVIAN, Eduardo. Dos limites do poder constituinte derivado e de sua alteração por plebiscito ou referendo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42375/dos-limites-do-poder-constituinte-derivado-e-de-sua-alteracao-por-plebiscito-ou-referendo. Acesso em: 23 dez 2024.
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