RESUMO: O direito intertemporal não costuma ser tratado com afinco pelos operadores de direito. Todavia, os institutos da recepção e da inconstitucionalidade superveniente apresentam-se essenciais na discussão dos poderes que, efetivamente, são conferidos ao poder constituinte originário, diante da vedação, no direito comunitário, do efeito cliquet (vedação do retrocesso).
Palavras-chave: Direito Constitucional Intertemporal – Não Recepção – Inconstitucionalidade Superveniente – Constitucionalidade Superveniente – Efeito Cliquet – Poder Constituinte Originário – Direito Comunitário.
Como nossa Constituição já se aproxima da terceira década de vigência, muitos são os que olvidam cuidar do tema envolvendo a intertemporalidade do direito constitucional, notadamente em suas relações com as normas que foram prolatadas sob a égide de Constituições anteriores.
A bem da verdade, diante das transformações por que vem passando o Supremo Tribunal Federal, com o escopo de otimizar a tramitação processual sem prejudicar o exercício justo da atividade jurisdicional, muitas das questões envolvendo o Direito Constitucional Intertemporal já se encontram resolvidas no contexto jurídico contemporâneo.
De qualquer modo, mister se faz destacar que nesta seara evidenciam-se alguns instituto de relevo, tais como a teoria da recepção e a inconstitucionalidade superveniente.
Pelo instituto da recepção, todas as normas anteriores à promulgação do Texto Constitucional, se com ele compatíveis, permanecem em vigor por não o desafiarem materialmente. Ao contrário, afigurando-se contrárias aos novos cânones constitucionais, consideram-se revogadas. Essa revogação pode se dar tanto de modo expresso quanto implícito, residindo nesta última hipótese grande desafio ao operador do direito. Isto porque a interpretação da norma deve ocorrer de forma sistêmica, apurando-se o conjunto de bens jurídicos por ela tutelados, para somente então se aferir eventual conflito material relativo ao seu conteúdo.
Portanto, condição imprescindível para que ocorra a recepção da norma jurídica pela nova ordem constitucional é que não exista incompatibilidade de conteúdos, de modo que a diferença de forma não repercute, de modo algum, no que atine à continuidade de sua vigência. Cita-se, como exemplo, a manutenção de vigência do Código Tributário Nacional que, embora originalmente lei ordinária, foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 com natureza de lei complementar, haja vista a exigência disposta no art. 146, inciso III, do Texto Maior.
Não se pode olvidar que, para que a norma seja recepcionada, além de convergir para o conteúdo da nova Constituição, deve necessariamente se apresentar formal e materialmente compatível com a Constituição Federal anterior, sob a égide da qual foi editada. Nesse sentido, já decidiu o Supremo Tribunal Federal que eventual alinhamento da nova lei com o novo Texto Constitucional não afasta o vício de inconstitucionalidade anteriormente estabelecido:
EMENTA Agravo regimental no recurso extraordinário. Imposto sobre operações de circulação de mercadorias e prestação de serviços de transporte aéreo de cargas. Inconstitucionalidade da Lei estadual nº 8.820. Fatos imponíveis ocorridos após a edição da Lei Complementar nº 87/96. Impossibilidade de reputar superada a mácula da inconstitucionalidade. 1. A Corte de origem aplicou adequadamente o entendimento constante da ADI nº 1.089/DF. As razões de decidir extraídas do referido precedente são suficientes para demonstrar que a Corte Suprema não permite que o Estado-membro crie uma nova hipótese de incidência sem o amparo da norma geral editada pela União. 2. A aplicação do precedente não precisa ser absolutamente literal. Se, a partir do julgado, for possível concluir um posicionamento acerca de determinada matéria, já se afigura suficiente a invocação do aresto para afastar a vigência da norma maculada pelo vício da inconstitucionalidade, já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal. 3. O suposto “alinhamento” superveniente das normas correlatas às balizas constitucionais não supre o vício da inconstitucionalidade da norma promulgada em desacordo com a ordem constitucional vigente. 4. Agravo regimental não provido.
(RE 578582 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 27/11/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-248 DIVULG 18-12-2012 PUBLIC 19-12-2012)
Outro instituto de que se deve cuidar no trato do direito constitucional intertemporal compreende a inconstitucionalidade superveniente. Nesta hipótese, muito embora a norma tenha sido editada após a proclamação do novo texto constitucional, a ele se apresentando material e formalmente compatível, vem a se tornar, no tempo, inconstitucional em função de emenda posterior, alterações nas relações fáticas tratadas ou mutação constitucional (alteração da interpretação do texto constitucional).
Revela-se, assim, a possibilidade de alteração do significado do parâmetro normativo constitucional ou do próprio ato legislativo a implicar, se confrontado com a ordem constitucional, inegável inconstitucionalidade superveniente. O reverso, porém, não se mostra verdadeiro. Em outras palavras, consoante já afirmado, não se admite constitucionalidade superveniente, i.e., norma originariamente inconstitucional à época de sua proclamação não se torna válida porque conforme a nova ordem constitucional instalada.
Neste sentido, já se posicionou o Supremo Tribunal Federal:
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINARIO. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO. TITULARES DE MANDATO ELETIVO. INCONSTITUCIONALIDADE. EC 20/1998. CONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE. IMPOSSIBILIDADE. 1. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 351.717, da relatoria do ministro Carlos Velloso, declarou a inconstitucionalidade do art. 13, § 1º, da Lei 9.506/1997, que instituiu contribuição social para o custeio da previdência de agentes políticos. 2. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que a alteração constitucional não tem o condão de tornar legítima norma anteriormente considerada inconstitucional diante da Constituição Federal então vigente. 3. Agravo regimental desprovido.
(RE 343801 AgR, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma, julgado em 20/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-124 DIVULG 25-06-2012 PUBLIC 26-06-2012)
Esclareça-se que a nãorecepção de determinada norma não se confunde com a inconstitucionalidade superveniente. Na não recepção, quando da proclamação da nova ordem constitucional, a norma já se apresentava com ela materialmente incompatível, de modo a ser considerada revogada. Já na inconstitucionalidade superveniente, quando da proclamação da nova ordem constitucional (ou se editada na vigência da nova Constituição), não havia qualquer mácula de incompatibilidade (formal ou material) com o novo texto; no entanto, por razões de emenda, alteração do contexto fático ou mutação constitucional a norma, que anteriormente era válida sob a vigência da atual Constituição, deixa de sê-lo.
Deste modo, diante da não recepção de determinada norma pelo texto constitucional, com sua consequente revogação, não se admite a propositura de ação declaratória de inconstitucionalidade contra lei anterior à nova Constituição Federal, haja vista sua revogação (tácita ou expressa, a depender do caso). Do mesmo modo, como não se trata de controle de constitucionalidade, a declaração de não recepção de determinada norma não exige quorum especial, conhecido como cláusula de reserva de plenário, previsto no art. 97 da Constituição Federal e correspondente à maioria absoluta dos membros do Tribunal ou de seu respectivo órgão especial. Pelos mesmos motivos, não se cuidando de controle de constitucionalidade e sim de direito intertemporal, não se mostra aplicável a modulação dos efeitos da decisão que considerou determinada norma não recepcionada pela nova Constituição.
Apreciando a questão, assim dispôs a jurisprudência:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - OBJETO. A alteração da Carta inviabiliza o controle concentrado de constitucionalidade de norma editada quando em vigor a redação primitiva.
(ADI 3833 MC, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 19/12/2006, DJe-216 DIVULG 13-11-2008 PUBLIC 14-11-2008 EMENT VOL-02341-01 PP-00108 RTJ VOL-00208-03 PP-00989)
De outra parte, as normas da Constituição Anterior, mesmo que compatíveis com a Nova Constituição, são revogadas em sua totalidade, salvo se houver expressa e pontual ressalva e, mesmo assim, em caráter temporário, de específicas normas que se afigurarem necessárias ao período de transição de regimes. Não obstante, se a Nova Constituição modificar competências legislativas, as normas anteriormente editadas deixam de ser recepcionadas por absoluta incompatibilidade formal, não se afigurando possível a federalização de normas estaduais ou municipais.
Por fim, discute-se sobre a possibilidade da Nova Constituição deixar de observar direitos a ela anteriormente adquiridos, posta a assertiva de que o Poder Constituinte originário seria absoluto, incondicionado e ilimitado. De acordo com a ordem comunitária atual, em que o Estado Brasileiro pode vir a ser responsabilizado pela desobediência de tratados e convenções internacionais celebrados, sem prejuízo das normas de jus cogens, seria apropriado defender que a Nova Constituição deveria, necessariamente, respeitar progressos atingidos na seara dos direitos fundamentais, proibindo-se o famigerado efeito cliquet. Todavia, o Supremo Tribunal Federal, pacificamente, não admite a invocação de direitos adquiridos em detrimento da Nova Constituição, conforme se pode observar do seguinte julgado:
EMENTA: ESTADO DE SÃO PAULO. SERVIDORES PÚBLICOS. INCIDÊNCIA RECÍPROCA DE ADICIONAIS E SEXTA-PARTE. ART. 37, XIV, DA CF, C/C O ART. 17 DO ADCT/88. DIREITO JUDICIALMENTE RECONHECIDO ANTES DO ADVENTO DA NOVA CARTA. SUPRESSÃO DA VANTAGEM POR ATO DA ADMINISTRAÇÃO. ALEGADA OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA COISA JULGADA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. O constituinte, ao estabelecer a inviolabilidade do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, diante da lei (art. 5º, XXXVI), obviamente se excluiu dessa limitação, razão pela qual nada o impedia de recusar a garantia à situação jurídica em foco. Assim é que, além de vedar, no art. 37, XIV, a concessão de vantagens funcionais "em cascata", determinou a imediata supressão de excessos da espécie, sem consideração a "direito adquirido", expressão que há de ser entendida como compreendendo, não apenas o direito adquirido propriamente dito, mas também o decorrente do ato jurídico perfeito e da coisa julgada. Mandamento auto-exeqüível, para a Administração, dispensando, na hipótese de coisa julgada, o exercício de ação rescisória que, de resto, importaria esfumarem-se, extunc, os efeitos da sentença, de legitimidade inconteste até o advento da nova Carta. Inconstitucionalidade não configurada. Recurso não conhecido.
(RE 140894, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em 10/05/1994, DJ 09-08-1996 PP-27102 EMENT VOL-01836-01 PP-00075)
Conclui-se, assim, que o direito constitucional intertemporal, embora olvidado pela maioria dos operadores do direito por conta da estabilização do texto constitucional vigente, é de suma importância, seja para discutir eventuais limites que poderiam ser impostos ao poder constituinte originário, seja para avaliar a constitucionalidade de novas alterações constitucionais – citando-se, por exemplo, a discussão recentemente tratada sobre a criação de conselhos populares por decreto presidencial. De qualquer modo, a discussão não se esgota nos institutos tratados no presente artigo; ao contrário, deles se utiliza de parâmetro para novas conjunturas advindas da mutação constitucional incessante decorrente da influência do direito comunitário em nossa ordem jurídica.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JANNUCCI, Alessander. Direito Constitucional Intertemporal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42389/direito-constitucional-intertemporal. Acesso em: 23 dez 2024.
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