RESUMO: a análise da jurisprudência acerca da concessão de justiça gratuita demonstra que, mesmo na ausência de parâmetros unânimes, é possível traçar algumas balizas para análise dos casos concretos.
Palavras-chave: processo civil. Justiça gratuita. Miserabilidade jurídica. Prova. Jurisprudência.
1. Conceitos e distinção
Os conceitos de justiça gratuita, assistência judiciária gratuita e assistência jurídica gratuita são muitas vezes utilizados, tanto na doutrina como na jurisprudência, como sinônimos. Parte da doutrina, no entanto, reconhece importantes distinções entre os institutos¹ .
A assistência jurídica integral e gratuita, prevista (como garantia fundamental, ressalte-se) no art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal, é o conceito mais amplo, incluiria não só a gratuidade dos atos relacionados aso processos judiciais mas também de atos extrajudiciais, como processos administrativos, consultoria e atos notariais.
A assistência judiciária gratuita e a justiça gratuita são conceitos mais restritos. Ambos são tratados, de foram indistinta, pela Lei 1.060/50. A doutrina faz a distinção entre eles, afirmando consistir a assistência judiciária na representação por advogado de forma gratuita ao necessitados, serviço prestado pelas Defensorias Públicas, enquanto a justiça gratuita seria a dispensa, de forma provisória, das despesas relacionadas ao processo judicial. É dela que trata o presente artigo.
Cabe ressaltar, ainda, que o conceito de miserabilidade jurídica para fins de concessão do benefício não se confunde com o conceito de pobreza material. Para obter o benefício, basta não ter condições de pagar as custas do processo. Como as custas do processo podem depender de vários fatores, como o valor da causa ou remuneração de peritos, é possível que pessoa que não seja materialmente pobre possa ter direito à justiça gratuita.
A distinção muitas vezes deixa de ser considerada, como poderá ser observado nos julgados abaixo transcritos, que mencionam, por exemplo, o fato de se ter grande renda como impedimento para a concessão do benefício, sem que se mencione o valor da causa. Tal proceder, no entanto, pode ser justificada até certo ponto pela existência de alguns valores mínimos e máximos para as custas processuais ou tabelas de remuneração de peritos, limitando as possibilidades de variação nas custas.
2. Prova da miserabilidade e jurisprudência
A Lei 1.060/50, em seu art. 4º, determina:
Art. 4º. A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família.
§ 1º. Presume-se pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição nos termos desta lei, sob pena de pagamento até o décuplo das custas judiciais.
Como se percebe, basta a afirmação da parte para se obter a justiça gratuita. Por outro lado, a própria Lei 1.060/50 estabelece penalidade para aquele que buscar receber indevidamente o benefício. Ocorre aqui uma presunção relativa, que pode ser afastada por prova em contrário. Cabe, portanto, a quem afirmar que a condição inexiste comprovar a existência de condições suficientes para o pagamento das custas do processo, não cabendo exigir prova de pobreza.
Nesse sentido, já decidiu a jurisprudência:
RECURSO ESPECIAL - BENEFÍCIO DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA - IMPUGNAÇÃO AO PEDIDO PELA FAZENDA - COMPROVAÇÃO DO ESTADO DE MISERABILIDADE - DESNECESSIDADE - DECLARAÇÃO DE POBREZA FEITA PELO ADVOGADO DA PARTE BENEFICIÁRIA - POSSIBILIDADE - PRECEDENTES.
- O tema não merece maiores digressões, uma vez que já se encontra assentado neste pretório, no sentido de que não é necessária a comprovação do estado de miserabilidade da parte para a concessão do benefício da Assistência Judiciária Gratuita, sendo suficiente a declaração pessoal de pobreza da parte, a qual pode ser feita, inclusive, por seu advogado. Precedentes.
- Recurso especial improvido.
(STJ; RESP 611478/RN; 2ª Turma; Relator Ministro Franciulli Netto; DJ de 08.08.2005, pág. 262)
Pode o juiz, diante das provas dos autos, indeferir o pedido de justiça gratuita (art. 5º da Lei 1.060/50). Caso não o faça, cabe à parte contrária, nos termos do art. 4º, §2º, impugnar a concessão de justiça gratuita, sendo a impugnação autuada em apartado.
A prova de que a parte tem condições para arcar com os custos do processo, na prática, pode ser dificultosa, uma vez que os seus bens e rendimentos nem sempre são conhecidos, salvo se a natureza da causa ou outro motivo determinar o contrário. A prova de inexistência de miserabilidade, no entanto, pode ser feita por qualquer meio em direito admitido.
Em primeiro lugar, a mera representação por advogado particular não impede a concessão de justiça gratuita:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA - COMPROVAÇÃO DE INDICAÇÃO DE DEFENSOR PELA PROCURADORIA DO ESTADO - PRESTAÇÃO GRATUITA DE SERVIÇOS ADVOCATÍCIOS - DESNECESSIDADE - RECURSO PROVIDO.
-A concessão do benefício da gratuidade da justiça, depende tão somente da declaração do autor, de sua carência de condições para arcar com as despesas processuais, sem prejuízo ao atendimento de suas necessidades básicas.
-Cabível a indicação de defensor pela parte autora, independente de indicação da Procuradoria do Estado.
-A forma contratada entre cliente e advogado escapa à recomendações e consentimento externos.
-Agravo provido, para conceder a gratuidade da justiça.
(TRF-3. AG nº 2003.03.00.010375-0; 1ª Turma; Rel. Des. Fed. Roberto Haddad; j. em 10.9.2002; DJU de 15.10.2002; p. 365)
Por outro lado, tanto a comprovação de patrimônio quanto a comprovação de renda pode ser utilizada para afastar a presunção legal. Como exemplo, citamos que a jurisprudência já afastou o benefício em caso de comprovação de propriedade de imóveis em bairro nobre ou vários automóveis. Cite-se, por exemplo, os seguintes julgados:
PROCESSO CIVIL. INCIDENTE DE IMPUGNAÇÃO DO BENEFÍCIO DA GRATUIDADE DA JUSTIÇA. LEI N. 1.060/50. REQUISITOS NECESSÁRIOS.
I- Recurso de apelação conhecido, não obstante equívoco na indicação do número do processo, com fundamento nos princípios da instrumentalidade das formas e do acesso à justiça.
II- O direito à gratuidade da justiça pode ser postulado a qualquer tempo e, em qualquer grau de jurisdição, bastando a declaração, feita pelo próprio interessado, de que a sua situação econômica não permite vir a Juízo sem prejuízo da sua manutenção ou de sua família.
III- A comprovação de que a parte autora recebe proventos de aposentadoria em montante equivalente a mais de 19 salários mínimos, além de ser proprietária de um veículo novo, e de um imóvel com área de 242 m² (duzentos e quarenta e dois metros quadrados), é suficiente para afastar a presunção de pobreza que milita em favor de quem presta declaração nos termos do artigo 4º da Lei nº 1.060/50, já que houve demonstração de considerável capacidade financeira. Conclui-se que pode suportar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família.
IV- Matéria preliminar arguida pelo INSS em contrarrazões rejeitada. Apelação da parte autora improvida".
(TRF3, AC 2003.61.12.011826-0, Des. Fed. Walter do Amaral, 7ª Turma, DJF3 CJ1 DATA:28/10/2009 PÁGINA: 374)
8. Não obstante consiste o bem móvel indicado em "veículo popular", trata-se de carro novo (2012/2013), transparecendo que o agravante não se enquadra nos termos da lei indica.
9.Ainda que pairem dúvidas acerca da riqueza do recorrente, considerando tão somente o veículo objeto do mandamus, é certo que a agravada afastou-as, juntando aos autos a cópia do extrato perante do RENAVAM, a qual indica outros 4 veículos de propriedade do agravante, sendo um deles também fabricado em 2012.
10.O recorrente não faz jus ao benefício pleiteado e, ainda, afirmou inveridicamente a condição de pobre, nos termos da Lei nº 1.060/50, cabendo-lhe a penalidade prevista no art.4º, § 1º ("A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família. § 1º. Presume-se pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição nos termos desta lei, sob pena de pagamento até o décuplo das custas judiciais."), a qual fixo no dobro do valor das custas judiciais.
11.Agravo de instrumento improvido e condenar o agravante ao pagamento em dobro das custas processuais, conforme os termos do julgado.
(TRF-3. AG nº 0020188-38.2013.4.03.0000/MS; 3ª Turma; Rel. Des. Fed. NERY JUNIOR; j. Em 28/02/2014. Disponível em: <http://web.trf3.jus.br/acordaos/Acordao/BuscarDocumentoGedpro/3414227>. Acesso em: 10 dez. 2014.)
Também a precedentes reconhecendo ser indevido o benefício no caso de recebimento de salário ou de benefício previdenciário em valor significativo². A simples existência de renda, por outro lado, é insuficiente para comprovar a possibilidade de pagamento das custas processuais.
A existência de bens e rendimentos, no entanto, não é suficiente para afastar a justiça gratuita caso a parte que a requer tenha despesas significativas. Devem ser consideradas, segundo a jurisprudência, “encargos familiares, tais como saúde, educação, número de dependentes, a faixa etária de cada um, suas necessidades, compromissos e posição social”³.
Evidentemente, se há dificuldade em demonstrar a renda e patrimônio da parte, ainda mais difícil se mostra a prova de suas despesas, sobretudo porque quem defende a negação do benefício da justiça gratuita teria que demonstrar a ausência de despesas, o que consiste em prova diabólica, ou seja, prova de fato negativo.
Por isso, há julgados que, ainda de foram implícita, impõe ao requerente da justiça gratuita a prova de tais despesas caso a parte adversa demonstre a existência de rendas suficientes. Nesse sentido (grifamos):
PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO LEGAL. IMPUGNAÇÃO À GRATUIDADE JUDICIÁRIA. DECLARAÇÃO DE HIPOSSUFICIÊNCIA. PROVA EM SENTIDO OPOSTO. POSSIBILIDADE. RENDA DO POSTULANTE INCOMPATÍVEL COM O BENEFÍCIO PLEITEADO. OCORRÊNCIA. AGRAVO DESPROVIDO.
1. A Lei nº 1.060/50, Art. 4º, dispõe que a parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários advocatícios, sem prejuízo próprio ou de sua família. No entanto, o § 1º da referida norma adiciona que se presume pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição nos termos da lei, sob pena de pagamento até o décuplo das custas judiciais.
2. Desume-se que a simples declaração de hipossuficiência não possui absoluta presunção de veracidade, podendo ser questionada pela parte adversa, mediante apresentação de prova em sentido oposto.
3. No caso dos autos, o exame dos extratos do CNIS juntados pelo INSS, bem como a ausência de declaração de despesas adicionais suportadas pelo agravante, permitem a conclusão de que sua renda é incompatível com a manutenção do benefício intentado de assistência judiciária gratuita.
4- Agravo desprovido.
(TRF-3. AG nº 2009.61.26.004295-3/SP; 10ª Turma; Rel. Des. Fed. BAPTISTA PEREIRA; j. Em 10/04/2012. Disponível em: <http://web.trf3.jus.br/acordaos/Acordao/BuscarDocumentoGedpro/1983520>. Acesso em: 10 dez. 2014.)
Por fim, como forma de demonstrar a possibilidade de comprovação da inexistência de miserabilidade por todos os meios em direto admitido, passamos a citar trecho de matéria recentemente veiculada, que noticiou a decisão de juiz de primeiro grau de afastar a justiça gratuita com base em informações de redes sociais, situação que, segundo entendemos, tende a se tornar cada vez mais comum:
“Depois de analisar as redes sociais da advogada, especialmente o perfil no Facebook, o magistrado concluiu que ela teria condições para o pagamento, uma vez que publicou diferentes fotos em shows e em jogos da Copa do Mundo FIFA 2014. Para ele, a advogada alterou a verdade dos fatos ao solicitar uso da justiça gratuita.”
(Juiz utiliza informações do Facebook para negar justiça gratuita. Agência Senado. Publicado em 14/10/2014. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI209288,41046-Juiz+utiliza+informacoes+do+Facebook+
para+negar+justica+gratuita>. Acesso em: 10 dez. 2014.)
3. Conclusão
A miserabilidade para fins de concessão de justiça gratuita não precisa ser comprovada, uma vez que, uma vez afirmada pela parte que a requer, goza de presunção legal. Tal presunção, no entanto, não é absoluta, podendo ser afastada por quaisquer meios em direito admitidos. O ônus de comprovar que inexiste miserabilidade jurídica compete a quem a contesta, mas cabe ao requerente comprovar suas despesas caso exista prova de rendas ou patrimônio que faça crer que ele não tem direito à justiça gratuita.
NOTAS:
¹ LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado / Pedro Lenza. – 16. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo : Saraiva, 2012, p. 894.
² TRF-3. AG nº 2009.61.26.004295-3/SP; 10ª Turma; Rel. Des. Fed. BAPTISTA PEREIRA; j. Em 10/04/2012. Disponível em: <http://web.trf3.jus.br/acordaos/Acordao/BuscarDocumentoGedpro/1983520>. Acesso em: 10 dez. 2014.
³ TRF-3. AG nº 2009.03.00.039823-9/SP; 5ª Turma; Rel. Des. Fed. LUIZ STEFANINI; j. Em 19/09/2011. Disponível em: <http://web.trf3.jus.br/acordaos/Acordao/BuscarDocumentoGedpro/1382555>. Acesso em: 10 dez. 2014.
REFERÊNCIAS:
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado / Pedro Lenza. – 16. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo : Saraiva, 2012.
PASSOS, Danielle de Paula Maciel dos. Assistência jurídica, assistência judiciária e justiça gratuita: evolução histórica, distinções e beneficiários. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 dez. 2012. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.41157&seo=1>. Acesso em: 10 dez. 2014.
MOYSES, Natália Hallit. A assistência judiciária gratuita nos juizados especiais e a presença indispensável do advogado: destinação apenas ao hipossuficiente?. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3542, 13 mar. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/23956>. Acesso em: 10 dez. 2014.
Procurador Federal em exercício na Procuradoria Geral Federal de Santos-SP, órgão da Advocacia-Geral da União (AGU)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AVIAN, Eduardo. Justiça gratuita: da prova da miserabilidade na jurisprudência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42434/justica-gratuita-da-prova-da-miserabilidade-na-jurisprudencia. Acesso em: 23 dez 2024.
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