RESUMO: O artigo destina-se a traçar algumas ideias sobre a consulta prevista na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho
Palavras-chave: Consulta Prévia, Livre e Informada. Convenção nº 169 da OIT.
A Constituição Federal vigente engendrou grande esforço para criar um sistema de proteção aos direitos da população indígena no país: dedica um capítulo inteiro à temática indígena, além de conter outras normas esparsas em seu corpo que garantem o direito à alteridade o respeito à diversidade.
Os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas (PET 3388/STF).
O direito à consulta prévia, livre e informada é inegável reflexo desse constitucionalismo fraternal e teve sua origem na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais, adotada em Genebra, em 27 de junho de 1989. Sobre o fato da OIT ter normatizado o tema, Kayser nos fornece a explicação:
O ponto de partida para que a OIT se ocupasse das populações indígenas foram reflexões econômicas. Em numerosos Estados-membro da Organização, as populações indígenas representam um contingente numericamente elevado da força de trabalho. Através de um uso mais efetivo dessa força de trabalho, deveria ser alcançada uma melhoria das condições sociais e econômicas destes grupos populacionais, e ao mesmo tempo, um desenvolvimento mais forte da economia popular dos respectivos Estados. As regulamentações mais importantes – e mais amplas do que a regulamentação sobre as relações de trabalhos dos acordos – são a Convenção 107, de 26 de junho de 1957, sobre a proteção e a integração das populações indígenas e outras populações tribais e semitribais de países independentes, assim como a convenção para a revisão parcial desta convenção, ou seja, a Convenção 169, sobre os povos indígenas e tribais em países independentes, de 1989[1].
O direito de consulta prévia surgiu no texto da Convenção 169 em meio ao debate sobre autodeterminação dos povos, no qual vários Estados se mostraram contrários à adoção desse princípio. Nesse contexto chegou-se ao entendimento de que deveria ser resguardada a soberania dos Estados sobre seus territórios, mas se impediria que os Estados adotassem medidas políticas, administrativas e legislativas à revelia dos povos afetados.
Desta forma, entre a negação da autodeterminação e o abandono do paradigma assimilacionista, surgiu o direito de consulta prévia como um instrumento de intermediação política entre os Estados independentes e os povos indígenas e tribais neles sobreviventes[2].
A consulta está prevista para alguns casos na própria Constituição Federal (art. 231, §3º da CF/88[3]), e claramente estampada na Convenção nº 169 da OIT, incorporada em nosso ordenamento jurídico com status de norma supralegal[4] pelo Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004:
Artigo 4º
1. Deverão ser adotadas as medidas especiais que sejam necessárias para salvaguardar as pessoas, as instituições, os bens, as culturas e o meio ambiente dos povos interessados.
2. Tais medidas especiais não deverão ser contrárias aos desejos expressos livremente pelos povos interessados.
3. O gozo sem discriminação dos direitos gerais da cidadania não deverá sofrer nenhuma deterioração como conseqüência dessas medidas especiais.
Artigo 6º
1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;
b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes;
c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim.
2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas.
Artigo 7º
1. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas, próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente.
2. A melhoria das condições de vida e de trabalho e do nível de saúde e educação dos povos interessados, com a sua participação e cooperação, deverá ser prioritária nos planos de desenvolvimento econômico global das regiões onde eles moram. Os projetos especiais de desenvolvimento para essas regiões também deverão ser elaborados de forma a promoverem essa melhoria.
3. Os governos deverão zelar para que, sempre que for possíve1, sejam efetuados estudos junto aos povos interessados com o objetivo de se avaliar a incidência social, espiritual e cultural e sobre o meio ambiente que as atividades de desenvolvimento, previstas, possam ter sobre esses povos. Os resultados desses estudos deverão ser considerados como critérios fundamentais para a execução das atividades mencionadas.
4. Os governos deverão adotar medidas em cooperação com os povos interessados para proteger e preservar o meio ambiente dos territórios que eles habitam.
Artigo 15
1. Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nas suas terras deverão ser especialmente protegidos. Esses direitos abrangem o direito desses povos a participarem da utilização, administração e conservação dos recursos mencionados.
2. Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dos recursos do subsolo, ou de ter direitos sobre outros recursos, existentes na terras, os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a consultar os povos interessados, a fim de se determinar se os interesses desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os povos interessados deverão participar sempre que for possível dos benefícios que essas atividades produzam, e receber indenização equitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades.
As normas em questão ganham reforço na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007:
Artigo 18
Os povos indígenas têm o direito de participar da tomada de decisões sobre questões que afetem seus direitos, por meio de representantes por eles eleitos de acordo com seus próprios procedimentos, assim como de manter e desenvolver suas próprias instituições de tomada de decisões.
Artigo 19
Os Estados consultarão e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre, prévio e informado antes de adotar e aplicar medidas legislativas e administrativas que os afetem.
O artigo 6º da Convenção 169 da OIT determina aos governos dos Estados que possuam em seus territórios populações indígenas ou tribais que procedam a consultas sobre as medidas administrativas e legislativas que possam afetá-los, para que esses povos tenham o direito de dizer o que compreendem do projeto/intervenção e possam ter alguma influência no processo de tomada de decisões sobre medidas que os afetem. Enfim, pode-se dizer que o objetivo primordial da consulta prévia é a busca do consentimento (ou consenso) de tais povos antes da adoção de medidas administrativas e legislativas que potencialmente os afetem.
Sobre a consulta e sua obrigatoriedade, os Tribunais pátrios já vêm se manifestando:
AMBIENTAL. PASSAGEM DE RODOVIA POR TERRA INDIGENA. CONDICIONANTES IMPOSTAS PELA FUNAI APÓS A EXPEDIÇÃO DA LICENÇA AMBIENTAL. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE. OBSERVÂNCIA AO ARTIGO 231 DA CONSTITUIÇÃO E À CONVENÇÃO 169 DA OIT. PRETENSÃO DE CONTINUIDADE DAS OBRAS. IMPOSSIBILIDADE. 1 - A suspensão da realização de obras em rodovia que corta terra indígena no Estado do Maranhão por ausência de observância de condicionantes impostas pela FUNAI após a realização do EIA/RIMA e expedição de licença ambiental, antes de causar prejuízo, observa o regramento constitucional e legal relativo à matéria. 2 - A atuação da FUNAI na espécie constitui mera observância das disposições da Lei nº 5.371/67, que atribuem à autarquia a proteção e promoção dos direitos indígenas. 3 - A consulta aos interesses indígenas, além de derivar do artigo 231 da Constituição Federal, está prevista na Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário, cujas normas estabelecem a consulta aos índios sobre medidas legislativas e administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente. 4 - Em casos como o discutido na demanda que origina este recurso, cumpre à FUNAI atuar supletivamente ao IBAMA, realizando o controle ambiental e estipulando diversas condicionantes a serem executadas, com vistas a mitigar os impactos ambientais e proteger as terras indígenas. 5 - Inexistente ilegalidade ou desconformidade com o texto constitucional ou legal sobre o tema, não prospera a pretensão recursal que pretende a continuidade da obra sem observância às condicionantes impostas pela FUNAI. 6 - Agravo de instrumento desprovido.
(AG 0002064-61.2013.4.01.0000 / MA, Rel. DESEMBARGADORA FEDERAL SELENE MARIA DE ALMEIDA, QUINTA TURMA, e-DJF1 p.325 de 10/01/2014)
Contudo, o instituto da consulta, ainda é permeado de dúvidas ante a ausência da regulamentação dos mecanismos de consulta[5], o que, de modo algum afasta a sua observância, já que, nos termos do art. 5º, §1º da CF/88, “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
Nesse contexto, o que podemos inferir da legislação pertinente e da interpretação feita à luz da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, é que a consulta deve ser anterior à tomada de decisão (legislativa ou administrativa) que lhes afete diretamente, ou seja, não tem por finalidade legitimar decisões já tomadas pelo Estado, mas fazer com que as comunidades afetadas participem do processo de tomada de decisão.
A consulta deve permear-se pela boa-fé, ou seja, as informações prestadas pelo Estado e/ou empreendedor devem ser verídicas e não distorcidas e, ainda, expostas de forma a possibilitar a compreensão pelas comunidades afetadas, para que compreendam a medida administrativa ou legislativa, suas consequências, e possam sobre ela deliberar.
Na consulta, destaca-se o direito à informação prévia, que não é um fim em si mesma, mas o instrumento para o processo de tomada de decisões da população indígena, de modo a possibilitar-lhe a negociação. No dizer de Villares[6], a informação é ferramenta indispensável na busca da racionalidade e do consenso exigido pelo direito, pois em uma sociedade democrática e multicultural se exige o nivelamento da informação a todos: a informação é um pressuposto para a escolha consciente e a participação democrática.
Contudo, a despeito da certeza de sua obrigatoriedade e da imposição de que seja “prévia”, há certa celeuma acerca do momento em que se efetivará, já que não conseguimos extrair o significado de “prévia” em todas as situações possíveis. Por ocasião do julgamento do Agravo Regimental na SLS nº 1.745/PA[7] pelo Superior Tribunal de Justiça, o voto condutor assevera:
De acordo com o texto da Convenção, quando houver medida administrativa tendente a afetar, de modo direto, as comunidades indígenas e tribais, o Governo deverá promover consultas de modo a inseri-las no contexto participativo de tomada de decisão. Trata-se de consulta que deve ser realizada pelo Poder Público sempre que o empreendimento que se pretende implantar puder, de algum modo, afetar diretamente as comunidades indígenas e tribais.
In casu, não vislumbro com meros estudos preliminares, atinentes apenas à viabilidade do empreendimento, possam afetar, diretamente, as comunidades envolvidas. O que não se mostra possível, a toda evidência, é dar início à execução do empreendimento sem que as comunidades envolvidas se manifestem e componham o processo participativo com suas considerações a respeito de empreendimento que poderá afetá-las diretamente.
Em outras palavras, não poderá o Poder Público finalizar o processo de licenciamento ambiental sem cumprir os requisitos previstos na convenção internacional, em especial as consultas prévias às comunidades indígenas e tribais eventualmente afetadas pelo empreendimento.
Além disso, conforme consignado na decisão recorrida, não há uma regulamentação específica que exija que a consulta deverá se dar antes mesmo do início dos estudos de viabilidade do empreendimento. Nesse diapasão, obedecido o princípio de preservação dos direitos fundamentais dessas comunidades, torna-se possível a realização de consultas concomitantemente aos estudos iniciais, pois, nesse caso, não haverá "medida administrativa " tendente a afetar direta e concretamente as comunidades envolvidas.
Ademais, depreende-se dos autos que o Governo Federal tem promovido diversos debates e reuniões com as lideranças indígenas envolvidas e que podem ser afetadas pelo empreendimento. Esse comportamento denota o cumprimento do art. 6º, 2, da Convenção, o qual determina que as consultas devem ser regularmente realizadas ao abrigo da boa-fé e de maneira apropriada às circunstâncias do caso, com vistas a se chegar a um acordo e "conseguir o consentimento acerca das medidas propostas". Há, desse modo, um incentivo à participação das comunidades nas discussões, o que permitirá ao Poder Público a tomada de decisão de acordo com a realidade local.
Nesse contexto, é importante destacar que a UHE São Luiz do Tapajós se trata de um projeto energético, que ainda está em fase embrionária de verificação da viabilidade técnica, econômica e ambiental, e, ao menos enquanto se tratar de um simples projeto, sem início de execução efetiva, não possui o condão de afetar, de modo negativo, as comunidades locais.
Há que se ressaltar que a realização dos estudos milita em favor das comunidades envolvidas, pois, assim, terão a oportunidade de, por exemplo, conhecer os impactos ambientais a que as localidades estarão afetas, caso o projeto seja efetivamente implantado. O desenvolvimento desses estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental poderá permitir às comunidades envolvidas maior conhecimento e, consequentemente, possibilitará uma discussão mais ampla a respeito da viabilidade do empreendimento.
No mais, o Supremo Tribunal Federal, em sede de decisão monocrática em na Suspensão de Liminar nº 125/PA[8], assim decidiu:
Assim, considero o acórdão impugnado ofensivo à ordem pública, aqui entendida no contexto da ordem administrativa, e à economia pública, quando considerou inválido, neste momento, o Decreto Legislativo 788/2005 e proibiu ao IBAMA que elaborasse a consulta política às comunidades interessadas; faço-o mediante os seguintes fundamentos:
a) o Congresso Nacional, em 13 de julho de 2005, aprovou o decreto legislativo em questão, no legítimo exercício de sua competência soberana e exclusiva (art. 49, XVI, da Constituição da República). É relevante, pois, a plena vigência desse ato legislativo. Não consta dos autos, até a presente data, notícia de sua revogação. Quanto à eficácia, frise-se que o Supremo Tribunal Federal, em 1º de dezembro de 2005, ao julgar a ADI 3.573/DF (rel. para acórdão Ministro Eros Grau, DJ 19.12.2005), que tinha por objeto a declaração de inconstitucionalidade do mencionado decreto legislativo, não conheceu da citada ação direta de inconstitucionalidade;
b) analisando os termos do supracitado decreto legislativo (arts. 1º e 2º), evidencia-se caráter meramente programático no sentido de autorizar ao Poder Executivo a implantação do “Aproveitamento Hidrelétrico Belo Monte” em trecho do Rio Xingu, localizado no Estado do Pará, “a ser desenvolvido após estudos de viabilidade técnica, econômica, ambiental e outros que julgar necessários”. Por isso que considero, neste momento, prematura e ofensiva à ordem administrativa, decisão judicial que impede ao Poder Executivo a elaboração de consulta às comunidades indígenas. Aliás, o importante debate jurídico a respeito da natureza dessa consulta (se política ou técnica) não é cabível na presente via da suspensão de decisão, tendo em vista os estritos termos do art. 4º da Lei 8.437/92;
c) no que concerne à alegada violação ao art. 231, § 3º, da CF, e considerando os termos do retrotranscrito dispositivo do voto-condutor do AI em questão, assevere-se que o art. 3º do Decreto Legislativo 788/2005 prevê que os estudos citados no art. 1º são determinantes para viabilizar o empreendimento e, se aprovados pelos órgãos competentes, permitirão que o Poder Executivo adote as medidas previstas em lei objetivando a implantação do aproveitamento hidroelétrico em apreço. Esses estudos estão definidos no art. 2º, o qual, em seu inciso IV, prevê a explícita observância do mencionado art. 231, § 3º, da Constituição Federal. Sobreleva, também, o argumento no sentido de que os estudos de natureza antropológica têm por finalidade indicar, com precisão, quais as comunidades que serão afetadas. Dessa forma, em atenção ao contido no art. 231, § 3º, da CF e no decreto legislativo em tela, estes em face do dispositivo do voto-condutor, entendo que a consulta do Ibama às comunidades indígenas não deve ser proibida neste momento inicial de verificação de viabilidade do empreendimento;
(...)
e) a proibição ao Ibama de realizar a consulta às comunidades indígenas, determinada pelo acórdão impugnado, bem como as conseqüências dessa proibição no cronograma governamental de planejamento estratégico do setor elétrico do país, parece-me invadir a esfera de discricionariedade administrativa, até porque repercute na formulação e implementação da política energética nacional.
(...)
7. Ante o exposto, com fundamento no art. 4º da Lei 8.437/92, defiro o pedido para suspender, em parte, a execução do acórdão proferido pela 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, nos autos do AI 2006.01.00.017736-8/PA (fls. 527-544), para permitir ao Ibama que proceda à oitiva das comunidades indígenas interessadas. Fica mantida a determinação de realização do EIA e do laudo antropológico, objeto da alínea “c” do dispositivo do voto-condutor (fl. 540-v).
Depreendemos das decisões existentes sobre o tema e emanadas das mais altas cortes do país, que há uma tendência a entender que o momento para as consultas às comunidades indígenas seria anterior ao inicio de implantação do empreendimento, mas após (ou concomitante) à realização estudos de impacto ambiental que pudessem definir a viabilidade técnica do empreendimento, as comunidades afetadas, os impactos derivados do empreendimento, e a apresentação de medidas de compensação ou mitigação.
Contudo, ressaltamos, tal não é o entendimento do Ministério Público Federal[9] (vide as inúmeras ações contestando os empreendimentos aproveitadores de potencial hidráulico, notadamente na região da Amazônia Legal) e de organizações não governamentais de defesa dos direitos indígenas, para quem há a violação ao direito de consulta quando a decisão política de executar a medida administrativa já está tomada:
A consulta é prévia exatamente porque é de boa-fé e tendente a chegar a um acordo. Isso significa que, antes de iniciado o processo decisório, as partes se colocam em um diálogo que permita, por meio de revisão de suas posições iniciais, se chegar à melhor decisão. Desse modo, a consulta traz em si, ontologicamente, a possibilidade de revisão do projeto inicial ou mesmo de sua não realização. Aquilo que se apresenta como já decidido não enseja, logicamente, consulta, pela sua impossibilidade de gerar qualquer reflexo na decisão. A Resolução CONAMA nº 1, de 23 de janeiro de1986, que “dispõe sobre critérios básicos e diretrizes gerais para a avaliação de impacto ambiental”, diz, em seu art. 5º, I, que o estudo de impacto ambiental deve “contemplar todas as alternativas tecnológicas e de localização do projeto, confrontando-as com a hipótese de não execução do projeto”. Esse é um norte bastante adequado também para a consulta, inclusive naqueles casos em que se exige prévia autorização do Congresso Nacional. A Convenção 169 não deixa dúvidas quanto a esse ponto: a consulta antecede quaisquer medidas administrativas e legislativas com potencialidade de afetar diretamente povos indígenas e tribais.
Também decorre da racionalidade do sistema que, nas medidas que se desdobram em vários atos, como ocorre, por exemplo, no procedimento de licenciamento ambiental, a consulta prévia seja renovada a cada geração de novas informações, especialmente aquelas relativas a impactos a serem suportados pelos grupos. O consentimento inicial para a obra se dá a partir dos poucos dados disponíveis. Uma vez realizado o estudo de impacto ambiental e adicionadas outras tantas informações, a consulta tem que ser renovada, e, mais uma vez, iniciado o processo dialógico tendente ao acordo.
Esse é um imperativo que decorre, primeiro, dos próprios vetores da consulta (especialmente, nesse ponto, o seu caráter de boa fé), e, segundo, da natureza do estudo de impacto ambiental. Esse estudo, nos termos do art. 6º da Resolução CONAMA 001/86, deve fazer (i) o diagnóstico da área de influência do projeto sob três perspectivas – meios físico, biótico e socioeconômico, e as interações entre eles; (ii) a análise dos impactos ambientais do projeto e suas alternativas; (iii) a definição das medidas mitigadoras dos impactos negativos. É o conjunto dessas informações que habilitará os grupos impactados a decidirem pela realização ou não da obra, ou pela adoção de projeto alternativo. Não seria razoável conclusão no sentido de que aquela primeira adesão, feita com base em informações um tanto quanto precárias, pela ausência dos estudos cabíveis, esgotasse o processo de consulta da Convenção 169. Portanto, é imperativo considerar que a consulta é de natureza procedimental sempre que a medida projetada assim se apresentar, e se renova a cada fase do procedimento que agregar novas informações sobre impactos a serem suportados pelos grupos diretamente atingidos, bem como sobre as medidas tendentes a mitigá-los e compensá-los.
A consulta também pressupõe que nenhuma, absolutamente nenhuma, fase da obra se inicie antes que estejam disponíveis todos os dados técnicos acima referidos, que permitam aos grupos se posicionarem nesse processo dialógico. A despeito da obviedade da assertiva, o que se vem observando, no Brasil, é que muitas das informações que deveriam constar do diagnóstico só são produzidas mais tardiamente, como condicionantes das licenças de instalação e de operação. Assim a obra, no mais das vezes, chega à fase final sem que os grupos tenham acesso à principal informação que os capacitaria a uma decisão consequente: a avaliação dos impactos do empreendimento sobre eles próprios. É evidente a subversão do
processo de consulta em seus três pilares: deixa de ser prévia, de boa fé e dialógica[10].
Ressalto que tal entendimento se assemelha ao de muitos juízes de primeiro grau e de alguns membros de Tribunais Regionais Federais[11]-[12], o que torna a questão complexa e bastante controversa na prática, haja vista as inúmeras liminares concedidas para obstar o prosseguimento de empreendimentos que afetem essas populações em razão da inobservância dos requisitos da consulta que, posteriormente, são derrubadas através de medidas excepcionais, como é o caso dos pedidos de suspensão de liminar e antecipação de tutela junto aos Tribunais Superiores.
Portanto, é controverso no Judiciário e na Administração Pública o momento exato de sua realização. A despeito da controvérsia acima suscitada, a certeza que se tem é de que a consulta deverá ser prévia ao impacto direto sofrido com o empreendimento.
Nessas breves linhas traçamos a origem, a fundamentação e a obrigatoriedade da aplicação do instituto da consulta prevista na Convenção nº 169 da OIT. Ao mesmo tempo, discorremos sobre suas principais características e enfatizamos a celeuma existente ante a não regulamentação do procedimento, a despeito da existência de grupo de trabalho governamental para tanto, notadamente em relação ao momento em que se dará a consulta.
Torçamos para que a consulta seja logo regulamentada e que a celeuma atualmente existente cesse, garantindo efetivamente aos povos indígenas e tribais o direito fundamental a serem consultados sobre as medidas administrativas ou legislativas que lhes afetem diretamente.
[1] KAYSER, Hartmut-Emanuel. Os Direitos dos Povos Indígenas do Brasil: desenvolvimento histórico ao estágio atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editora, 2010, p. 232.
[2] Extraído de http://www.socioambiental.org/inst/esp/consulta_previa/?q=o-que-e#decisões. Acesso em 29 nov. 2014.
[3] Art. 231. (...) § 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
[4] A superioridade jurídica dos tratados e convenções internacionais que versam sobre direitos humanos em relação às leis internas, ficou reconhecida pelo Supremo tribunal Federal por ocasião do julgamento do HC nº 87585 – Pleno, DJE de 26/26/2009).
[5] A Portaria Interministerial nº 35, de 27 de janeiro de 2012 (DOU de 30/01/2012) instituiu grupo de trabalho com “a finalidade de estudar, avaliar e apresentar proposta de regulamentação da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, no que tange aos procedimentos de consulta prévia dos povos indígenas e tribais”. A Portaria foi alterada pela Portaria nº 256, de 10 de junho de 2013 para modificar seus membros. Ainda não se chegou à pretendida regulamentação.
[6] VILLARES, Luiz Fernando. Direitos e Povos Indígenas. Curitiba: Juruá, 2009.
[7] AGRAVO REGIMENTAL NA SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA. GRAVE LESÃO À ORDEM PÚBLICA. OCORRÊNCIA. PEDIDO DE SUSPENSÃO DEFERIDO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. I - A ocorrência de grave lesão à ordem pública constitui fundamento para o deferimento do pedido de suspensão, consoante a legislação de regência (v.g. Lei n. 8.437/1992 e n. 12.016/2009) e a jurisprudência deste eg. Superior Tribunal de Justiça. II - A Convenção 169 da OIT é expressa em determinar, em seu art. 6º, que os povos indígenas e tribais interessados deverão ser consultados "sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente". Contudo, a realização de meros estudos preliminares, atinentes tão-somente à viabilidade da implantação da UHE São Luiz do Tapajós/PA, não possui o condão de afetar diretamente as comunidades indígenas envolvidas. III - Diferentemente, o que não se mostra possível é dar início à execução do empreendimento sem que as comunidades envolvidas se manifestem e componham o processo participativo de tomada de decisão. Agravo regimental desprovido. (AgRg na SLS 1.745/PA, Rel. Ministro FELIX FISCHER, CORTE ESPECIAL, julgado em 19/06/2013, DJe 26/06/2013)
[8] Proferida pela Ministra ELLEN GRACIE. Julgado em 16/03/2007, publicado em DJ 29/03/2007.
[9] Órgão constitucionalmente legitimado para a defesa dos direitos e interesses das populações indígenas, além de estar incumbido da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
[10] PEREIRA, Deborah Macedo Duprat de Britto. A Convenção 169 da OIT e o direito à Consulta Prévia,
Livre e Informada. In Revista Culturas Jurídicas, Vol. 1, Núm. 1, 2014, p. 64/65.
[11] Basta analisar as inúmeras decisões proferidas nos processos que questionam a observância da consulta prévia ligada a empreendimentos hidrelétricos.
[12] Da decisão liminar proferida nos autos da ACP nº 0018408-23.2013.4.01.3200, extrai-se: “Sendo a declaração de utilidade pública, como afirmado pela própria União e ANEEL, ato administrativo que importa em restrição de direitos, deveria a comunidade indígena Waimiri Atroari ter sido consultada há muito tempo, uma vez que sofrerá reflexos diretos da implantação desta LT”.
Procurador Federal e Coordenador de Assuntos Contenciosos da Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI. Ex-Procurador do Estado da Paraíba. Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Católica Dom Bosco - UCDB<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTI, Lívio Coêlho. Breves linhas sobre a consulta prévia, livre e informada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42456/breves-linhas-sobre-a-consulta-previa-livre-e-informada. Acesso em: 23 dez 2024.
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