RESUMO: O presente artigo se propõe a analisar a aplicabilidade da reserva de vagas em concursos públicos para os portadores de deficiência auditiva unilateral à luz da recente decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no Mandado de Segurança n. 18966/DF.
Palavras-chave: deficiência auditiva unilateral, reserva de vagas, concurso público, portadores de necessidades especiais.
INTRODUÇÃO
O julgamento recente do Mandado de Segurança n. 18966/DF, pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, denegando, por maioria de votos, a ordem de reserva de vagas para portadores de necessidades especiais à candidata portadora de deficiência auditiva unilateral contrariou o posicionamento jurisprudencial majoritário adotado pela corte até então e reascendeu a discussão a respeito do tema.
Neste cenário, o presente trabalho tem por objetivo analisar os fundamentos da reserva de vagas em concursos públicos para os portadores de necessidades especiais e a sua aplicabilidade, do ponto de vista jurídico e material, às pessoas com deficiência auditiva unilateral.
O JULGAMENTO DO MS n. 18966/DF
Em 20 de março de 2014, foi publicada no Diário de Justiça Eletrônico a ementa do julgamento proferido pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Mandado de Segurança n. 18966/DF, que por maioria de votos, denegou segurança à candidata deficiente auditiva unilateral que pretendia concorrer nas vagas destinadas aos portadores de necessidades especiais do concurso público de analista judiciário do STJ. A ementa foi assim redigida:
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. CONCURSO PÚBLICO. CONCEITO DE DEFICIENTE AUDITIVO. DECRETO 3.298/99 ALTERADO PELO DECRETO 5.296/2004. APLICAÇÃO AO EDITAL COM AMPARO NORMATIVO. JURIDICIDADE.
PRECEDENTE DO STF. DIVERGÊNCIA FÁTICA QUE DEMANDARIA DILAÇÃO PROBATÓRIA. PRECEDENTES. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO.
1. Cuida-se de writ of mandamus impetrado contra o Ministro Presidente do Superior Tribunal de Justiça e o Diretor Geral do Centro de Promoção de Eventos da Universidade de Brasília (CESPE – UnB), no qual candidata em concurso público, portadora de surdez unilateral, alega que deveria ser enquadrada na qualidade de deficiente físico, por interpretação sistemática dos arts. 3º e 4º do Decreto n. 3.298/99 em cotejo com a Constituição Federal e convenções internacionais.
2. O Decreto n. 5.296/2004 alterou a redação do art. 4º, II, do Decreto n. 3.298/99 e excluiu da qualificação “deficiência auditiva” os portadores de surdez unilateral; a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal frisou a validade da referida alteração normativa. Precedente: AgRg no MS 29.910, Relator Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, Processo Eletrônico, divulgado no DJe 146 em 29.7.2011 e publicado em 1º.8.2011.
3. A junta médica tão somente emitiu laudo técnico em sintonia com as previsões do Edital 1 – STJ, de 8.2.2012, cujo teor meramente remete ao Decreto n. 3.298/99 e suas alterações, que foi o parâmetro do ato reputado coator, em verdade praticado sob o pálio da juridicidade estrita.
4. Para apreciar qualquer argumento no sentido de que haveria alguma incapacidade diversa da impetrante em prol de a alocar na qualidade de deficiente auditiva seria imperioso realizar contraditório e dilação probatória, providências vedadas em sede de rito mandamental. Precedente específico: AgRg na AO 1622/BA, Relator Min.Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 21.6.2011, publicado no DJe – 125 em 1º.7.2011 e no Ement. vol. 2555-01, p. 1. No mesmo sentido: AgRg no RMS 33.928/SC, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 27.10.2011.Segurança denegada.
(MS 18966/DF, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, Rel. p/ Acórdão Ministro HUMBERTO MARTINS, CORTE ESPECIAL, julgado em 02/10/2013, DJe 20/03/2014)
O posicionamento exarado pela Corte Especial marca uma alteração do entendimento que vinha sendo adotado de maneira predominante neste Tribunal Superior, no sentido de que os portadores de surdez unilateral poderiam ser enquadrados como portadores de necessidades especiais para fins da reserva de vagas em concursos públicos.
A CONTROVÉRSIA JURÍDICA
A decisão reascendeu o debate daqueles que, de um lado, entendem que o enquadramento das pessoas com anacusia unilateral na qualidade de portadores de necessidades especiais é mais uma ação afirmativa na concretização das políticas públicas de inclusão, e de outro lado, daqueles que vêm nessa hipótese a violação do princípio da isonomia e a flexibilização prejudicial da proteção aos portadores de necessidades especiais. Para melhor entender os fundamentos de cada corrente, é preciso buscar as bases jurídicas desse debate, que remetem à Constituição Federal de 1988.
É dever do Estado, previsto constitucionalmente, assegurar aos portadores de deficiência física condições diferenciadas de atendimento educacional, trabalho, inclusive através de concursos públicos, aposentadoria, entre outros, com vistas a atender, de forma afirmativa, o postulado da isonomia.
A reserva de vagas aos portadores de necessidades especiais, em concursos públicos, tem previsão no art. 37, VIII, CF/88, e foi detalhada pela Lei n. 7.853/89, que trata da Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência. Por sua vez, o diploma legal foi regulamentado pelos Decretos nºs 3.298/99 e 5.296/2004.
A deficiência física é assim conceituada pelo artigo 3º do Decreto n. 3.298/99:
Art. 3º Para os efeitos deste Decreto, considera-se:
I - deficiência – toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano;
II - deficiência permanente – aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um altere, apesar de novos tratamentos; e
III - incapacidade – uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida.
Por sua vez, o artigo 4º, inciso II, do mesmo decreto, orginalmente traçava um conceito de deficiência auditiva da seguinte forma:
Art. 4º É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas
seguintes categorias:
(...)
II - deficiência auditiva – perda parcial ou total das possibilidades auditivas sonoras, variando de graus e níveis na forma seguinte:
a) de 25 a 40 decibéis (db) – surdez leve;
b) de 41 a 55 db – surdez moderada;
c) de 56 a 70 db – surdez acentuada;
d) de 71 a 90 db – surdez severa;
e) acima de 91 db – surdez profunda; e
f) anacusia;
Com a alteração dada pelo Decreto 5.296/04, o art. 4º passou a vigorar com os seguintes esclarecimentos:
II - deficiência auditiva - perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500HZ, 1.000HZ,
2.000Hz e 3.000Hz;
Assim, cumpre notar que num primeiro momento, a regulamentação não fazia distinção acerca da unilateralidade ou bilateralidade. Posteriormente, entretanto, estabeleceu a obrigatoriedade da anacusia ser bilateral, podendo ser parcial ou total, mas não em relação aos ouvidos comprometidos, mas sim quanto à intensidade da deficiência.
A primeira corrente entende que, inobstante a alteração promovida pelo Decreto n. 5.296/04, o art. 4º, II, do Decreto 3.298/99, que define as hipóteses de deficiência auditiva, deve ser interpretado em consonância com o art. 3º do mesmo diploma legal, de modo a não excluir os portadores de surdez unilateral da disputa às vagas destinadas aos portadores de deficiência física. Cite-se como exemplo do posicionamento adotado por esta corrente as seguintes ementas das Turmas da Primeira e da Terceira Seção:
ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. CONCURSO PÚBLICO. POSSE DE DEFICIENTE AUDITIVO UNILATERAL. POSSIBILIDADE.
1. Hipótese em que o Tribunal de origem, embora reconheça a surdez unilateral, julgou improcedente o mandamus, considerando que a impetrante não se enquadra no conceito de deficiente físico preconizado pelo art. 4º do Decreto 3.298/1999, com redação dada pelo Decreto 5.296/2004 (vigente ao tempo do edital).
2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou-se no sentido de que, no concurso público, é assegurada a reserva de vagas destinadas aos portadores de necessidades especiais acometidos de perda auditiva, seja ela unilateral ou bilateral.
3. Reexaminando os documentos anexos à exordial, depreende-se que, segundo o laudo médico emitido, a candidata tem malformação congênita (deficiência física) na orelha e perda auditiva no ouvido direito, o que caracteriza a certeza e a liquidez do direito ora vindicado, na espécie.
4. Agravo Regimental não provido
(STJ, 2ª Turma, AgRg no RMS 34.436/PE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, julgado em 03/05/2012, DJe 22/05/2012)
ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DECRETO Nº 3.298/99. REDAÇÃO DO DECRETO Nº 5.296/04. DEFICIÊNCIA AUDITIVA UNILATERAL. RESERVA DE VAGA AOS PORTADORES DE NECESSIDADES ESPECIAIS CONCEDIDA. POSSIBILIDADE. RECURSO NÃO PROVIDO.
1. A reserva de vagas aos portadores de necessidades especiais, em concursos públicos, é prescrita pelo art. 37, VIII, da CF/88, regulamentado pela Lei nº 7.853/89 e, esta, pelos Decretos 3.298/99 e 5.296/04.
2. Os exames periciais demonstraram que o recorrente possui total ausência de resposta auditiva no ouvido esquerdo, com audição normal no outro.
3. Com efeito, a surdez unilateral não obsta o reconhecimento do caráter de portador de necessidades especiais, uma vez que o art. 4º, II, do Decreto 3.298/99, que define as hipóteses de deficiência auditiva, deve ser interpretado em consonância com o art. 3º do mesmo diploma legal, de modo a não excluir os portadores de surdez unilateral da disputa às vagas destinadas aos portadores de deficiência física. Precedentes.
4. Recurso não provido
(STJ, 1ª Turma, AgRg no AREsp 22688/PE, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, julgado em 24/04/2012, DJe 02/05/2012)
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA – CANDIDATO PORTADOR DE DEFICIÊNCIA AUDITIVA - RESERVA DE VAGA NEGADA PELA ADMINISTRAÇÃO DEVIDO À COMPROVAÇÃO DE DEFICIÊNCIA AUDITIVA UNILATERAL - MATÉRIA DE DIREITO - POSSIBILIDADE DE IMPETRAÇÃO DO WRIT - APLICAÇÃO ERRÔNEA DA RESOLUÇÃO Nº 17/2003 DO CONADE - LEI Nº 7.853/89 - DECRETOS Nºs 3.298/99 e 5.296/2004 - DIREITO LÍQUIDO E CERTO - RECURSO PROVIDO.
1. A matéria de que trata os autos, qual seja, saber se a surdez unilateral vem a caracterizar deficiência física ou não, é matéria de direito, que não exige dilação probatória, podendo, por conseguinte, ser objeto de mandado de segurança.
2. A reserva de vagas aos portadores de necessidades especiais, em concursos públicos, é prescrita pelo art. 37, VIII, CR/88, regulamentado pela Lei nº 7.853/89 e, esta, pelos Decretos nºs 3.298/99 e 5.296/2004.
3. Os exames periciais realizados pela Administração demonstraram que o Recorrente possui, no ouvido esquerdo, deficiência auditiva superior à média fixada pelo art. 4º, I, do Decreto nº 3.298/99, com a redação dada pelo Decreto nº 5.296/2004. Desnecessidade de a deficiência auditiva ser bilateral, podendo ser, segundo as disposições normativas, apenas, parcial.
4. Inaplicabilidade da Resolução nº 17/2003 do CONADE, por ser norma de natureza infra legal e de hierarquia inferior à Lei nº 7.853/89, bem como aos Decretos nºs 3.298/99 e 5.296/2004.
5. Recurso ordinário provido
(STJ, 6º Turma, RMS 20.865/ES, Rel. Ministro PAULO MEDINA, julgado em 03/08/2006, DJ 30/10/2006, p. 418).
De outro lado, para a segunda corrente, acolhida pela recente decisão do STJ proferida no MS 18966, não se pode menosprezar o fato normativo para realizar interpretação sistemática que objetive negar a alteração do art. 3º, II, promovida pelo Decreto n. 5.296/2004, que excluiu do conceito de deficiente auditivo as pessoas portadoras de surdez unilateral.
No voto vencedor do referido mandamus, o relator para o acórdão, Ministro Humberto Martins, salienta que essa também é a posição já externada pelo Superior Tribunal Federal:
Agravo regimental em mandado de segurança. 2. Concurso público. Decreto 3.298/99 prevê apenas a surdez bilateral como deficiência auditiva. Candidato pretende que surdez unilateral seja reconhecida como condição apta a qualificá-lo de portador de deficiência. 3. Necessidade de dilação probatória. 4. Ausência de argumentos suficientes para infirmar a decisão agravada. 5. Agravo regimental a que se nega provimento.
(STF, AgRg no MS 29.910, Relator Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 21.6.2011, Processo Eletrônico, divulgado no DJe 146 em 29.7.2011 e publicado em 1º.8.2011.)
E cita o seguinte trecho de acórdão da Suprema Corte:
O Decreto 3.298/99, que regulamenta a Lei 7.853/1989, ao dispor sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, qualificou como deficiência auditiva a 'perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz'.
Logo, por si só, a perda auditiva unilateral não é condição apta a qualificar o candidato a concorrer às vagas destinadas aos portadores de deficiência.
O entendimento manifestado pela Corte Especial do STJ vem sendo, a partir de então, reiterado nos julgamentos subsequentes deste tribunal:
ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. VAGAS DESTINADAS A PORTADORES DE DEFICIÊNCIA. SURDEZ UNILATERAL. DECRETO N. 3.298/1999 ALTERADO PELO DECRETO N. 5.296/2004. APLICAÇÃO AO EDITAL COM AMPARO NORMATIVO. PRECEDENTES DO STF E STJ.
1. A controvérsia dos autos gira em torno de saber se pode ou não ser considerada a surdez unilateral - tal como comprovada e expressamente consignada no acórdão recorrido - como circunstância determinante para que o portador assegure o ingresso em cargo público para o qual concorreu pela reserva de vagas destinadas aos portadores de deficiência. 2. O Decreto n. 5.296/2004 alterou a redação do art. 4º, II, do Decreto n. 3.298/99 e excluiu da qualificação "deficiência auditiva" os portadores de surdez unilateral, e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal frisou a validade da referida alteração normativa. Precedente: AgRg no MS 29.910, Relator Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe 1º/8/2011. 3. Tendo em vista o novo posicionamento do STF quanto à matéria, a atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça formou-se no sentido de que os portadores de deficiência auditiva unilateral não podem ser enquadrados como pessoas com deficiência, e assim, não se enquadram nas reservas de vagas. Precedentes: MS 18.966/DF, Rel. Min. Castro Meira, rel. p/ acórdão ministro Humberto Martins, Corte Especial, DJe 20/03/2014; AgRg no REsp 1.374.669/RJ, Rel. Min. Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe 19/5/2014; REsp 1.307.814/AL, Rel. Min. Ari Pargendler, Primeira Turma, DJe 31/3/2014. Agravo regimental improvido.
A par da discussão de cunho formalista, há de se refletir acerca da existência ou não de elementos legitimadores da extensão do discrímen para as pessoas portadoras de surdez unilateral. Segundo os ensinamentos do professor Celso Antonio Bandeira de Melo, o reconhecimento das diferenças que não precede a afronta ao princípio da isonomia exige a existência de um elo de correlação lógica entre a característica diferencial utilizada e a distinção de tratamento em função dela conferida, bem assim que tal correlação não viole interesses consagrados pela Constituição[1]. À luz desse ensinamento, cumpre perquirir os motivos das normas diferenciadoras endereçadas aos portadores de necessidades especiais.
O propósito da Política de Proteção aos portadores de necessidades especiais é garantir a acessibilidade e a igualdade de oportunidades para aqueles que as possuem diminuídas em razão da sua deficiência.
É certo que o portador de perda auditiva bilateral encontra significativas dificuldades no acesso ao material educativo, pois depende de escolas especializadas, cuja oferta é consideravelmente inferior na rede pública. Além disso, depende, ainda, de conhecimentos em leitura labial ou libras, sendo notório que tais recursos de comunicação não são usados em larga escala pelos meios de informação que se valem do som para transmissão de conhecimento (escola, televisores, rádios, etc).
Diferentemente, o portador de anacusia unilateral não se equipara ao surdo porque pode frequentar cursos preparatórios, debater com colegas, assistir a vídeos e ter acesso a todo o material educativo sonoro obtido pelos demais candidatos ditos normais. A deficiência permite interagir normalmente no ambiente de trabalho ou social, e não é externamente perceptível.
Cumpre evidenciar, nesse aspecto, o conceito de pessoa deficiente dado pela Convenção n. 159 da Organização Internacional do Trabalho - OIT -(Convenção sobre reabilitação profissional e emprego de pessoas deficientes), ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto n. 129, de 22 de maio de 1991:
1 - Para efeitos desta Convenção, entende-se por "pessoa deficiente" todas as pessoas cujas possibilidades de obter e conservar um emprego adequado e de progredir no mesmo fiquem substancialmente reduzidas devido a uma deficiência de caráter físico ou mental devidamente comprovada.
Ainda que se reconheça que a redução auditiva unilateral traz limitações, elas não são de ordem a reduzir substancialmente a possibilidade do portador dessa deficiência de "obter e conservar um emprego adequado e de progredir no mesmo".
Perceba-se que ao estender a interpretação aos portadores de anacusia unilateral, equiparar-se-ia a pessoa com perda auditiva parcial, que interage com o mundo intelectual e social, com outra inteiramente surda.
O aparente nobre propósito de ampliar o alcance da norma protetiva pode refletir enorme prejuízo aos seus verdadeiros destinatários, isto é, aqueles que efetivamente têm diminuída, em razão da deficiência, a chance de integrar-se no mercado de trabalho tomadas as mesmas oportunidades daqueles que não possuem deficiência.
Recentemente, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada em Nova York em 30 de março de 2007, foi aprovada pelo Decreto Legislativo n. 186, de 09 de julho de 2008, conforme procedimento do §3º do artigo 5º da Constituição da República de 1988 e promulgada pelo Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009.
Dessa forma, passou a ostentar status de emenda constitucional e tem como alguns de seus princípios gerais o respeito pela dignidade inerente, a autornomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas e a independência de pessoas, a não-discriminação, a plena e efetiva participação e inclusão na sociedade, a acessibilidade e a igualdade de oportunidades conforme preconiza o artigo 3º.
O referido tratado internacional define como pessoas com deficiência "aquelas que têm impendimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas".[2]
Relativamente ao trabalho, o artigo 27 da Convenção estabelece a igualdade de oportunidades com as demais pessoas e assegura, ainda, que as adaptações razoáveis sejam realizadas, fixando como diretriz a empregabilidade no setor público e privado que devem se utilizar, inclusive, de ações afirmativas. .
Para os propósitos da Convenção, define no artigo 2º que comunicação abrange as línguas, a visualização de textos, o braille, a comunicação tátil, os caracteres ampliados, os dispositivos de multimídia acessível, assim como a linguagem simples, escrita e oral, os sistemas auditivos e os meios de voz digitalizada e os modos, meios e formatos aumentativos e alternativos de comunicação, inclusive a tecnologia da informação e comunicação acessíveis.
Cumpre perceber que as pessoas com deficiência auditiva unilateral não necessitam de tecnologias assistivas citadas no dispositivo supramencionado, e interagem com o mundo a partir das mesmas ferramentas de comunicação utilizadas por quem não apresenta tal deficiência.
CONCLUSÃO
Do exposto, vê-se que a recente decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Mandado de Segurança n. 18966/DF, entendeu, com base em precedente do Supremo Tribunal Federal, que a surdez unilateral não pode ser considerada como deficiência auditiva em virtude da nova redação do Decreto n. 3.298/200, que excluiu essa hipótese, não sendo possível menosprezar o fato normativo para realizar interpretação sistemática que objetive negar a alteração legal.
A decisão parece acertada também se analisada sob o aspecto do elemento diferenciador da norma que prevê reserva de vaga em concurso público, na medida em que a flexibilização da norma protetiva aos portadores de necessidades especiais poderia prejudicar os seus reais destinatários, que efetivamente têm a acessibilidade e a igualdade de oportunidades diminuídas em razão de sua deficiência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição: República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
________. Decreto n. 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Regulamenta a Lei no 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3298.htm. Acesso em 13 de dez. de 2014.
________. Decreto n. 5.296, de 02 de dezembro de 2004. Regulamenta as Leis nos 10.048, de 8 de novembro de 2000, que dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5296.htm. Acesso em 13 de dez. de 2014.
________. Decreto n. 129, de 22 de maio de 1991. Promulga a Convenção nº 159, da Organização Internacional do Trabalho - OIT, sobre Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas Deficientes. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0129.htm. Acesso em 13 de dez. de 2014.
________. Decreto Legislativo n. 186, de 2008. Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/congresso/DLG/DLG-186-2008.htm. Acesso em 13 de dez. de 2014.
CELLO, Celso Antonio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 19. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2001.
[2] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 21.
Procuradora Federal desde 2007, com atuação no contencioso da área previdenciária, administrativa e de pessoal. Pós-graduada em Direito Público e em Direito Tributário.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PERES, Camila Gomes. A deficiência auditiva unilateral e a reserva de vagas em concursos públicos para portadores de necessidades especiais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 dez 2014, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42496/a-deficiencia-auditiva-unilateral-e-a-reserva-de-vagas-em-concursos-publicos-para-portadores-de-necessidades-especiais. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Ursula de Souza Van-erven
Por: André dos Santos Luz
Por: Jorge Henrique Sousa Frota
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