Resumo: O texto trata da origem do instituto do bem de família, a sua evolução histórica e sua disciplina do Direito brasileiro.
1. INTRODUÇÃO
O bem de família representa uma proteção conferida pelo ordenamento jurídico ao domicílio da entidade familiar, protegendo-o de penhora por dívidas.
Essa proteção ao abrigo da família possui fundamental importância para concretização do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito fundamental à moradia, insculpidos respectivamente nos artigos 1º, III e art. 6º da Constituição da República.
A proteção à família se justifica por ser ela considerada a base da sociedade, necessária para a manutenção do Estado. Silvio Rodrigues assevera que:
Dentro dos quadros de nossa civilização, a família constitui a base de toda a estrutura da sociedade. Nela se assentam não só as colunas econômicas, como se esteiam as raízes morais da organização social. De sorte que o Estado, na preservação de sua própria sobrevivência, tem interesse primário em proteger a família, por meio de leis que lhe assegurem o desenvolvimento estável e a intangibilidade de seus elementos institucionais.[1]
Nesse contexto, o presente artigo irá analisar a origem histórica desse instituto, apontando o seu surgimento na República do Texas pelo Homestead Exemption Act. Em seguida, será abordada a incorporação desse instituto no Direito brasileiro. Por fim, será feito uma análise da dualidade de regimes prevista no ordenamento pátrio, estabelecendo-se as distinções entre o bem de família convencional e o bem de família legal.
2. ORIGEM HISTÓRICA DO BEM DE FAMÍLIA
O tratamento jurídico específico do instituto do bem de família surgiu na República do Texas no século XIX, a partir da edição do Homestead Exemption Act, em 26 de janeiro de 1839.
Com o final da colonização inglesa, os bancos europeus fixaram-se nos Estados Unidos, enxergando ali um grande potencial de desenvolvimento e a possibilidade de maiores lucros. Isso gerou uma enorme facilidade de crédito, sem exigência de garantias para o cumprimento dessa obrigação. Essa facilidade de crédito criou a ilusão do lucro fácil, levando os americanos a abusarem dos empréstimos e a uma desenfreada atividade especulativa. Essa exagerada especulação gerou um enorme endividamento dos americanos, de maneira que não havia mais lastro econômico para sustentar a situação.
Surgiu, então, uma grande crise entre os anos de 1837 a 1839, acarretando o fechamento de aproximadamente 900 bancos, com 33.000 falências e uma perda estimada de US$ 440.000.000,00 no período de três anos.
Essa crise atingiu não só os banqueiros imprudentes, mas, principalmente os devedores, que sofreram penhoras em seus bens, tendo que sofrer execução em suas terras, animais e instrumentos agrícolas, tornando as famílias texanas ameaçadas pela miséria.
Para proteger as suas famílias do desabrigo e consequente desestruturação, surgiu em 1839 a Lei do Homestead Exemption Act, tornando impenhorável, por qualquer execução judicial, os imóveis rurais destinados à moradia familiar, contendo o seguinte teor:
De e após a passagem desta lei, será reservado a todo cidadão ou chefe de uma família, nesta República, livre e independente do poder de um mandado de fieri facias ou outra execução, emitido por qualquer Corte de jurisdição competente, 50 acres de terra, ou um terreno na cidade, incluindo o bem de família dele ou dela, e melhorias que não excedam a 500 dólares, em valor, todo mobiliário e utensílios domésticos, provendo para que não excedam o valor de 200 dólares, todos os instrumentos (utensílios, ferramentas) de lavoura (providenciando para que não excedam a 50 dólares), todas ferramentas, aparatos e livros pertencentes ao comércio ou profissão de qualquer cidadão, cinco vacas de leite, uma junta de bois para o trabalho ou um cavalo, vinte porcos e provisões para um ano; e todas as leis ou partes delas que contradigam ou se oponham aos preceitos deste ato, são ineficazes perante ele. Que seja providenciado que a edição deste ato não interfira com os contratos entre as partes, feitos até agora (Digest of the Laws of Texas § 3.798).
O Homestead teve um forte conteúdo social, objetivando o desenvolvimento de uma sociedade cujos cidadãos tivessem o mínimo necessário a uma vida digna, impedindo a sucumbência da entidade familiar em face do domínio econômico, evitando a falência do próprio Estado.
Mais tarde, com a anexação do Texas ao território dos Estados Unidos da América, o instituto do bem de família espalhou-se aos demais estados e, de modo geral, foi adotado por todas as legislações do mundo ocidental, inclusive a do Brasil.
3. O BEM DE FAMÍLIA NO DIREITO BRASILEIRO
Inicialmente, o projeto do Código Civil elaborado por Clóvis Bevilacqua não contemplava o bem de família, apesar de antecedido por intenso debate visando a sua regulamentação. O bem de família foi inserido por meio de proposta do Senador maranhense Fernando Mendes de Almeida, sendo precariamente regulado em apenas quatro artigos no Livro da Parte Geral Código Civil de 1916. Para se obter a proteção conferida ao bem de família era necessário registrá-lo por instrumento público e, além disso, havia necessidade de publicação.
Inicialmente, era permitida a instituição do bem de família apenas ao chefe de família. A doutrina dominante na época afirmava que nesse conceito se enquadrava apenas o marido e, excepcionalmente, a mulher quando estivesse na chefia da família, como, por exemplo, quando fosse viúva.
Com o advento da Constituição de 1988, consagrou-se a igualdade entre homens e mulheres quanto aos direitos e deveres relativos à sociedade conjugal. Logo, ainda na vigência do Código Civil de 1916, a melhor doutrina já considerava que a chefia da família era exercida por ambos os cônjuges e, assim, ambos poderiam instituir o bem de família.
Porém, essa proteção se revelava insuficiente, tendo em vista que o país atravessava uma época de galopante inflação em que, ao término do mês, corroía-se quase a totalidade do poder aquisitivo da moeda. O governo lançava planos econômicos, que, ao invés de diminuir os efeitos da crise, aprofundava a crise econômica, arruinando a economia e levando consigo a maioria da população, que não tinha como se defender.
Nesse cenário, foi editada, em 8 de março de 1990, a Medida Provisória n. 143, com o objetivo de regulamentar a impenhorabilidade do imóvel residencial do casal ou entidade familiar, bem como dos móveis quitados, colocando-os a salvo de execuções por dívidas, independente da vontade do seu titular. O Congresso Nacional rapidamente converteu essa Medida Provisória em lei, promulgando, no mesmo mês, a Lei 8.009/90. Essa lei regulamentou o bem de família automático, independente de ato solene, que passou a ser chamado de bem de família legal.
Com isso, consagrou-se no Direito brasileiro a dualidade de regimes, admitindo-se duas modalidades de bem de família: o bem de família convencional e o bem de família legal.
O Código Civil de 2002 manteve a dualidade de regimes, disciplinando o bem de família convencional, inserindo-o adequadamente no livro do direito de família, e deixando a disciplina do bem de família legal a cargo da lei específica (Lei 8.009/90). Várias distorções foram corrigidas, tais como a possibilidade de se instituir bem de família por testamento, a extensão do direito a terceiros e a atribuição de legitimidade aos integrantes da entidade familiar, além de limitar o valor do bem a um terço do patrimônio líquido dos instituidores. A maior novidade, no entanto, foi a criação da possibilidade do bem de família abranger valores mobiliários, com a renda destinada à conservação do imóvel e sustento da família, desde que não excedentes ao valor do próprio imóvel.
4. A DUALIDADE DE REGIMES: DISTINÇÃO ENTRE BEM DE FAMÍLIA CONVENCIONAL E BEM DE FAMÍLIA LEGAL
Como visto anteriormente, atualmente coexistem duas categorias de proteção: o bem de família convencional (voluntário), disciplinado pelos artigos 1.711 a 1.722 do Código Civil, e o bem de família legal (obrigatório), que é regulado pela Lei 8.009/90.
No bem de família convencional, a proteção depende de ato voluntário do proprietário do imóvel, que deve constituí-lo por meio de escritura pública, testamento ou doação.
O principal efeito da constituição do bem de família é que o imóvel não será passível de constrição judicial para a garantia de dívida posterior ao seu registro. Essa impenhorabilidade do bem de família convencional não é aplicada apenas nas hipóteses de dívidas anteriores a sua instituição, em caso de execução de tributos relativos ao próprio imóvel e também pelas despesas condominiais.
Por outro lado, o bem de família legal revela-se uma proteção automática ao imóvel residencial da entidade familiar, independente de ato de vontade de seu titular e independente de registro.
Nesse caso, as hipóteses de penhorabilidade do imóvel protegido são mais amplas. No bem de família legal, o art. 3º da Lei 8.009/90 traz sete hipóteses que excepcionam a regra da impenhorabilidade.
São exceções à impenhorabilidade do bem de família legal: créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias; crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato; crédito de pensão alimentícia; cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar; execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar; se o imóvel tiver sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens; obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
Além disso, ao contrário do bem de família convencional que possui eficácia ex nunc, a proteção conferida pelo bem de família legal abrange até mesmo as dívidas anteriores à edição da Lei 8.009/90, conforme disposto na Súmula 205 do STJ: “A Lei 8.009/90 aplica-se à penhora realizada antes de sua vigência”.
O art. 5º, § único da Lei 8.009/90, estabelece que em caso de pluralidade de imóveis, a impenhorabilidade decorrente da proteção do bem de família legal recairá sobre o de menor valor. Já no bem de família convencional, é livre a indicação do imóvel, podendo a proteção recair sobre o imóvel de maior valor.
Contudo, ao constituir o bem de família convencional, o seu titular deve demonstrar a sua solvabilidade, por meio de comprovação de patrimônio líquido correspondente a duas vezes o valor do imóvel. No bem de família legal, não é necessário comprovar a solvabilidade, já que a proteção é automática.
Por fim, pode-se incluir valores mobiliários no âmbito da proteção do bem de família convencional, desde que vinculados à preservação física do imóvel ou ao sustento da família. Assim, pode-se, por exemplo, vincular uma aplicação financeira para garantir à entidade familiar meios de prover a sua subsistência. No bem de família legal, a impenhorabilidade atinge não apenas o imóvel, mas também construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados, conforme previsto no art.1º, da Lei 8009/90.
5. CONCLUSÃO
Pelo exposto, verifica-se que a proteção ao único imóvel de uma pessoa, que serve para sua residência e de sua família, é um importante meio protetivo da instituição da família, tratada como base da sociedade.
Assim, a proteção conferida ao bem de família coaduna-se com os princípios da dignidade humana, da solidariedade social, da igualdade substancial, da erradicação da pobreza, da função social da propriedade, além do direito social à moradia.
Portanto, conclui-se que essa proteção revela-se um instrumento que visa evitar a prevalência dos interesses particulares dos credores, em favor da preservação da dignidade do indivíduo e da sua família.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de família: com comentários à Lei 8.009/90. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
CZAJKOWSKI, Rainer. A impenhorabilidade do bem de família: comentários à Lei 8.009/90
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, vol. 1.
RIZZARDO, Arnaldo. Parte Geral do Código Civil, Rio de Janeiro: Forense, 2003.
SANTOS, Marcione Pereira dos. Bem de família: voluntário e legal. São Paulo: Saraiva, 2003.
[1] RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: direito de família, vol. 6, 28ª ed. rev. e atual. por Francisco José Cahali.
São Paulo: Saraiva, 2004, p.5.
Procurador Federal. Graduado pela UFRJ, Pós-Graduado em Direito Público, Pós-Graduado em Direito Processual Civil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DUARTE, Guido Arrien. A evolução histórica do bem de família e a sua disciplina no ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 dez 2014, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42588/a-evolucao-historica-do-bem-de-familia-e-a-sua-disciplina-no-ordenamento-juridico-brasileiro. Acesso em: 22 dez 2024.
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