Resumo: O presente trabalho tenta resolver, por meio do método da revisão bibliográfica, a equação entre democracia e sustentabilidade. A resposta está orientada para o desenvolvimento da cidadania por meio da sustentabilidade como projeto democrático e, aqui, se volta à questão socioambiental.
Palavras-chave: Democracia – Sustentabilidade – Globalização
Abstract: This paper tries to solve, by the method of literature review, the equation between democracy and sustainability. The answer is geared towards the development of citizenship through sustainability as a democratic project, and here turns to the environmental issue.
Keywords: Democracy – Sustainability – Globalization.
INTRODUÇÃO
As discussões envolvendo democracia e sustentabilidade se concentram, de modo geral, na (im)possibilidade de conciliá-las frente ao processo de globalização. No presente trabalho, propõe-se fazer um levantamento dos atuais dilemas do processo de globalização, para, então, apresentar o pensamento sistêmico como forma de conciliar a dimensão econômica da globalização com as suas demais dimensões – político-jurídica, cultural, ambiental e social – permitindo, assim, a emergência da sustentabilidade como projeto democrático.
1 TENSÕES ENTRE GLOBALIZAÇÃO, DEMOCRACIA E SUSTENTABILIDADE
A globalização atual tem como traço principal a busca pelo fim econômico. Duas correntes a impulsionam: a tecnológica e a de desregulamentação, nesta incluída a privatização, a liberalização dos fluxos de capitais, a abertura das economias domésticas, a expansão do comércio global e as políticas de crescimentos orientadas para a exportação.
As demais dimensões da globalização, embora existentes, são pouco praticadas, razão por que Hazel Henderson (2007, p. 29) refere que se estaria vivendo um processo de pseudoglobalização, marcado pela globalização especulativa de nítido viés econômico.
Henderson (2007, p. 30) refere que se estaria vivendo em um cassino global, onde a economia é irreal, pois a teoria de mercado diz que se deve permitir o fluxo do investimento para onde possa ser de melhor uso, porém o cenário atual não permite que isso aconteça e privilegia o retorno rápido ao invés do investimento a longo prazo.
Do mesmo modo é o pensamento de Bauman (2001, p. 181) quando refere que os impactos mais fundamentais da globalização são o divórcio entre o poder e a política e o deslocamento das funções antes exercidas pelas autoridades políticas para o âmbito do mercado, de um lado, e para a esfera da vida política individual, de outro.
Diante desse panorama, Henderson (2007, p. 38) propõe uma solução que não visa à aniquilação da globalização, mas à adoção do uso do pensamento sistêmico e de uma abordagem mais holística como caminhos para a ruptura com o pensamento econômico convencional, preso a uma visão estreita de mercados e de PIB.
Todavia, a globalização não possui apenas pontos negativos. Dentre seus aspectos positivos, elenca-se, por exemplo, a emergência e o compartilhamento dos princípios da justiça social, da participação cidadã e da consciência ecológica nas visões da sociedade e da economia global (HENDERSON, 2007, p. 38).
O compartilhamento dos conceitos de desenvolvimento sustentável, de tecnologias mais verdes, da sustentabilidade local, da economia caseira, da agricultura organizada baseada em contratos com a comunidade e os novos indicadores além do PIB também podem ser citados como benefícios trazidos pela globalização (HENDERSON, 2007, p. 39-40).
Em relação aos indicadores que compõem a forma de cálculo do PIB, Henderson (2007, p. 40) refere que eles demonstram uma contabilidade irreal, pois fazem com que a globalização tal qual posta tenha uma boa aparência ao ser ignorado o desgaste dos recursos naturais e feito o desconto dos riscos futuros. A autora (HENDERSON, 2007, p. 40) propõe ir além das limitadas ferramentas de medição econômica que são utilizadas de modo a se desenvolver uma abordagem mais sofisticada para entender o sistema global que está sendo criado.
A proposta de Henderson (2007, p. 40) é a adoção de novas métricas multidisciplinares para medir a qualidade de vida, que devem complementar os atuais sistemas de PIB das contas nacionais para registrar contabilmente o capital social e humano, os ativos ecológicos e o trabalho não-pago, bem como incluir o orçamento de ativos de modo a contabilizar a infraestrutura, a saúde, o ambiente e a cultura e outros investimentos públicos ao invés de serem contabilizados como despesas no PIB, o que acaba causando déficits orçamentários e superestimativa da inflação.
O mesmo pensamento é compartilhado por Gabriel Ferrer em artigo intitulado “Calidad de vida, medio ambiente, sostenibilidad y ciudadanía ¿construimos juntos el futuro?” (2012). Sustenta Ferrer a necessidade de criação de índices diferentes dos usuais de medição da qualidade de vida (2012, p. 311). Ao invés de ser medida a riqueza e a empregabilidade, deveriam ser aferidas questões subjetivas não tão perceptíveis ou numeráveis, o que seria possível por meio da sustentabilidade, entendida como meio de romper com os pressupostos racionalmente justificados pela economia (FERRER, 2012, p. 311).
Ao fazer prognósticos, Henderson (2007, p. 37-38) vê potencial positivo na globalização por meio da nova economia da informação em rede, que permite a ampliação do pluralismo e o avanço dos direitos humanos, por exemplo. O avanço das organizações e movimentos de pessoas trata-se agora de um terceiro setor – sociedade civil organizada, distinto do mundo, que faz com que os setores público e privado sejam mais responsabilizados.
De acordo com as teorias sistêmicas mais recentes da sociedade global, a sociedade civil ocupa o espaço reservado à formação das demandas que se dirigem ao sistema político e às quais o sistema político tem o dever de responder (BOBBIO, 2012, p. 36). Assim, o “contraste entre sociedade civil e Estado põe-se então como contraste entre quantidade e qualidade das demandas e capacidade das instituições de dar respostas adequadas e tempestivas” (BOBBIO, 2012, p. 36).
Assim, a sociedade civil é vista como a principal fonte de inovação social apta a reformar a economia global e a reformular suas instituições fazendo com que estejam alinhadas com os princípios da justiça, da democracia, do desenvolvimento humano e da sustentabilidade ecológica.
Delineado o estado atual da arte de globalizar voltado principalmente à perspectiva econômica, bem como a necessidade de desenvolver suas demais dimensões, resta analisar qual o papel que cabe à sustentabilidade nesse contexto como forma de (re)afirmar o projeto democrático.
2 PARA ALÉM DA GLOBALIZAÇÃO E DA DEMOCRACIA: O EXERCÍCIO DA CIDADANIA POR MEIO DA SUSTENTABILIDADE
Gabriel Real Ferrer (2012, p. 312) refere ser a sustentabilidade um novo paradigma a ser enfrentado pela humanidade, construído pela vontade de a sociedade perpetuar-se no tempo. Ferrer (2012, p. 312) a relaciona com uma busca por harmonia em todas as dimensões de relacionamento que caracterizam a existência humana, seja consigo mesmo, seja com o próximo, seja com o ambiente em que a própria vida se desenvolve.
A preocupação da comunidade internacional ampliou o aspecto puramente ambiental da sustentabilidade para abranger, além da relação amistosa homem/natureza, também a relação homem/homem, que permita com que viva em paz com ele mesmo (FERRER, 2012, p. 319).
Ferrer (2012, p. 319) relaciona, assim, a sustentabilidade ao exercício da cidadania por meio do desenvolvimento da ideia de solidariedade, que esteve esquecida quando do exercício das primeiras dimensões de direitos humanos, voltadas aos ideais de liberdade e igualdade, ou seja, aos direitos de defesa e a prestações de cunho nitidamente individual.
A vocação da sustentabilidade é trazer soluções que sirvam a todos, sem importar onde se encontram ou onde nasceram trazendo a esperança de uma sociedade futura global e melhor (FERRER, 2012, p. 320).
Todavia, para que seja possível o desenvolver da sustentabilidade de modo a trazer benefícios à cidadania, faz-se necessária a superação de uma condição de existência digna, que ultrapasse a barreira de necessidades vitais básicas para proporcionar ao sujeito um lugar de participação no meio social, tendo, portanto, de uma forma ainda que mínima, uma garantia do exercício dessa cidadania.
Esse reposicionamento do sujeito inevitavelmente gerará reflexos no processo democrático fazendo com que, além do exercício do democracia representativa, ele venha a exercer a democracia participativa, ou seja, ao invés de desempenhar o papel passivo naquela, por meio da participação, ele será capaz de desenvolver o papel ativo na sociedade, fazendo com que, além de paradigma, a sustentabilidade se afirme como projeto democrático.
Reforça-se, assim, a necessidade de os direitos individuais e sociais estarem bem sedimentados para que se possa, então, desenvolver a sustentabilidade como a face oculta da solidariedade[1], não se olvidando que isso não é tarefa fácil em países de modernidade tardia como o Brasil.
Nesse sentido, Ferrer destaca que, além de um direito à sustentabilidade, deve-se pensar em uma sustentabilidade econômica e uma sustentabilidade social, o que envolve, respectivamente, instrumentos globais de redistribuição de riquezas e de luta contra a desigualdade social, possível por uma nova forma de governo global, respeitador do local.
Diante desse novo paradigma, deve-se atentar, também, à finitude dos recursos naturais e à necessidade de preservação dos bens culturais. “A ambivalência entre natureza e cultura tornam-se essenciais para a análise do que é realmente significativo para a humanidade em termos de patrimônio a ser legado e protegido” (GUIMARÃES, 2005).
Inicialmente, acreditou-se que, considerada a possibilidade de esgotamento dos bens naturais, a tendência seria uma revolução nos padrões de consumo de modo a frear o desgaste no meio ambiente. Todavia, na prática, não foi o que ocorreu.
Edmar Bacha (2010, p. 52-53) ressalta que a escassez dos recursos naturais é um fenômeno recente. A natureza não era objeto de indagação dos economistas, pois era um bem livre, de oferta ilimitada e preço zero (BACHA, 2010, p. 53). A partir do momento em que foi se dando conta de que a natureza é finita e, portanto, escassa, emergiu o problema econômico, qual seja, como alocar recursos escassos com usos alternativos (BACHA, 2010, p. 53). Entretanto, ressalta Bacha (2010, p. 53) que o problema econômico deriva de que a natureza não tem dono, o que gera problemas na forma de precificação desse bem e de regulação de uso eficiente de modo que se possa preservar às gerações futuras.
Ferrer (2012, p. 312) sugere a generalização da educação global fundada em valores coletivos a fim de que se construa uma sociedade empática, o que somente seria possível por meio da força coercitiva do Direito, isto é, o Direito a legitimar a cidadania desde que protegido o meio ambiente.
A proposta de Ferrer está calcada no fato de que o meio ambiente tem sido dominado pelo Direito, que o coloca como objeto e não como sujeito de direitos, razão por que propõe a substituição da visão antropocêntrica do Direito pela ecocêntrica como modo de afirmar a sustentabilidade e permitir o exercício da democracia (FERRER, 2012, p. 313).
Para Ferrer (2012, p. 313), o reconhecimento da natureza como sujeito de direitos faz parte de uma revolução cultural, e não tecnológica, pois o olhar não se fixa no homem mas no próprio meio ambiente, o que envolveuma alteração na arquitetura conceitual do Direito.
Bacha (2010, p. 56), por sua vez, acredita ser a tecnologia a responsável pela transformação capaz de aliar o desenvolvimento econômico, social, ambiental e jurídico à sustentabilidade.
Entretanto, Bacha (2010, p. 58) aponta que, no caso do Brasil, o crescimento industrial já estabilizou de modo que os grandes impactos ambientais são gerados pelo desmatamento e pela pecuária. O economista (BACHA, 2010, p. 57) também ressalta que, ao contrário da ideia defendida pelos ecologistas de preservação do planeta do jeito que ele é, a atividade humana o modifica o tempo todo, o que faz com que a sustentabilidade não seja um problema econômico, mas de crescimento populacional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Frente ao exposto, tem-se que é necessária a superação da globalização econômica, apenas voltada ao lucro, para ser desenvolvido um novo paradigma globalizante, calcado nos ideias de igualdade e de solidariedade, e não apenas no de liberdade.
Um dos meios propostos para essa redefinição e reafirmação da globalização é a sustentabilidade como forma de exercer a cidadania, o que permitirá com que, além da esfera econômica, seja desenvolvida a esfera social, jurídico-política, ética e ambiental, valores esquecidos pela mundialização.
O desafio, portanto, está lançado e, apesar de os caminhos para a (re)aproximação entre a democracia e a sustentabilidade estarem traçados, resta saber se, na prática, serão efetivados de modo a fazer da sustentabilidade um projeto democrático.
REFERÊNCIAS
BACHA, Edmar. Nosso problema é a natureza ser um bem sem dono. In: ARNT, Ricado. O que os economistas pensam sobre sustentabilidade. São Paulo: Ed. 34, 2010.
BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade. Para uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2012.
FERRER, Gabriel Real. Calidad de vida, medio ambiente, sostenibilidad y ciudadanía ¿construimos juntos el futuro?. Novos Estudos Jurídicos, v. 17, n. 3, Dez. 2012. ISSN 2175-0491. Disponível em:<http://siaiweb06.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/4202>. Acesso em: 09 Jan. 2013.
GUIMARÃES, Bergson C. Fundamentos ético-filosóficos para a preservação dos bens culturais. In: Revista magister de direito ambiental e urbanístico. Porto Alegre: Magister, 2005, v. 48.
HENDERSON, Hazel. Além da globalização. Modelando uma economia global sustentável. São Paulo: Cultrix, 2007.
MEDEIROS, Fernanda F.; PETTERLE, Selma R. Biodiversidade: uso inclusivo e sustentável do ambiente. In: Revista magister de direito ambiental e urbanístico. Porto Alegre: Magister, 2005, v. 48.
[1]Tema já desenvolvido pela autora em artigo intitulado “Sustentabilidade – a face oculta da solidariedade”. Disponível em <http://www.idb-fdul.com/uploaded/files/2014_10_07949_07970.pdf>. Revista do Instituto de Direito Brasileiro da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Ano 3 (2014), n. 10, 7949-7970. ISSN: 2182-7567.
Mestranda em Direito, Democracia e Sustentabilidade pelo Complexo de Ensino Superior Meridional (IMED); especialista em Direito Processual Civil pela LFG - Anhanguera; especialista em Direito Público pela PUC/RS; graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS); membro do grupo de pesquisa intitulado "Jurisdição e Democracia", vinculado à IMED; Procuradora Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOSS, Marianna Martini Motta. Democracia e sustentabilidade: caminhos para a (re)aproximação diante do processo de globalização Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42602/democracia-e-sustentabilidade-caminhos-para-a-re-aproximacao-diante-do-processo-de-globalizacao. Acesso em: 23 dez 2024.
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