RESUMO: O objetivo do presente artigo é explorar a crise do Estado Social de Direito e a formação do atual Estado Democrático de Direito, tendo como fio condutor o pensamento de Jürgen Habermas a respeito.
PALAVRAS-CHAVE: Estado Social. Crise. Estado Democrático de Direito. Surgimento.
1. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 preconiza, em seu artigo 1º, que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito.
Trata-se de afirmação forte, com pretensões típicas de uma constituição moderna, ou seja, de realmente fundar algo novo, constituindo uma nova realidade social.
O objetivo do presente artigo é procurar compreender a formação deste novo paradigma do Estado Democrático de Direito e suas implicações para a interpretação e aplicação do Direito, a partir da crise do paradigma do Estado Social e segundo o pensamento de Jürgen Habermas. Não se trata, pois, de analisar historicamente a realidade propriamente brasileira, mas de procurar identificar as mudanças gerais que se encontram na base da constituição desse novo paradigma.
2. CRISE DO ESTADO SOCIAL E SURGIMENTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Os problemas do Estado Social tornaram-se evidentes com a crise econômica da década de 70 do Século XX, que colocou em pauta a capacidade de planejamento das Administrações estatais burocráticas na busca pela realização dos programas formulados com o objetivo de materializar a igualdade de todos.
Os problemas dessa materialização de direitos, se de um lado, apresentam-se de um ponto de vista do questionamento da capacidade econômico-gerencial do Estado para suportar as prestações sociais, de outro refere-se à própria legitimidade das políticas adotadas.
Com o crescente aumento da complexidade da sociedade, tornaram-se mais evidentes as incertezas e as contingências. Riscos afiguraram-se cada vez mais visíveis. Isso teve reflexos na própria atividade parlamentar, que começou a produzir regras (leis) menos gerais, abstratas e precisas quanto à sua hipótese de aplicação. Para fazer frente às contingências surgiram leis específicas, experimentais, temporárias e, dentre outras, leis que trouxeram cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados (HABERMAS, 2003a, p. 174).
A margem destinada à Administração estatal para executar os programas legalmente formulados de maneira aberta garantiu-lhe um amplo espectro de atuação, que foi além de meras decisões pragmáticas de tecnocratas, tendo englobado mesmo “o escalonamento dos bens coletivos, a escolha entre fins concorrentes e a avaliação normativa de casos particulares” (HABERMAS, 2003a, p. 184). Isso provocou uma crise de legitimidade, pois a Administração, afastada da gênese democrática dos direitos, passou a se autoconduzir, a partir das decisões de uma burocracia tecnocrata, que terminava por “programar” a noção de bem comum (CARVALHO NETTO e SCOTTI, 2011, p. 108-109). Consoante ressalta Habermas (2003a, p. 173),
as instâncias estatais que instrumentalizam direitos para realizar fins coletivos tornam-se autônomas, entrando numa parceria com seus clientes mais poderosos e formando uma administração de bens coletivos, sem subordinar a escolha dos fins ao projeto de realização de direitos inalienáveis.
As teorias interpretativas do Direito subjacentes legitimavam essas práticas de aplicação do Direito no Estado Social, tanto no plano administrativo, quanto no plano judicial. Kelsen, por exemplo, propugnava que a autoridade/juiz diferenciava-se do legislador apenas por uma questão de grau, possuindo, assim, generosa liberdade para criar o Direito, a partir de uma postura voluntarista que lhe permitia colmatar espaços incompletos da lei, decidir dentre várias soluções legais possíveis e, mesmo, no extremo, decidir completamente à margem da moldura legal.
H. L. A. Hart, outro positivista, de sua sorte, defendia que, para os casos em que uma regra não fosse clara ou se afigurasse inexistente para regular determinada situação, o aplicador/juiz teria liberdade para decidir conforme sua discricionariedade.
Hart, como Austin, reconhece que as regras jurídicas possuem limites imprecisos (ele se refere a elas como tendo uma “textura aberta”) e, ainda como Austin, explica os casos problemáticos afirmando que os juízes têm e exercitam seu poder discricionário para decidir esses casos por meio de nova legislação (DWORKIN, 2007, p. 35).
As consequências desse tipo de conformação estatal voltada à materialização pura de direitos verificam-se na mácula ao princípio da separação de poderes e na formação de um rebanho de clientes impossibilitados de se autodeterminar, posto que dependentes de um Estado paternalista e de suas dádivas. Essa diluição do Direito na Política, entretanto, não deveria ocorrer, já que “a partir do momento em que se criam políticas que não obedecem mais às condições da gênese democrática do direito, perdem-se os critérios que permitiriam avaliá-las normativamente” (HABERMAS, 2003a, p. 171).
Para debelar essa crise e garantir mecanismos adequados aos desafios cada vez maiores da sociedade complexa contemporânea surge um novo paradigma de Estado, que traz consigo também uma nova maneira de se pensar e fazer o Direito. Trata-se do Estado Democrático de Direito, que busca restabelecer a autonomia do indivíduo, o equilíbrio constitucional dos poderes e a racionalidade na interpretação/aplicação do Direito.
Nesse novo paradigma, a liberdade e a igualdade - núcleos centrais da autonomia dos indivíduos, ou seja, seus direitos fundamentais -, deixam de ser meramente formais (como no Estado Liberal) ou puramente materiais (como no Estado Social). Conforme ressaltam Menelick e Scotti, forma e matéria, agora, passam a ser equiprimordiais, de sorte que
a materialização, conquanto importante, deve resultar do próprio processo de afirmação dos sujeitos constitucionais e contar com garantias processuais (formais) de participação e de controle por parte dos afetados pelas medidas adotadas em seu nome, e, pelo menos retoricamente, visando o seu bem-estar (2011, p. 109).
Não há mais, contudo, a pré-definição de “um determinado ideal de sociedade, nem [de] uma determinada visão de vida boa ou de uma determinada opção política” (HABERMAS, 2003a, p. 190). Assim, ao contrário dos paradigmas modernos anteriores (Estados Liberal e Social), o Direito não será legítimo por expressar verdades imutáveis, concretizadas em leis pela melhor, mais rica e culta sociedade da época, nem por ser puramente materializado por uma burocracia estatal a serviço de um bem comum definido por tecnocratas.
No atual paradigma do Estado Democrático de Direito, a formação e a interpretação do Direito não mais estão restritas ao Estado. A esfera pública alarga-se para além das esferas estatais, de sorte que o Direito, na mesma esteira, abre-se à sociedade e à participação dos interessados - tidos ao mesmo tempo como autores e destinatários das normas a serem produzidas (HABERMAS, 2003b, p. 169), – de maneira a formar-se discursivamente a partir dos influxos da sociedade civil, mobilizada em associações, grupos, partidos etc. Diante disso, legítimo será aquele Direito produzido ou gerado discursivamente, num processo que garanta o direito fundamental de participação política e controle de cada interessado.
Cumpre ressaltar que essa gênese do Direito no atual paradigma não resulta de uma amarração paradoxal de direitos fundamentais (liberdade e igualdade) com a vontade da maioria (soberania popular). É que, sob o signo do Estado Democrático de Direito, tais elementos são cooriginários, ou seja, os direitos fundamentais não constituem uma barreira à vontade da maioria, mas sim uma explicitação da prática de como a autolegislação democrática deverá ocorrer (HABERMAS, 2003b, p. 155 e 171). Dessa forma, acentuam Carvalho Netto e Scotti que os direitos fundamentais são hoje performativos do próprio Direito, eis que, atualmente,
[...] não há espaço público sem respeito aos direitos privados à diferença, nem direitos privados que não sejam, em si mesmos, destinados a preservar o respeito público às diferenças individuais e coletivas na vida social. Não há democracia, soberania popular, sem a observância dos limites constitucionais à vontade da maioria, pois aí há, na verdade, ditadura; nem constitucionalismo sem legitimidade popular, pois aí há autoritarismo (2011, p. 98-99).
Como decorrência da complexidade cada vez maior da sociedade, do reconhecimento da precedência dos direitos fundamentais na conformação do Direito e da inexistência de um apriorístico ideal de vida boa ou de um projeto homogêneo de vida a ser seguido por todos, tem-se a formação de comunidades jurídicas descentralizadas, multiculturais e plurais cada vez mais reflexivas quanto às suas tradições, seus usos e costumes (CARVALHO NETTO e SCOTTI, 2011, p. 89-93).
Essa reflexividade da tradição, dos usos e dos costumes dá-se em relação aos direitos fundamentais, de sorte que qualquer prática social somente será válida ou permanecerá enquanto tal se com eles guardar compatibilidade. Os direitos fundamentais, porém, não possuem campos de incidência pré-definidos abstratamente, estando sempre na dependência de casos concretos, de circunstâncias históricas, ou seja, das “características relevantes do mundo ambiente” (HABERMAS, 2003b, p. 170).
Por detrás dessa reflexividade das sociedades contemporâneas e do reconhecimento da historicidade dos direitos fundamentais encontra-se uma maneira de apreender o conhecimento e o mundo, ou seja, uma racionalidade, que se sabe convencional, contingente, precária, datada, limitada, sempre sujeita, portanto, ao debate público, a refutações, ao aprendizado e, consequentemente, a mudanças de aprimoramento (CARVALHO NETTO e SCOTTI, 2011, p. 26-27).
3. CONCLUSÃO
Com toda essa nova conformação no modo de pensar e fazer o Estado e o Direito, uma nova forma de interpretar/aplicar este último também se impõe. Se, com o novo paradigma, a gênese do Direito é resgatada das mãos da melhor sociedade burguesa e das mãos dos tecnocratas para ser colocada nas mãos dos cidadãos, necessária é também, agora, resgatar a separação dos poderes, a partir do redimensionamento da atuação do Poder Judiciário, cujo modo de atuar positivista no Estado Social concorria com a própria atuação legislativa.
É preciso superar definitivamente o modo de pensar (neo)positivista em prol de soluções consentâneas com o estado atual do constitucionalismo e da principiologia constitucional. E aqui entram, assim, as várias e diferentes propostas doutrinárias contemporâneas (Dworkin, Alexy, etc), acerca do papel dos juízes e dos mecanismos mais adequados para a interpretação e aplicação do Direito.
REFERÊNCIAS
CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito: a produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. v. II. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a.
HABERMAS, Jürgen. O Estado Democrático de Direito – uma amarração paradoxal de princípios contraditórios? In: ________. Era das transições. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003b. p. 151-173.
PROCURADOR FEDERAL. GRADUADO EM DIREITO PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ - UFC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Igor Chagas de. Crise do estado social e formação histórico-jurídica do estado democrático de direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 dez 2014, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42642/crise-do-estado-social-e-formacao-historico-juridica-do-estado-democratico-de-direito. Acesso em: 23 dez 2024.
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