Toda a evolução do direito econômico aponta para uma crescente intervenção estatal, diante de todas as transformações surgidas no mundo após a Primeira Guerra Mundial.
Se de um lado, a essa crescente intervenção do Estado em setores da economia se contrapôs um conjunto de normas penais objetivando a criação de um sistema que resguardasse o cidadão desse proeminente intervencionismo estatal, lado outro, a estruturação de grandes empresas exigiu do Estado a formulação de um sistema jurídico apto a conter-lhes o poderio e a tutelar os interesses de uma crescente sociedade de massas. 1
Da perspectiva macroeconômica atual se deduz claramente os contornos complexos da criminalidade econômica, a exigir do operador do direito uma releitura dos institutos dos direito penal clássico.
A partir de uma análise histórica do direito penal econômico, o presente ensaio pretende ressaltar que desde as primeiras previsões constitucionais o objetivo sempre foi a tutela do patrimônio do povo em geral, tentando reprimir a especulação gananciosa dos detentores do poderio econômico.
II. EVOLUÇÃO HISTÓRICA
Leciona Reale que desde Roma a legislação era explícita quanto às normas de proibição da exploração da economia popular. Em Roma, a punição era dirigida àqueles que monopolizavam atividades com o intuito de aumentar os preços de qualquer sorte de utilidades, principalmente as que se destinavam ao atendimento das necessidades essenciais do povo. Por sua vez, nas cidades gregas protegiam-se os cidadãos contra os monopolistas que especulavam, estocando mercadorias para forçarem as altas ilícitas de preço.4
Tal regramento também pode ser encontrado na lei francesa ao tempo do absolutismo, onde também se procurava coibir os efeitos maléficos da exploração do povo por condutas ilícitas de especulação econômica, especialmente, de gêneros alimentícios.
Já em solo pátrio o tratamento do tema sofreu algumas alterações ao longo de sua evolução histórica. Inicialmente, até a época do Império, não existiam normas penais econômicas, especialmente porque o regramento brasileiro era pautado pelas normas preconizadas pelo país colonizador. Essa omissão se refletiu no Código penal de 1890, que nada dispôs sobre os delitos contra a Ordem Econômica.
Com a Constituição Republicana de 1891 fundada no liberalismo econômico, a intervenção estatal na seara privada foi fortemente restringida, favorecendo o enriquecimento de uma minoria privilegiada em detrimento da maioria da população explorada em suas necessidades vitais. Essa situação restou inalterada até o advento da Revolução de 1930 onde predominaram os ideais de maior intervencionismo estatal, por vezes, com cunho totalitário. Nesse contexto surgiu o Decreto nº 22.626/33, primeiro diploma normativo de repressão ao crime de usura.
Foi na Reforma da Constituição de 1934 que dispositivos constitucionais fizeram pela primeira vez referência à expressão economia popular, todavia, destituídos de maiores efeitos práticos, vez que dependiam de regulamentação posterior por lei ordinária para serem aplicados.5
Com o advento do Estado Novo, a presença forte do Estado na economia, propiciou um tratamento mais rigoroso para ordem econômica, razão pela qual os infratores econômicos passaram a ser julgados por um Tribunal de Segurança Nacional, apto a assegurar pronta e segura punição.
Em 1939 foi editado o Decreto-lei 869/1939, que sistematizou e enumerou os crimes contra a economia popular, definindo-os como danos efetivos ou potenciais ao patrimônio de um indefinido número de pessoas. Com o intuito de conferir resposta rápida aos infratores econômicos, restou consignada a impossibilidade de fiança, da suspensão condicional da pena e do livramento condicional. 6
Posteriormente, com a adoção do Estado Democrático de Direito em 1946, dispositivos consolidaram uma visão ponderada das infrações contra a economia popular, oportunidade em que foi editada a primeira lei penal ordinária tratando sobre o tema, qual seja, a lei 1521/51.
III.DISCIPLINA CONSTITUCIONAL
Com a nova ordem constitucional inaugurada com a Constituição de 1988 foi implantada uma nova ordem econômica, fundada especialmente na valorização do trabalho e na livre iniciativa. A participação estatal objetiva apenas coibir os abusos e preservar a livre concorrência tanto no âmbito público quanto no privado. 7
Para LammêgoBulos significa afirmar que se o constituinte prestigiou uma economia de mercado, de cunho capitalista, a ordem econômica, mesmo capitalista, deve priorizar o labor humano como valor constitucional supremo em relação aos demais valores integrantes da economia de mercado. A intervenção do Estado na economia deve atentar para dignidade da pessoa humana, fundamento não só da ordem econômica, mas da República Federativa do Brasil como um todo.8
Também Reale sustenta que a posição neoliberal assumida pelo Estado brasileiro lhe impôs uma função meramente fiscalizatória e não mais gestora da economia. É dizer, a ordem econômica só restará respeitada se a dignidade humana for atendida através da liberdade e da justa competitividade.9
Por sua vez, a livre iniciativa decorre da valorização do trabalho, do trabalho livre em uma sociedade livre e pluralista. A liberdade de iniciativa vem a ser um valor essencial em reforço do Estado Democrático brasileiro, que representa a projeção da liberdade individual no plano da produção, circulação e distribuição de riquezas em prol do coletivo.10
Ocorre que muitas das atividades livremente desenvolvidas podem ser indevidamente utilizadas em detrimento dos valores pregados pela carta constitucional, favorecendo exclusivamente um único indivíduo ou um pequeno grupo. O exercício de condutas socialmente reprováveis podem trazer conseqüências nefastas ao coletivo, mormente se considerada a atual estrutura globalizada da economia.
Por este motivo, o artigo 173, §4º da Constituição Federal de 1988 prevê a repressão legal ao abuso do poder econômico praticado com vistas ao domínio de mercado, eliminação da concorrência ou aumento arbitrário dos lucros, restando a expressão como sinônimo de infração à ordem econômica.
IV. DISCIPLINA INFRACONSTITUCIONAL
Com o intuito de concretizar o mandamento constitucional, a legislação ordinária prevê diversos mecanismos de responsabilização da empresa ou do empresário, seja no âmbito cível, administrativo ou penal.
Civilmente, as condutas contrárias à ordem econômica podem resultar em lesão a concorrentes e consumidores, os indivíduos – pessoas físicas ou jurídicas – diretamente prejudicados, bem como associações ou o Ministério Público, podem intentar a responsabilização indenizatória em razão do comportamento inadequado dos empreendedores.11
Já no âmbito administrativo, o Estado tem como recurso a lei 8884/94, que contém a previsão de diversas sanções a condutas atentatórias à ordem econômica, dentre as quais podem ser citadas, as penas pecuniárias e as restritivas de direito, inclusive consistente no encerramento das atividades.
Na seara penal, a lei 8137/90, prescreve penas restritivas de liberdade ou multas para os infratores da ordem econômica, contendo tipos penais que, geralmente, reproduzem as condutas administrativas vedadas.
Cumpre frisar que a edição da lei 8884/94 representou um importante instrumento de uniformização do tratamento conferido ao tema, ao regular inteiramente, a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica. Por meio desse diploma, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) foi transformado em autarquia, propiciando a almejada independência funcional indispensável ao bom desempenho de suas atividades, e munido de diversos instrumentos de atuação, fiscalização e repressão, dentre os quais, dar-se-á maior atenção ao acordo de leniência.
Com a edição da Lei 12.529/2011, revogando a lei 8884/94, o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência foi estruturado. O novel diploma dispôs sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica e promoveu algumas alterações na regulação do Acordo de Leniência.
V. CONCLUSÃO
Com este breve ensaio, primeiramente, evoluímoshistoricamentea proteção constitucional e infraconstitucional conferida ao bem jurídico econômico.
Restou claroque a Constituição Federal de 1988, atenta às mudanças ocorridas no Estado brasileiroe aos novos paradigmas do mundo globalizado, conferiu tratamento relevante ao tema, ao destacar a importância do bem jurídico ordem econômica para o bem estar social.
Outrossim, ficou assentada a necessidade de tutela penal da ordem econômica, dado os prejuízos sociais incomensuráveis decorrentes de sua violação.
Todavia, para tutelar adequadamente o bem jurídico econômico serão necessárias profundas adaptações no direito penal clássico, tudo a conferir uma tutela efetiva aos sofisticados mecanismos utilizados pela criminalidade atual.
VI.BIBLIOGRAFIA
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Revan, 4ª edição, 2001.
BIANCHINI, Alice. Direito penal econômico: os fins justificam os meios? Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.7, n.84, p. 9/10, nov. 1999.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal – parte geral. 6ª edição, São Paulo: Saraiva, 2000.
DOTTI, René Ariel. A criminalidade econômica. Revista dos Tribunais. São Paulo. Revista dos Tribunais, ano 74, v.602, pp 295/304, 1985.
GOMES, LUIZ Flávio Gomes. As grandes transformações do direito penal tradicional.. Série as ciências criminais no século XXI. São Paulo. RT,2005.
GUARAGNI, Fábio André. As razões históricas do surgimento do direito penal econômico. Material da 1ª aula da Disciplina Criminalidade Econômica e Organizada, ministrada no Curso de Especialização em Ciências Penais – UNISUL.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
1PETTER, Lafayete Josué. Direito Econômico, 2007, p.21.
4REALE, Miguel. Legislação penal antitruste: direito penal econômico e sua acepção constitucional.Disponível em www.realeadvogados.com.br . Acesso em 25 de agosto de 2008, pg1ss.
5FORGIONI, Paula A. Os Fundamentos do Antitruste. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, pgs.108ss.
6FORGIONI, Paula A. Os Fundamentos do Antitruste. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, pg. 116.
7SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20ª edição, São Paulo: Malheiro editores, 2002, pg.764ss.
8BULOS, UadiLammêgo. Constituição Federal Anotada. 7ª edição, São Paulo: Saraiva, 2007, pg.1261.
9REALE, Miguel. Legislação penal antitruste: direito penal econômico e sua acepção constitucional.Disponível em www.realeadvogados.com.br . Acesso em 25 de agosto de 2008, pg5.
10 Ibidem, pg.6
11SANTOS, André Maciel Vargas dos. O acordo de leniência e seus reflexos no direito penal . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1502, 12 ago. 2007. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10270. Acesso em: 05 set. 2008, pg2.
12TASSE, Adel el. Crime contra o Sistema Financeiro Nacional: O bem jurídico específico necessário para a incidência da lei nº 7492/86 à determinação da conduta, pg.336
PROCURADORA FEDERAL. ESPECIALISTA EM DIREITO CONSTITUCIONAL PELA UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA. ESPECIALISTA EM CI ÊNCIAS PENAIS PELA UNISUL<br>CURSANDO LLM EM DIREITO EMPRESARIAL. <br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACHADO, Ivja Neves Rabelo. Breve ensaio acerca da tutela penal do bem jurídico econômico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42746/breve-ensaio-acerca-da-tutela-penal-do-bem-juridico-economico. Acesso em: 23 dez 2024.
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