I. Introdução
O modelo globalizador da economia provocou o surgimento de uma criminalidade igualmente globalizada, totalmente desvinculada das fronteiras de um único Estado e com estruturas cada vez mais sofisticadas.
A ineficiência estatal no acompanhamento da evolução criminosa propicia o surgimento de um verdadeiro estado de terror coletivo, onde o Estado é instado a adotar posturas cada vez mais imediatistas, como forma de aplacar a ânsia coletiva, mas destituídas de fundamento constitucional, e por vezes ineficazes, se analisadas em longo prazo e pautadas por uma política criminal consistente.
Nesse momento, ganha importância à análise dos princípios legitimadores da intervenção penal estatal na seara econômica, tudo a evitar que o ânimo punitivo afronte garantias basilares do ordenamento jurídico.
No que toca aos objetivos do presente trabalho, mister referenciar os princípios da fragmentariedade, intervenção mínima e proporcionalidade, com o escopo de definir limites e legitimar o direito penal econômico.
II. Princípio da Fragmentariedade
Apresenta-se como corolário dos princípios da intervenção mínima, da lesividade e da adequação social. 25Significa que merecerão a tutela penal somente aqueles bens reputados fundamentais pela Constituição quando comprovadas a lesividade e a inadequação das condutas que os ofendem. O direito penal atuará diante das ações mais graves contra os bens jurídicos mais importantes.
Consoante Luiz Regis Prado26 a lei penal só deverá intervir quando for absolutamente necessário para sobrevivência da comunidade, como ultima ratio. Opera-se uma tutela seletiva do bem jurídico, limitada àquela tipologia agressiva que se revela dotada de indiscutível relevância quanto à gravidade e a intensidade da ofensa.
Miguel Reale27, ao contrário, defende que o direito penal só deverá interferir se houver lesividade concreta ao bem jurídico-criminal que afronte efetivamente a comunidade social. Deduz ainda que, em conformidade com o princípio da ofensividade, em um Estado Democrático de Direito, o Direito Penal só pode interferir em situações nas quais se verifiquem lesões insuportáveis às condições comunitárias, essenciais ao livre desenvolvimento e a realização da personalidade humana, dos quais o trabalho e a ordem econômica estão obrigatoriamente atrelados.
Sendo assim, a aplicação da sanção penal econômica só se legitima quando afrontar os bens jurídicos de forma acentuada e com repercussão social.28
A interferência da via penal no âmbito econômico exige um mínimo de materialidade delituosa, restando vedada a aplicação de qualquer sanção criminal fundada somente no estado subjetivo do infrator, ou na mera intenção criminosa do cidadão-delinquente que possua condições financeiras privilegiadas, não se justificando a punição pelo autor, não sendo raro os casos em que se apregoa a punição criminal econômica, simplesmente em face da articulação e perspicácia de seu autor, sendo tal medida uma violência ao direito penal do fato, tão fortalecido em um Estado democrático de Direito.
Devem ser excluídas da seara penal todas as condutas axiológicamente neutras e consideradas instrumentais à natureza não criminal, exemplificando-se no Brasil as infrações exclusivamente administrativas, pex, a não entrega de documentos.
O legislador deve construir tipos penais quando inegável a necessidade social, conferido concretude não apenas formal, mas também material ao delito.
Modernamente se denomina como detentoras de dignidade penal aquelas condutas qualificadas por um juízo de intolerabilidade social e merecedoras de desaprovação ético-social. A conduta detentora de dignidade penal é aquela que expõe gravemente a perigo as relações sociais no interior da comunidade juridicamente organizada, implicando lesão particularmente grave ao bem jurídico.
No campo da afronta à ordem econômica parece indubitável a presença da danosidade material representada pela ofensividade social, eis que algumas condutas atentatórias contra a ordem econômica trazem abalo econômico-social.
III. Princípio da Intervenção Mínima
Previsto no artigo 8º da Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão de 1789, o princípio da intervenção mínima admite a ingerência de sanções criminais, apenas quando estritamente necessárias, vedando-se tipificações e sancionamentos supérfluos, vagos e indeterminados.
O legislador, através de um critério político elege, de acordo com momento em que vive a sociedade, sempre que entender que os outros ramos do direito se revelam incapazes de proteger devidamente os bens mais importantes para a sociedade. 29
O direito penal só se legitima quando insuficiente a tutela promovida por outros ramos do ordenamento jurídico.30
De acordo com o princípio da intervenção mínima, a tipificação e a punição não exigem apenas a existência formal do delito, mas especialmente, a material ou substancial, sendo relevante nesse contexto, analisar a presença da dignidade da incriminação, bem como a carência de proteção criminal.
Para Reale31,o estado e o seu aparelho penal não devem fazer mais do que o suficiente na área econômica, intervindo apenas quando estritamente necessário. O Estado deve ser minimalista em suas intervenções, pregando por um direito penal mínimo, não se constituindo compulsoriamnete em sinônimo de abolição.
Consistindo parâmetro ao legislador e ao julgador, o princípio da intervenção mínima possui três funções básicas: a primeira, consiste em fixar, abstratamente, as hipóteses de incidência das leis penais, impedindo a criminalização de condutas irrelevantes com conseqüente imposição de sanções desnecessárias. A segunda função caracteriza-se, pela limitação à restrição da liberdade do cidadão, configurando-se impossível evitar a incidência de outro ramo que não o direito penal. A terceira e última finalidade ajusta-se exatamente à incidência da conseqüência jurídica do delito e sua estrita necessidade e carência.
A incidência da sanção penal econômica só se justifica se possível o alcance de seus fins. Tal objetivo não é de fácil alcance, eis que não se está relacionando a um cidadão que não teve oportunidades sociais, mas ao contrário, refere-se aquele que apesar de toda a estruturação educacional e familiar não conseguiu absorver valores de auto-limitação e de convivência social, não conseguindo conviver com as próprias frustrações do ser humano, motivando seu comportamento por ambição econômica.
Sendo assim, não há uma solução meramente técnica para o problema da delinqüência econômica, devendo impor-se a interdisciplinariedade entre a seara criminológica, psicológica e a área jurídico-dogmática, vez que de nada adiantará uma sanção criminal excessiva, se o fim almejado não for alcançado, figurando infrutífero segregar simbolicamente e exemplarmente o cidadão por uma quantidade de tempo, ainda que de curta duração, se não obtivermos respostas eficientes a tais medidas, cabendo analisar psico-socialmente qual a melhor forma de sancionamento ao delinqüente econômico, figurando necessário o estudo acerca da repercussão da eficiência da multa administrativa ao infrator, que muitas vezes acaba sendo mais estigmatizado pelo círculo social em que vive do que por meio de uma efêmera prisão de efeito simbólico. Mas nesse ponto, cumpre atentar que o direito penal também não pode ser utilizado como meio de humilhação.
O princípio da intervenção mínima atua tanto na não incidência da sanção penal, quando desnecessária, quanto na escolha do meio mais adequado e menos oneroso ao cidadão, constituindo a necessidade social o critério decisivo, pressupondo ajuste e efetividade no sancionamento.
A sanção penal que resulte ineficiente, inidônea ou contraditória, acarreta um ônus injustificável, resultando ilegítima, diante do princípio da efetividade, sendo essencial no campo econômico eleger a via adequada que resguarde, da melhor forma possível, a ordem econômica do país.
Em reforço a esta tese, Leonardo Sica32 sustenta que a simples noção de bem jurídico não se presta a legitimar o uso de mecanismos criminais. Afasta-se da discussão acerca da adequação do fim (proteção da ordem econômica) e sim a conformidade do meio a ele.
De outro lado, a nosso ver, este entendimento não se presta a desqualificar a legitimidade da intervenção penal. Num plano abstrato não há como mensurar o grau de eficácia que a ameaça da sanção penal incute na sociedade e nos eventuais violadores do tipo. Se fosse assim, totalmente despicienda a previsão do tipo de homicídio, pois não há provas de que alguém deixe de matar outro devido à ameaça de sanção penal. Ora, não se pode defender a regra segundo a qual, na inexistência de prova acerca da necessidade da sanção penal deverá ser afastada a tutela penal. Até porque também não existirá prova de que o outro ramo do direito protegerá de forma adequada o bem jurídico. Existe a previsão devido à importância que o bem guarda no seio social, tanto que se encontra expresso na Constituição federal como bem fundamental a vida.
IV. Princípio da Proporcionalidade
Embora sua origem remonte à Antiguidade, foi só com o Iluminismo, em especial com a obra de Cesare Beccaria, que o princípio da proporcionalidade se afirmou como um verdadeiro pressuposto penal.33
Adquire especial relevo em sede de direito econômico, o princípio da proporcionalidade entendido em sentido amplo, também chamado de proibição do retrocesso. Visa garantir a esfera de liberdade individual, limitando a interferência do Poder estatal contestando as ingerências desnecessárias, não adequadas ou desproporcionadas.34
O princípio da proporcionalidade refuta a enunciação de cominações legais (proporcionalidade em abstrato) e a imposição de penas (proporcionalidade em concreto) que não levam em conta o valor do fato ultimado, carecendo de uma obrigatória relação com o bem jurídico. 35
O princípio se aplica o legislador, no momento de elaboração da norma, mas especialmente ao juiz, no instante da elaboração da sentença.
O princípio da proporcionalidade deflui do conjunto de princípios e direitos fundamentais explícitos na Constituição. Constitui uma característica de um estado Social e Democrático de Direito, devendo a cominação e a aplicação de qualquer conduta e sanção serem proporcionadas à gravidade do ilícito.36 Cabível, contudo, investigar quais das condutas que afrontam a gestão econômica de uma nação, merecem a interferência penal por ofender e atingir de modo categórico a dignidade do cidadão, a violar artigo 1º da Constituição Federal de 1988.
Para tanto, imprescindível a aferição dos três subprincípios da proporcionalidade em sentido amplo, classificados pela doutrina, como: a) princípio da necessidade cuja conseqüência constitui o princípio da subsidiariedade; b) princípio da adequação, idoneidade ou suficiência; c) princípio da proporcionalidade em sentido estrito.37
Quanto ao subprincípio da necessidade, cumpre aferir se realmente se faz necessária a interferência penal econômica para salvaguardar o bem jurídico constitucionalmente protegido.
No que pertine ao subprincípio da adequação ou suficiência, cabe ao juiz averiguar sobre a concretude das finalidades das sanções econômicas, restando claro que se outras medidas podem alcançar a finalidade de resguardar a ordem econômica da nação, desajustada se tornará a interferência penal.
Acredita Reale38que de nada adiantará concluir pela necessidade de interferência penal econômica, se patente estiver a premissa de que, pela sua aplicação, impossível constituirá alcançar os objetivos de recuperação e de tranqüilidade social da norma violada pelo delinqüente “inteligente”, constituindo a persistente imposição criminal na área econômica, forma desenfreada de afronta ao princípio da proporcionalidade.
Por sua vez, o princípio da proporcionalidade em sentido estrito impede a aplicação de vias penais econômicas meramente simbólicas, desproporcionadas ao ilícito típico praticado e à periculosidade do agente, vedando-se a carga desigual, desajustada e excessiva. Busca-se o equilíbrio entre o bem lesionado e o posto em perigo, e o objeto de tutela que privará a liberdade do cidadão, impedindo o excesso e a desproporção na conseqüência jurídica do delito.39
Ao implementar análise sobre a questão, Reale conclui que:
“melhor será tentarmos reestruturar a via administrativa do que desenfreadamente intervir pela via penal no âmbito econômico, não justificando-se a incidência penal como “prima ratio” em searas como âmbito tributário, economia popular, irregularidade de composição de combustível, bingos, cabendo-nos analisar sim em âmbitos como a tutela ao Sistema Financeiro Nacional e a Competição Empresarial protegida pela Lei Antitruste, esclarecendo que, se de um lado, afetam violentamente a ordem econômica do país, de outro, possível também que o âmbito administrativo, se reorganizando e regulamentado poderá justificar a não interferência criminal”40
O referido autor elege o critério negativo como norteador da aplicação do princípio da proporcionalidade no âmbito do direito penal econômico, reafirmando que sua incidência é obrigatória, quer quando da análise dos pressupostos para a cominação e eleição da via penal econômica.
V. Conclusão
Assentada a legitimidade da tutela penal na seara econômica, o presente trabalho buscouressaltar a indispensabilidade de obediência a todo o conjunto de garantias e direitos fundamentais aplicáveis ao âmbito penal, mormente no que toca as balizas fornecidas pelos princípios da fragmentariedade, intervenção mínima e proporcionalidade.
Com efeito, a celeridade normativa exigida na seara econômica não deve justificar a violação desmedida de garantias fundamentais consolidadas ao longo da evolução social.É dizer: não há como afastar garantias processuais penais como a ampla defesa, contraditório, entre outras previstas na Carta Maior, inerentes ao Estado Democrático de Direito.
Após breve análise principiológica, foi reforçada a tese de que a tutela penal da delinquência econômica não malfere os princípios da fragmentariedade ou subsidiariedade. Com razão, as infrações mais leves ou mais simples poderão ser resolvidas em âmbito administrativo, como já ocorre. Por sua vez, deverão receber tratamento penal as infrações mais graves, segundo o juízo de ponderação do legislador no momento de feitura da lei.
VI. BIBLIOGRAFIA
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal – parte geral. 6ª edição, São Paulo: Saraiva, 2000.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: 8ª. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito penal Brasileiro, vol.1. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
REALE, Miguel. Legislação penal antitruste: direito penal econômico e sua acepção constitucional.Disponível em www.realeadvogados.com.br . Acesso em 25 de agosto de 2008.
SICA, Leonardo. Caráter simbólico da intervenção penal na ordem econômica. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, n.02, julho-dezembro de 1998. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
SILVA, Ivan Luiz da. Princípio da insignificância no direito penal. Curitiba: Juruá, 2004.
25 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: 8ª. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007, pg 61.
26PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito penal Brasileiro, vol.1. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, pg 119/120.
27REALE, Miguel. Legislação penal antitruste: direito penal econômico e sua acepção constitucional.Disponível em www.realeadvogados.com.br . Acesso em 25 de agosto de 2008, pg14.
28SILVA, Ivan Luiz da. Princípio da insignificância no direito penal. Curitiba: Juruá, 2004, pg.125.
29 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: 8ª. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007, pg 49.
30BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal – parte geral. 6ª edição, São Paulo: Saraiva, 2000, pg.11.
31REALE, Miguel. Legislação penal antitruste: direito penal econômico e sua acepção constitucional.Disponível em www.realeadvogados.com.br . Acesso em 25 de agosto de 2008, pg20.
32SICA, Leonardo. Caráter simbólico da intervenção penal na ordem econômica. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, n.02, julho-dezembro de 1998. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p.114ss.
33PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito penal Brasileiro, vol.1. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, pg 121.
34REALE, Miguel. Legislação penal antitruste: direito penal econômico e sua acepção constitucional.Disponível em www.realeadvogados.com.br . Acesso em 25 de agosto de 2008, pg23.
35REALE, Miguel. Legislação penal antitruste: direito penal econômico e sua acepção constitucional.Disponível em www.realeadvogados.com.br . Acesso em 25 de agosto de 2008, pg24.
36 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: 8ª. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007, pg 38.
37BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996, pg.209
38REALE, Miguel. Legislação penal antitruste: direito penal econômico e sua acepção constitucional.Disponível em www.realeadvogados.com.br . Acesso em 25 de agosto de 2008, pg27.
39SILVA, Ivan Luiz da. Princípio da insignificância no direito penal. Curitiba: Juruá, 2004, pg.129.
40REALE, Miguel. Legislação penal antitruste: direito penal econômico e sua acepção constitucional.Disponível em www.realeadvogados.com.br . Acesso em 25 de agosto de 2008, pg29.
PROCURADORA FEDERAL. ESPECIALISTA EM DIREITO CONSTITUCIONAL PELA UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA. ESPECIALISTA EM CI ÊNCIAS PENAIS PELA UNISUL<br>CURSANDO LLM EM DIREITO EMPRESARIAL. <br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACHADO, Ivja Neves Rabelo. Princípios aplicáveis ao Direito Penal Econômico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 dez 2014, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42773/principios-aplicaveis-ao-direito-penal-economico. Acesso em: 23 dez 2024.
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