Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar o conceito de deficiente no âmbito do benefício assistencial previsto no art. 203, V, da Constituição Federal, regulamentado pelo art. 20, da Lei nº 8.742/93, a partir da análise da previsão normativa e da construção doutrinária a respeito do tema.
Palavras-Chave: Assistência Social. Benefício Assistencial. Benefício de Prestação Continuada. Art. 203, V, da Constituição Federal. Art. 20, da Lei nº 8.742/93. Pessoa Portadora de Deficiência. Incapacidade para o Trabalho.
1. Introdução
Dispõem o art. 203, V, da Constituição Federal, e o art. 20, da Lei nº 8.742/93 (Lei de Organização da Assistência Social - LOAS), que o Benefício de Prestação Continuada LOAS (BPC/LOAS) é um benefício assistencial prestado pela União à pessoa portadora de deficiência que se encontre em estado de miserabilidade.
O BPC/LOAS é um benefício assistencial, que constitui um dos principais instrumentos de Assistência Social no Brasil. Como tal, ele dispensa contribuição ou filiação à Previdência Social. Está localizado na parte que trata da Assistência Social na Carta Magna, especificamente no art. 203, V, da Constituição Federal, que assim enuncia:
"Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II - o amparo às crianças e adolescentes carentes; III - a promoção da integração ao mercado de trabalho; IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei." (grifo nosso)
Como se denota do texto constitucional, esse benefício assistencial é devido à pessoa com deficiência, que comprove não possuir meios de prover sua própria subsistência, ou de tê-la provida por sua família.
2. Desenvolvimento
Atualmente, o parágrafo segundo, do art. 20, da Lei nº 8.742/93, com a redação dada pela Lei nº 12.470/11, conceitua pessoa com deficiência, assim estabelecendo:
§ 2o Para efeito de concessão deste benefício, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. (grifos nossos)
Como se vê, a redação atual do dispositivo remete ao conceito de impedimentos de longo prazo que impeçam o indivíduo de participar plena e efetivamente na vida em sociedade, em igualdade com as demais pessoas.
Segundo o parágrafo décimo, do art. 20, da Lei nº 8.742/93, incluído pela Lei nº 12.470/11, considera-se impedimento de longo prazo aquele que produza efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos.
Na redação original do art. 20, parágrafo segundo, da Lei nº 8.742/93, havia outro conceito de deficiente, menos abrangente, na medida em que remetia a conceitos de incapacidade para a vida e para o trabalho. Assim previa o dispositivo em comento: "Para efeito de concessão deste benefício, a pessoa portadora de deficiência é aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho".
À luz do que dispunha a redação original do art. 20, da Lei nº 8.742/93, o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS[1] adotava um conceito restrito de deficiência, considerando apenas a visão médica, descontextualizando o indivíduo do meio em que ele estava inserido. Para o INSS,
"a análise da deficiência partia de uma visão estritamente médica e, portanto, unidimensional dos problemas que afligiam os requerentes do amparo social. No exame pericial médico, não eram avaliadas as condições pessoais ou sociais que pudessem exacerbar as dificuldades daqueles que possuíssem deficiências físicas, psíquicas, mentais, intelectuais ou sensoriais (...) é de se ponderar que a visão médica preponderante na autarquia previdenciária relativamente à constatação de uma incapacidade para a vida independente era bem mais restritiva do que a da incapacidade para o labor, sendo guiada pela impossibilidade de realização de atividades de auto-cuidado, tais como higiene pessoal, autonomia para vestir-se e andar, etc. Daí, naturalmente, a incapacidade para a vida independente pressupunha uma incapacidade para o labor, não sendo necessariamente verdadeira a recíproca"[2].
Ainda sob a égide da redação original do art. 20, da Lei nº 8.742/93, a jurisprudência já flexibilizava o conceito de deficiente, como se denota da Súmula 29 da Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais: "Para os efeitos do art. 20, § 2º, da Lei nº 8.742, de 1993, incapacidade para a vida independente não é só aquela que impede as atividades mais elementares da pessoa, mas também a impossibilidade de prover ao próprio sustento".
Nesse mesmo sentido era o conteúdo da Súmula nº 30 da Advocacia Geral da União: "A incapacidade para prover a própria subsistência por meio do trabalho é suficiente para a caracterização da incapacidade para a vida independente, conforme estabelecido no art. 203, V, da Constituição Federal, e art. 20, II, da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993"[3].
Percebe-se, assim, que o conceito de deficiência, para efeitos de concessão do BPC/LOAS, era mais atrelado ao conceito de incapacidade laborativa, do que ao conceito de vida independente.
O novo conceito de deficiência inserido na Lei nº 8.742/93 pela Lei nº 12.470/11, já mencionado, é um reflexo da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Conforme foi abordado em outro artigo jurídico[4], em 30 de março de 2007, o Estado Brasileiro foi signatário da Convenção de Nova York sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Após a aprovação do texto do Tratado pelo Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo nº 186/2008, de 09/07/2008, pelo rito previsto no art. 5º, parágrafo 3º, da Constituição Federal, foi promulgado pelo Decreto Executivo nº 6.949, de 25/08/2009. Em virtude da observância do procedimento previsto no parágrafo 3º, do art. 5º, da Constituição, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi internalizada no ordenamento jurídico pátrio com status de emenda constitucional.
A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência trouxe novo conceito de pessoas com deficiência, que não se fixa apenas na patologia que ela apresenta, mas avalia o indivíduo no seu contexto médico, psíquico e social, em uma visão multidisciplinar. Vejamos:
"Art. 1º da Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas".
Em decorrência daquele Tratado Internacional assinado pelo Brasil, foi editado o Decreto nº 6.214/2007:
Art. 4o Para os fins do reconhecimento do direito ao benefício, considera-se:
(...)
II - pessoa com deficiência: aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas; (Redação dada pelo Decreto nº 7.617, de 2011)
III - incapacidade: fenômeno multidimensional que abrange limitação do desempenho de atividade e restrição da participação, com redução efetiva e acentuada da capacidade de inclusão social, em correspondência à interação entre a pessoa com deficiência e seu ambiente físico e social;
(...)"
Trata-se, pois, de um conceito mais amplo de deficiência, "vendo a incapacidade não mais como um atributo da pessoa, como algo de que o sujeito é portador, mas sim como uma consequência de um conjunto complexo de situações, das quais um número razoável delas decorre do próprio ambiente familiar e social em que vive e se relaciona"[5].
Frederico Amado[6] observa que "houve uma mudança de paradigma dentro do INSS para a concessão do amparo assistencial ao deficiente, pois apreciadas as deficiências corporais, os fatores ambientais, sociais e corporais, bem como a limitação no desenvolvimento de atividades e o patamar de restrição social".
Como se verifica, o conceito foi alterado e ampliado. Entendemos, porém, que as regras atualmente vigentes ainda demandam aprimoramento.
Tal como atualmente delineado pelo legislador ordinário, o BPC/LOAS recebido pela pessoa com deficiência não estimula que ela supere as barreiras sociais e biopsicológicas, ou participar mais efetivamente da vida em sociedade, pois não há previsão de autorização para que o beneficiário desenvolva algum tipo de atividade laborativa que respeite seus impedimentos de longo prazo.
O art. 21 da Lei 8.742/93 apenas prevê a revisão do benefício a cada dois anos, a fim de se verificar a manutenção, ou não, dos requisitos que ensejaram o benefício, notadamente a situação de miserabilidade e a deficiência.
A despeito disso, o Direito pretende incentivar a inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho, eis que há previsão em legislação trabalhista que obriga empresas com mais de duzentos empregados a contratar pessoas portadoras de deficiência[7].
Pela letra fria da lei, se o beneficiário do BPC/LOAS desenvolver atividade laborativa e passar a auferir renda, é possível que essa renda seja vista como fator de afastamento da situação de miserabilidade e, com isso, implique a cessação do benefício. Essa possibilidade naturalmente desestimula qualquer tentativa de inserção no mercado de trabalho, pois se sabe que não há garantias de que a tentativa de trabalho da pessoa com deficiência seja exitosa ou duradoura. O temor da cessação de um benefício que garante a subsistência faz com que o próprio grupo familiar deixe de apoiar iniciativas como esta.
Pensamos que a legislação assistencial deveria ser alterada para permitir que o deficiente beneficiário do BPC/LOAS desenvolvesse algum tipo de atividade profissional em programas voltados especificamente às pessoas com deficiência, mediante redução do valor do benefício durante o período de exercício dessa atividade laboral, a exemplo do que já ocorre com o pensionista maior inválido, na forma preconizada pela Lei nº 12.470/11[8], que alterou a Lei de Benefícios da Previdência Social (Lei nº 8.213/91). Essa previsão poderia ser limitada no tempo, isto é, o legislador poderia prever determinado período de tempo em que essa renda do trabalho da pessoa com deficiência não fosse computada na renda do grupo familiar para fins de revisão do requisito miserabilidade. E, principalmente, a lei deveria prever que, findo o exercício da atividade laborativa do beneficiário do BPC/LOAS, haveria o restabelecimento automático do benefício de prestação continuada.
3. Conclusão
O Benefício de Prestação Continuada (BPC/LOAS) previsto no art. 203, V, da Constituição Federal, e no art. 20, da Lei nº 8.742/93, é uma prestação assistencial que independe de contribuição ou contrapartida financeira anterior.
O benefício assistencial BPC/LOAS é devido à pessoa com deficiência, assim verificado após uma análise multidisciplinar, multifatorial e contextualizada, baseada em novos critérios adotados pela legislação previdenciária após o advento da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
Atualmente, inexiste fomento para que o beneficiário dessa prestação assistencial supere as barreiras sociais e biopsicológicas que o levaram a ser considerado apto a receber o benefício e saia da situação de miserabilidade, na medida em que a revisão periódica prevista em lei inibe o exercício de atividade profissional remunerada.
4. Referências Bibliográficas:
AMADO, Frederico. Direito e Processo Previdenciário Sistematizado, Salvador: JusPodivm, 2013.
LEITÃO, André Studart e MEIRINHO, Augusto Grieco Sant'Anna. Manual de Direito Previdenciário, São Paulo: Saraiva, 2013.
Manual do Benefício de Prestação Continuada (BPC/LOAS) da Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS, A PFE/INSS e o Benefício de Prestação Continuada da Lei Orgânica de Assistência Social. Novembro de 2012.
[1] A responsável pelo pagamento é a União, mas quem administra e concede o benefício é o INSS.
[2] Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS, A PFE/INSS e o Benefício de Prestação Continuada da Lei Orgânica de Assistência Social. Novembro de 2012, p. 16-7.
[3] Súmula revogada pelo Ato de 31 de janeiro de 2011 da Advocacia Geral da União.
[4] SOUZA, Cristiane Castro Carvalho de. Anotações sobre a aposentadoria da pessoa com deficiência. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 dez. 2014. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.51801>. Acesso em: 26 dez. 2014.
[5] Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS, A PFE/INSS e o Benefício de Prestação Continuada da Lei Orgânica de Assistência Social. Novembro de 2012, p. 19-20.
[6] AMADO, Frederico. Direito e Processo Previdenciário Sistematizado, Salvador: JusPodivm, 2013, p. 71.
[7] Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989.
[8] Art. 77, parágrafo 4º, da Lei nº 8.213/91, incluído pela Lei nº 12.470/11: "A parte individual da pensão do dependente com deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente, que exerça atividade remunerada, será reduzida em 30% (trinta por cento), devendo ser integralmente restabelecida em face da extinção da relação de trabalho ou da atividade empreendedora."
Procuradora Federal desde novembro de 2007. Ex-Advogada da Caixa Econômica Federal. Especialista em Direito Previdenciário e em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Federal - ESMAFE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Cristiane Castro Carvalho de. O conceito de deficiente no benefício de prestação continuada da Lei de Organização da Assistência Social Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42783/o-conceito-de-deficiente-no-beneficio-de-prestacao-continuada-da-lei-de-organizacao-da-assistencia-social. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
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