Resumo: Este artigo jurídico busca evidenciar nuances acerca da necessidade de contínua reconstrução do pluralismo e reflexões acerca da identidade do sujeito constitucional, nas perspectivas de Chantal Mouffe, Michel Rosenfeld, Friedrich Muller e outros autores. Ademais, procura explanar elementos para discussão dos seguintes questionamentos: Democracia seria mesmo vontade do “povo”? Sob a ótica do poder comunicativo de Habermas, qual seria o papel do Poder Judiciário na consolidação de um Estado efetivamente Democrático de Direito?
Palavras-Chave: Estado Democrático de Direito. Identidade do sujeito constitucional. Legitimidade democrática. Conceito jurídico de Povo. Teoria do Discurso. Poder Comunicativo.
Sumário: I-O ideal democrático e a impossibilidade de consenso. II- Afinal, quem é o povo? Possibilidades teóricas. III-Poder comunicativo e a o papel democrático das instâncias jurisdicionais. Referências bibliográficas.
I-O ideal democrático e a impossibilidade de consenso
François Ost, sobre o ideal de democracia moderno, dispõe: “Toda arte consiste, então, em dominar esta violência sem por isso negá-la; transformar o antagonismo potencialmente destrutivo em agonismo democrático; criar uma ordem política sobre um fundo de desordem ameaçador” (OST, 2005, p. 316). A dinâmica da democracia pluralista se estrutura sobre os seguintes alicerces: consenso quanto aos princípios a serem defendidos, mas dissenso quanto a sua interpretação. Como encontrar o equilíbrio? Para o autor, o regime democrático, por prometer a igualdade e a liberdade para todos, é o melhor projeto político, apesar do constante risco de recair em uma divisão caótica ou no fantasma do povo único.
A tarefa a que se propõe Chantal Mouffe é a de conciliar a necessidade do político e a impossibilidade de um mundo sem antagonismos, com a criação e a manutenção de uma ordem democrática que tem de assumir, de forma inevitável, uma forma pluralista. Neste ponto, na perspectiva teórica desta autora, reside a importância da distinção de inimigo e adversário, pois, só dessa forma, pode-se vislumbrar o opositor, cuja existência dever ser preservada, pois é ela que devolve a identidade legitimada e protegida.
É por isso que este pluralismo deve igualmente distinguir-se da posição pós-moderna de fragmentação social, que se recusa a conceder aos fragmentos qualquer tipo de identidade relacional. A perspectiva que tenho mantido consistentemente rejeita qualquer gênero de essencialismo ó quer do todo, quer dos seus elementos ó e afirma que nem o todo nem os fragmentos possuem qualquer tipo de identidade fixa, anterior à sua forma de articulação contingente e pragmática. (CHANTAL apud SILVA, 1998).
Considerando que existência de qualquer indivíduo “é a afirmação de uma diferença, determinação de um outro que desempenhará o papel de elemento externo constitutivo”, torna-se, assim, possível compreender “a forma como surgem os antagonismos” e o modo como se pode relacionar com os adversários, "Lutaremos contra as suas idéias mas não poremos em causa o seu direito a defendê-las" (CHANTAL apud SILVA, 1998). E mais que possibilidade de existência, esse elemento exterior potencializa a sua destruição, na concepção de Carl Schmitt. Dessa forma, Chantal é consciente da precariedade da sua comunidade política, tendo em vista que a força que a aglutina é também ela o elemento destruidor do conflito.
Em lugar de considerar a democracia como algo natural e evidente, como algo adquirido do resultado de uma evolução da humanidade, torna-se necessário considerar as suas fragilidades, déficits e insuficiências.
Defendo que, a fim de radicalizarmos a idéia de pluralismo, de forma a transformá-lo num meio de aprofundamento da revolução democrática, temos de romper com o racionalismo, o individualismo e o universalismo. Só nessa condição será possível aprender a multiplicidade de formas de sujeição que existem nas relações sociais e facultar um enquadramento para a articulação das diferentes lutas democráticas – em torno do gênero, da raça, da classe, do sexo do ambiente e outros fatores. (MOUFFE, 1996)
A defesa intransigente do pluralismo tem a plena consciência de que na democracia radical habita um paradoxo incontornável. "O próprio momento da sua realização seria também o início da sua desintegração. Deve ser concebida como um bem que só existe como bem enquanto não pode ser alcançado. (...) Uma tal democracia será sempre uma democracia futura, uma vez que o conflito e o antagonismo são simultaneamente, condição de possibilidade e condição de impossibilidade da sua total realização". (MOUFFE, 1996)
A democracia moderna reside justamente nesse fato, a coexistência entre o princípio da identidade e da equivalência representativa. Essa coexistência deve ser criada e renegociada diariamente, ser todo dia reconquistada. Só ela é capaz de dar harmonia e sucesso à democracia. Chantal, do mesmo modo que diversos autores, prevê um destino ruim caso essa diferença seja superada, pois a realização plena da democracia, como fim dessas incongruências, marca o início da destruição do próprio regime.
Somente uma identidade do sujeito constitucional complexa, aberta e sempre incompleta pode agasalhar e nutrir o constitucionalismo, pois não há ditadura que possa plausivelmente preparar para o exercício da cidadania, somente o exercício da cidadania produz cidadãos. (MENELICK, 2003)
Segundo o professor Menelick de Carvalho Neto, por ocasião da apresentação feita à tradução do livro “A identidade do Sujeito Constitucional”, de Michel Rosenfeld, tanto Friedrich Muller, Chantal Mouffe, quanto o próprio Rosenfeld e maior parte da filosofia política e da doutrina constitucional atuais aprenderam por suas experiências que os regimes paternalistas e autoritários eliminam precisamente o que afirmam preservar. Caindo na contradição que os encaminharam para seu próprio desgaste e conseqüente fim. Como muito bem explica o professor:
Ela [a tutela paternalista] subtrai dos cidadãos exatamente a cidadania, o respeito à sua capacidade de autonomia, à sua capacidade de aprender com os próprios erros, preservando eternamente a minoridade de um povo reduzido à condição de massa (de uma não-cidadania), manipulável e instrumentalizada por parte daqueles que se apresentam como seus tutores, como os seus defensores, mas que, ainda que de modo inconsciente, crêem a priori e autoritariamente na sua superioridade em relação aos demais e, assim, os desqualificam como possíveis interlocutores. (MENELICK, 2003.)
Em contraponto aos paradigmas constitucionais anteriores, do Estado Liberal e do Estado-Providência, parece que não se verifica mais a exacerbação da esfera do privado em contraposição ao público, nem a diluição do público no estatal, pois não há mais como identificar, tendo em vista essas novas formações sociais, o público com o Estado. (ARAÚJO PINTO, 2003, p. 28)
Pelo contrário, ressalta-se a eqüiprimordialidade das dimensões pública e privada. Não apenas a esfera pública é redimensionada, como também a privada, com pretensões agora de autodeterminação, autonomia e liberdade, no dizer de Habermas. Como sugere o professor Menelick, “a democracia requer uma identidade em constante tensão com as diferenças” e também “as esferas pública e privada são dimensões em permanente tensão e interdependentes” (CARVALHO NETO, 2001, p. 23). O constitucionalismo hoje “se faz em concreto e depende da vida, da cultura, da tradição”. (CARVALHO NETO, 2001, p. 24)
Em oposição a pretensões totalizantes, Friedrich Müller propõe que povo é um processo de institucionalização e, assim, não pode ser firmado como uma unidade dada e sim como algo sempre em reconstrução, em consonância com a perspectiva de Ost, de contínua reconstrução. Tendo em vista que uma constituição democrática não pode alcançar a legitimidade de forma absoluta, considerando este um processo de renovação permanente, Müller indaga como se pode utilizar o povo enquanto conceito jurídico numa tradição constitucional quando se pretende cumprir a pretensão de legitimidade do governo do povo.
Seu ponto de partida é o "povo como povo ativo", atribuindo um caráter político ao tema. Analisando a palavra "democracia", em que demo significa povo e cracia significa dominação, acaba por afirmar que o "o povo atua como sujeito de dominação nesse sentido por meio da eleição de uma assembléia constituinte e/ou da votação sobre o texto de uma nova constituição". (MÜLLER, 2003, p. 55).
Destarte, o termo povo ativo significa a totalidade de eleitores, constituindo-se como fonte da determinação do convício social utilizando-se de prescrições jurídicas, considerando “ao menos a autocodificação das prescrições vigentes com base na livre competição entre opiniões e interesses, com alternativas manuseáveis e possibilidades eficazes de sancionamento político”. (MÜLLER, 2003, p. 57) O povo ativo decide diretamente ou elege os seus representantes, os quais co-atuam, em princípio, nas deliberações sobre textos de normas legais que, por sua vez, devem ser implementadas pelo governo e controladas pelo Judiciário.
Müller também dá ao povo a concepção de "instância global de atribuição de legitimidade". Esta noção decorre da idéia de que nos Estados em que os funcionários públicos e juízes não são eleitos pelo povo, necessita-se de uma instância capaz de legitimar suas atividades. Ao Poder Judiciário, como um poder executante, caberá aplicar as normas produzidas por um Poder Legislativo eleito pelo povo, cujos destinatários são potencialmente o povo, enquanto população, formando um ciclo de atos de legitimação que não pode ser interrompido. “É nesse sentido que são proferidas e prolatadas decisões judiciais ‘em nome do povo’". (MÜLLER, 2003, p. 61) Deste modo, o povo desempenha seu papel de instância global da atribuição de legitimidade democrática.
Vale ressaltar a importância que Müller dá aos direitos fundamentais, visto que considera que estes não devem ser vistos, por exemplo, como privilégios ou valores do poder de Estado, como muitos afirmam. Para ele são esses direitos que fundamentam uma sociedade libertária, e “sem a prática dos direitos do homem e do cidadão, o povo permanece em metáfora ideologicamente abstrata de má qualidade”. (MÜLLER, 2003, p. 63)
Numa reflexão da legitimidade, o autor examina a utilização da palavra povo mesmo quando o Estado funciona sem obedecer aos ditames democráticos, como em eleições fraudadas, ou mesmo quando o texto constitucional invoca o poder constituinte, mas é posta em vigor sem um procedimento democrático, entre outras situações. Neste caso, afirma que a invocação do povo é apenas icônica. O povo como ícone, erigido em sistema, propõe Müller, seria capaz de induzir a práticas extremadas. (MÜLLER, 2003, p. 67)
Tendo essa consideração em vista, Müller fala na possibilidade de se "criar o povo", como nos casos de colonização, expulsão, reassentamento, e até mesmo por meio da "limpeza étnica". Deste modo, o que se constata é que o povo como ícone não se refere a ninguém, mas é utilizado como figura mítica num discurso de legitimação.
Por fim, Müller trata o povo como "destinatário de prestações civilizatórias do Estado". Neste sentido, observa que ao povo não são impostos somente ônus e obrigações, mas também direitos. Friedrich Müller salienta que todo homem, não importando se nacional ou não, desde que em território de Estado democrático será destinatário de benefícios e proteção. Destarte, a distinção entre direitos de cidadania e direitos humanos não é apenas diferencial, mas relevante. "Não somente as liberdades civis, mas também os direitos humanos enquanto realizados são imprescindíveis para uma democracia legítima" (MÜLLER, 2003, p. 76)
A democracia avançada de Müller é vista como um nível de exigências que considera a maneira pela qual as pessoas devem ser genericamente tratadas no sistema de poder-violência denominado Estado: “não como subpessoas, não como súditos, também não no caso de grupos isolados de pessoas, mas como membros do soberano, do “povo” que legitima no sentido mais profundo a totalidade desse Estado” (MÜLLER, 2003, p. 115) Neste sentido, essa democracia abarcaria um status tanto negativus como positivus democrático. “Isso não é direito natural idealista; isso se acha incorporado ao texto das constituições das quais falamos. Democracia significa direito positivo – o direito de cada pessoa”.
Em suma, as reflexões sobre o povo, na perspectiva de Müller, não objetivam definir ou declarar quem seria esse povo, mas sim colocá-lo como pressuposto, como instrumento que possibilita que nos incluamos na categoria de legítimos. “O povo dos homens, o povo humano continua servindo para o fim de prover de legitimidade até pelo fato de ser ele dominado” (MÜLLER, 2003, p. 120).
Assim, vale ressaltar que, nas palavras de Müller, “o povo ainda está por ser criado”, contudo, considerando o povo como povo ativo, como instância de legitimação global e do povo enquanto destinatário de prestações civilizatórias do Estado acaba-se por possibilitar que a própria sociedade se torne mais democrática.
Partindo da perspectiva de Muller, pode-se constatar que os diversos dispositivos formais e informais da democracia como participação se apresentam como uma tentativa de realizar o ‘quantum possibile’ de democracia, visto que, para ele não existe democracia viva na ausência de um espaço público. Somente no espaço do povo, da população, possibilitar-se-ia a formação de uma verdadeira res pública, como coisa pública, uma coisa do povo. (MÜLLER, 2003, p. 132)
Importa lembrar que a concepção de povo não pode ser estritamente vinculada à perspectiva de soberania popular. Proclamando esta última como una e indivisível, assim como se observou na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, acabou-se por fomentar um absolutismo da noção de soberania que não é cabível na atualidade. Como sugere Fabio Konder Comparato, a partir de uma análise histórica que nos considera inseridos em um século que conheceu os horrores do totalitarismo, “já não podemos aceitar a soberania absoluta de ninguém, nem confiar nos simples processos de educação moral para evitar a prática de crimes contra a humanidade” (COMPARATO in MÜLLER, 2003, p. 27).
Considerando que a maioria do povo é capaz de esmagar ‘democraticamente’ a minoria em nome de interesse nacional, ressalta ainda uma possibilidade que considera ainda pior, “a de que a minoria, detentora do poder de controle social, pode se utilizar periodicamente do voto majoritário popular, para legitimar todas as exclusões sociais, em nome da democracia” (COMPARATO in MÜLLER, 2003, p. 27).
Salienta ainda que não existe soberania inocente, tendo em vista que a idéia que pressupõe a existência de um poder supremo representa a hybris, o que os gregos supunham ser a cerne da tragédia humana. Destarte, promove somente os direitos humanos hoje poderiam ser alçados a categoria de bem comum, tendo em vista que se fundamentam na igualdade absoluta de todos os homens, em sua comum condição de pessoas. (COMPARATO in MÜLLER, 2003, p. 28)
Já Michel Rosenfeld parte da expressão “Nós, o povo”. Analisando de forma abstrata, considera o povo como unidade envolvente a compreender o constituinte e o cidadão que são sujeitos a Constituição, o que acaba por deixar parecer possível superar as dificuldades do “quem” e do “o que” o sujeito e a matéria constitucional envolvem. (ROSENFELD, 2003, p.24) O sujeito constitucional é visto aqui como o sujeito do discurso constitucional.
Para Rosenfeld, a identidade do sujeito constitucional – complexa, fragmentada, parcial, incompleta e, ainda, impulsionada por um movimento dialético – carece de constante reconstrução. A negação, a metáfora e a metonímia são as principais ferramentas de reconstrução dessa identidade constitucional, que acompanha as novas tendências sociais.
Deste modo, alterando-se a identidade do sujeito constitucional, altera-se, também, a visão do intérprete e a sua interpretação. Observa o que ocorreu com a expressão “Nós, o Povo” da Constituição estadunidense de 1787. Em um primeiro momento, sugere Rosenfeld que essa expressão incluía governantes e governados, contudo excluía os escravos afro-americanos, em oposição à Declaração de Independência Americana de 1776 e à Declaração de Direitos de 1787, que propõe que: “Todos os seres humanos são, pela natureza, igualmente livres e independentes…”.
Em um segundo momento, após a Guerra de Secessão, os afro-americanos foram incluídos na expressão “Nós, o povo” do preâmbulo da Constituição, conquanto a escravatura fora abolida. Dessa forma, houve uma mudança Constitucional sem alteração do texto. Assim, o mesmo documento que, no passado, admitia a escravidão passa agora a proibí-la.
Destarte, a estrutura aberta do sujeito constitucional é imprescindível, como revela Rosenfeld, para que se possa dar curso a essa necessária articulação entre democracia e constitucionalismo. (STRECK, 2006)
A negação, a metáfora e a metonímia combinam-se para selecionar, descartar e organizar os elementos pertinentes com vistas a produzir um discurso constitucional no e pelo qual o sujeito constitucional possa fundar a sua identidade. A negação é crucial na medida em que o sujeito constitucional só pode emergir como (um "eu") distinto através da exclusão e da renúncia. A metáfora ou condensação, por outro lado, que atua mediante o procedimento de se destacar as semelhanças em detrimento das diferenças, exerce um papel unificador chave, ao produzir identidades parciais em torno das quais a identidade constitucional possa transitar. A metonímia ou deslocamento, finalmente, com a sua ênfase na contigüidade e no contexto, é essencial para evitar que o sujeito constitucional se fixe em identidades que permaneçam tão condensadas e abstratas ao ponto de aplainar as diferenças que devem ser levadas em conta se a identidade constitucional deve verdadeiramente envolver tanto o "eu" (self) quanto o outro. (ROSENFELD, 2003, p. 50)
Deste modo, de certa forma, pode-se vincular a concepção aberta e valorativa de povo de Müller a de identidade do sujeito constitucional de Rosenfeld. Assim, pode-se sugerir que, corroborando a perspectiva de Ost, tanto para Muller como para o Rosenfeld povo deve ser uma expressão em constante discussão, uma vez que se desdobra como um fluxo comunicativo que envolve de maneira permanente o diálogo com as gerações passadas e a responsabilidade para com as futuras.
III-Poder comunicativo e a o papel democrático das instâncias jurisdicionais
Habermas propôs que a idéia de Estado de Direito pode ser interpretada como a exigência de ligar o sistema administrativo, comandado pelo código de poder, ao poder comunicativo, que estatui o direito, para mantê-lo longe das influências do poder social, portanto, da implantação fática de interesses privilegiados. [1] Neste sentido, salienta o autor que “O poder administrativo não deve reproduzir-se a si mesmo e sim, regenerar-se a partir da transformação do poder comunicativo.” [2] A proposta habermasiana se coloca em pressupor o discurso na formação do direito, de forma que assim se garanta a igualdade no respeito à diferença, visando a inclusão e a participação de todos. Neste sentido, não haveria legitimidade (no sentido de poder comunicativo), por exemplo, uma lei que facultasse ao servidor o uso de bens públicos em seu prol, haja vista que o discurso democrático comunicativo por mais das vezes não o aceitaria.
Sob a ótica da Teoria do Discurso não somente não mais existe na sociedade atual um fundamento legimitador de atitudes autoritárias, um direito sagrado, por exemplo, mas também não se possibilita que interesses egoísticos sejam privilegiados e tomados como verdade, sendo impostos aos outros. Não se admite que um bem individual prevaleça sob o bem comum, assim como não se considera que o bem comum, como comum, seja capaz de excluir alguém. E aqui vale abrir um parêntese, afinal, os horrores do totalitarismo alemão, por exemplo, foram legitimados pelo povo. Já sob uma perspectiva habermasiana, o extermínio de judeus não poderia ser uma decisão legitimada que resultasse da comunicação, haja vista existir uma desconsideração, neste caso, de direitos fundamentais como a liberdade e a igualdade.
Em relação à formação legítima do direito por meio do poder comunicativo, explica Habermas :
O princípio do discurso tem inicialmente o sentido cognitivo de filtrar contribuições e temas, argumentos e informações, de tal modo que os resultados obtidos por este caminho tem a seu favor a suposição da aceitabilidade racional: o procedimento democrático deve fundamentar a legitimidade do direito. Entretanto, o caráter discursivo da formação da opinião e da vontade na esfera pública política e nas corporações parlamentares implica, outrossim, o sentido prático de produzir relações, as quais são isentas de violência, no sentido de H. Arendt, desencadeando a força produtiva de liberdade comunicativa. [3]
Sendo assim, constata que o cruzamento entre normatização discursiva do direito e formação comunicativa do poder é possível, visto que no agir comunicativo os argumentos também formam motivos. [4] Não somente possível, é necessária, ao se observar que comunidades concretas que procuram regular sua convivência por meio do direito “não conseguem separar as questões de regulamentação de expectativas de comportamento das questões referentes à colocação de fins comuns”. [5]
Em relação à vontade política de uma comunidade jurídica, ressalta que esta deve estar em harmonia com as idéias morais presentes, se apresentando então como a expressão de uma forma de vida compartilhada intersubjetivamente com situações e interesses dados, assim como com fins pragmaticamente escolhidos. [6] Ao analisar a utilização do direito e da moral para fins coletivos, observa que a necessidade de regulamentação jurídica não se esgota em meio a situações problema que exigem um uso moral da razão prática [7]. Sendo assim, o direito também é chamado para situações problema que exigem a persecução cooperativa de fins coletivos e a garantia de proteção de bens coletivos. [8]
Matérias jurídicas tocam fins e bens coletivos que despertam questões da forma de vida concreta e, inclusive, da identidade comum. E, nesse momento, não basta apenas explicar o que é igualmente bom para todos, pois é preciso saber também quem são os participantes e como eles desejariam viver. E, face aos fins que eles escolhem à luz de valorações fortes, eles enfrentam, além disso, a questão: qual é o melhor caminho para atingi-los? [9]
Neste sentido, verifica-se que a esfera das questões de justiça abarca problemas como auto-entendimento e escolha racional de meios. Como bem explica Habermas: “O conteúdo de uma lei só é geral, no sentido de um tratamento material igual, quando expressar um consenso racional em relação a todos esses tipos de problemas.” [10] A validade das normas jurídicas, consolidada em seu argumento só é possível, sob a ética do discurso, se “é relativa à identidade histórica e cultural da comunidade jurídica, relativa também às orientações axiológicas, aos fins e situações de interesse de seus membros” [11].
À luz da teoria do discurso habermasiana, normas morais válidas são aquelas vistas como corretas, como justas. Já as normas jurídicas válidas estão afinadas com as normas morais, contudo, sua legitimidade não exprime uma “autocompreensão autentica da comunidade jurídica ou a consideração imparcial dos valores e interesses nela distribuídos ou ainda a escolha teleológica de estratégias e meios.” [12] Ademais, importa observar a distinção entre as questões que formam o discurso: as Questões pragmáticas são aquelas em que o autor procura meios apropriados para a realização de preferências e fins que já foram dados. [13] Sendo assim, “A ponderação de fins, orientada por valores, e a ponderação pragmática de meios, leva a recomendações hipotéticas que colocam em relação as causas e efeitos, de acordo com preferências axiológicas e finalidades” [14], já as Questões éticos-políticas são as que os membros procuram obter clareza quanto a forma de vida que estão compartilhando e sobre os ideais que orientam seus projetos de vida. [15] Essas questões, observa Habermas, encontram sua resposta “nos conselhos clínicos para reconstrução de uma forma de vida consciente e assumida criticamente.” [16] Conforme preconiza:
As deliberações servem para a ponderação e o discernimento de fins coletivos, bem como para a construção e a escolha de estratégias de ação apropriadas à obtenção desses fins (...) o horizonte de orientações axiológicas, no qual se colocam essas tarefas de escolha e realização de fins, pode ser introduzido no processo de formação racional da vontade pelo caminho de um auto-entendimento que se apropria das tradições. [17]
Deste modo, sintetiza que em discursos pragmáticos, pressupõe-se um querer final conhecido, refletindo-se acerca de que estratégias de ação são adequadas para atingir esse resultado, enquanto no discurso ético-político, “nós nos certificamos de uma configuração de valores sob o pressuposto de que nós ainda não sabemos o que queremos realmente.”. [18]
Já nas questões morais, salienta o autor “o ponto de vista teleológico, que nos permite enfrenta problemas por meio de uma cooperação voltada a um fim, desaparece por trás do ponto de vista normativo, sob o qual nós examinamos a possibilidade de regular nossa convivência no interesse simétrico de todos”. [19]
Em discursos morais, a perspectiva etnocentrista de uma determinada coletividade se alarga, assumindo a perspectiva abrangente de uma comunidade não-circunscrita, onde cada membro se coloca na situação, na compreensão e na autocompreensão do mundo de cada um dos outros, e onde todos praticam em comum a assunção ideal de papéis. [20]
Quando se refere aos princípios do Estado de Direito e da lógica da divisão dos poderes, observa que sua perspectiva será a “a fim de fundamentar os princípios para uma organização política do poder público sob pontos de vista da teoria do discurso. [21] Como explica:
Se a negociação de compromissos decorrer conforme procedimentos que garantem a todos os interesses, iguais chances de participação nas negociações e na influenciação recíproca, bem como na concretização de todos os interesses envolvidos, pode-se alimentar a suposição plausível de que os pactos a que se chegou são conforme à equidade. [22]
O direito não é apenas constitutivo para o código de poder que dirige o processo de administração: ele forma simultaneamente o médium para transformação do poder comunicativo em administrativo. [23]
Interpretado pela teoria do discurso, o princípio da soberania popular implica: (b) o princípio da ampla garantia legal do indivíduo, proporcionada através de uma justiça independente; (c) os princípios da legalidade da administração e do controle judicial e parlamentar da administração; (d) o princípio da separação entre Estado e sociedade, que visa impedir que o poder social se transforme em poder administrativo, sem passar antes pelo filtro da formação comunicativa do poder.
O princípio da soberania do povo significa que todo o poder político é deduzido do poder comunicativo dos cidadãos. O conteúdo desse princípio só se esgota através do princípio que garante esferas públicas autônomas e do princípio da concorrência entre os partidos[24]. Ele exige uma estruturação discursiva das arenas públicas nas quais circulações comunicativas, engrenadas anonimamente, se soltam do nível concreto das simples interações. (...) tais arenas precisam ser protegidas por direitos fundamentais, levando em conta o espaço que devem proporcionar ao fluxo livre de opiniões, pretensões de validade e tomadas de posição; não podem, todavia, ser organizadas como corporações. [25]
Habermas propõe que a organização do Estado de Direito deve servir, em ultima instância, à auto-organização política autônoma de uma comunidade, a qual se constitui, com o auxilio do sistema de direitos, como uma associação de membros livres e iguais do direito. [26] Salienta que, normalmente, as decisões da maioria são limitadas por meio de uma proteção dos direitos fundamentais das minorias; pois os cidadãos, no exercício de sua autonomia política, não podem ir contra o sistema de direitos que constitui essa mesma autonomia.
Observa, em seguida, que as instituições do Estado de Direito devem garantir um exercício efetivo da autonomia política de cidadãos socialmente autônomos de forma que o poder comunicativo de uma vontade formada racionalmente “possa surgir, encontrar expressão em programas legais, circular em toda sociedade através da aplicação racional, da implementação administrativa de programas legais e desenvolver sua força de integração social – através da estabilização de expectativas e da realização de fins coletivos.” [27] Conforme dispõe:
A participação simétrica de todos os membros exige que os discursos conduzidos representativamente sejam porosos e sensíveis aos estímulos, temas e contribuições, informações e argumentos fornecidos por uma esfera pública pluralista, próxima a base, estruturada discursivamente, portanto diluída pelo poder. [28]
Neste sentido, em um Estado Democrático de Direito, é necessário que o Judiciário, por exemplo, tome decisões que retrabalhem construtivamente os princípios e regras do Direito vigente, e, destarte, “satisfaçam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na legalidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do direito, quanto no sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades do caso concreto”[29].
Neste sentido, salienta a relevância da introdução de princípios no provimento jurisdicional, visto que, apesar de não apresentarem a mesma estrutura, são normas jurídicas que operam ativamente “no ordenamento ao condicionarem a leitura das regras, sua contextualização e inter-relações”, possibilitando, deste modo, a decisão adequada ao caso concreto capaz de abarcar os interesses de todas as partes envolvidas, em uma perspectiva dworkiniana. Dworkin consegue mostrar como obter racionalidade nas decisões jurídicas recorrendo aos princípios. Os princípios, que não são dados como conceitos fechados, estão fundamentados no seu conceito de "interpretação construtiva", que busca formular seus conceitos das práticas sociais, rejeitando, pois, esquemas vindos das ciências da natureza.
Observa-se que Habermas considera a existência de um fluxo comunicativo capaz de incluir todos, com base em um princípio do discurso. Para ele, os princípios, ao invés de determinarem decisões, dizem como pode a formação da opinião e da vontade serem institucionalizadas por um sistema de direitos que assegure participação no processo legislativo em condições de igualdade. Assim, essa igualdade simboliza que o processo democrático há de assumir o risco de ter de aceitar que quaisquer temas e contribuições, informações e razões alcancem o debate público.
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[24] HABERMAS (2003, p. 214)
[25] HABERMAS (2003, p. 214)
[26] HABERMAS (2003, p. 220)
[27] HABERMAS (2003, p. 220)
[28] HABERMAS (2003, p. 229)
[29] CARVALHO NETTO, Noticias do Direito Brasileiro, p. 245.
Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília-UnB. Pós-graduada pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (FESMPDFT).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: KILIAN, Kathleen Nicola. Considerações sobre o conceito de "povo" e poder comunicativo no Poder Judiciário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 fev 2015, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43299/consideracoes-sobre-o-conceito-de-quot-povo-quot-e-poder-comunicativo-no-poder-judiciario. Acesso em: 23 dez 2024.
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