Sumário: Introdução: 1. O controle de constitucionalidade concentrado no Brasil. 1.1 Ação direta de inconstitucionalidade. 1.2 Ação declaratória de constitucionalidade. 2. A proteção dos interesses difusos. 2.1 A proteção dos interesses difusos no controle concentrado de constitucionalidade. Conclusão. Bibliografia.
Introdução
No Brasil o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos pode ocorrer de diversas formas e em diversos momentos. Assim, levando-se em consideração a natureza do órgão de controle, há o controle político, feito pelo Poder Executivo, como p.ex. ao vetar uma lei por inconstitucionalidade e pelo Poder Legislativo, na análise do projeto de lei pela Comissão de Constituição e Justiça; e, há o controle judicial, feito pelo Poder Judiciário. É desta segunda hipótese que trataremos no presente trabalho.
Quanto ao momento do controle, ele pode ser preventivo, isto é, antes da conversão do projeto em lei (controle político) ou judicial, quando p.ex. o STF reconhece Mandado de Segurança contra proposta de Emenda à Constituição Federal havendo ofensa a cláusula pétrea conforme art. 60, §4°, da Constituição Federal; pode ser repressivo, quando a lei já está em vigor.
Quanto ao órgão judicial que exerce o controle pode ser difuso ou concreto[1] e concentrado ou abstrato. Já quanto à forma ou modo de controle judicial pode ser por via incidental ou por via principal ou ação direta.
Vamos abordar apenas o controle concentrado ou abstrato, analisando-o como instrumento de proteção dos interesses ou direitos difusos.
Porém, vale estabelecer aqui algumas considerações a cerca da jurisdição constitucional. Teori Albino Zavascki[2] diz que:
...qualquer que seja o modo como se apresenta o fenômeno da inconstitucionalidade ou o seu agente causador, ele está sujeito a controle pelo Poder Judiciário. A atuação desse Poder do Estado na interpretação e aplicação da Constituição constitui o que se denomina jurisdição constitucional. É atividade que não se restringe, portanto, ao controle de constitucionalidade das leis e nem é exercida apenas pelo STF.
Luis Roberto Barroso[3] diz que “Jurisdição constitucional designa a aplicação da Constituição por juízes e tribunais.” Ou seja “a jurisdição constitucional compreende o poder exercido por juízes e tribunais na aplicação direta da Constituição, no desempenho do controle de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público em geral e na interpretação do ordenamento infraconstitucional conforme a Constituição.” O controle concentrado de constitucionalidade, portanto, é uma das formas de exercício da jurisdição constitucional.
Vale ressaltar que há especificidades na jurisdição constitucional em relação à jurisdição comum, pois suas decisões têm repercussão política e possuem efeito vinculativo e erga omnes. Temas relevantes para a sociedade são decididos e que interessam a todos.
Podemos destacar como funções da jurisdição constitucional: decidir violações ao texto constitucional, ou seja, preservação da Constituição Federal e do próprio Estado Democrático de Direito, uma vez que a base do Estado Democrático é a própria Constituição Federal e o respeito a ela. Também constitui função da jurisdição constitucional a limitação do Poder Público, controlar erros do Poder Legislativo, a preservação das minorias e assegurar o respeito aos direitos previstos na Constituição Federal (inclusive e principalmente dignidade da pessoa humana).
São requisitos da jurisdição constitucional autônoma a constituição de um órgão constitucional, que no Brasil é o Supremo Tribunal Federal, composto de forma democrática, o que atribui a legitimação democrática deste órgão. O artigo 101 da Constituição Federal estabelece que o Supremo Tribunal Federal será composto por 11 ministros nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal. Suas decisões gozarão de publicidade e devem possuir fundamentação sólida.
São funções de seus julgados: garantir a proteção dos direitos fundamentais, a proteção da democracia e do Estado democrático de direito, assegurar o equilíbrio entre os três Poderes, resguardar o pluralismo e a proteção das minorias e interpretar a Constituição Federal de forma atualizada e fundamentada.
As competências e funções do órgão constitucional estão fixadas pela Constituição Federal em seu artigo 102.
Por serem objeto de seus julgados causas que interessam a coletividade, com dimensão social, política e jurídica, é mister que haja autoconsciência dos limites de sua atividade a fim de evitar o decisionismo de caráter schmittiano, isto é, o decisionismo de Carl Schmitt que permite que, a pretexto de se preservar a Constituição, possa haver decisões contrárias a ela mesma.[4]
1. O controle de constitucionalidade concentrado no Brasil
A origem austríaca do instituto do controle concentrado teve influência direta de Hans Kelsen, que colaborou com a redação da Constituição da Áustria de 1920 e fez com que se criasse um órgão judicial – a Corte Constitucional – único competente para exercer o controle de constitucionalidade dos atos do legislativo e do executivo, num modelo de controle concentrado (julgar ações diretas de inconstitucionalidade).[5]
Como ensina Luís Roberto Barroso[6] a origem do controle concentrado de constitucionalidade se deu no modelo austríaco, que se irradiou pela Europa, “e consiste na atribuição da guarda da Constituição a um único órgão ou a um número limitado deles, em lugar do modelo americano de fiscalização por todos os órgãos jurisdicionais (sistema difuso).”
No Brasil, foi criado um sistema misto de controle, desde a Emenda Constitucional 16/65 à Constituição Federal de 1946, pois existe o controle abstrato e o concreto. O controle concreto ou difuso ocorre por meio de argüição de questão prejudicial em cada processo, perante o juízo de primeiro grau ou de tribunal federal ou estadual. Já o controle abstrato ou concentrado ocorre por ação direta dirigida ao Supremo Tribunal Federal ou a tribunal estadual, conforme seja impugnado lei ou ato normativo federal, ou estadual ou municipal, em face da Constituição Federal ou Estadual.
O controle concentrado de constitucionalidade ocorre por via de ação direta de inconstitucionalidade e de ação declaratória de constitucionalidade. Há duas hipóteses especiais de controle concentrado que são a argüição de descumprimento de preceito fundamental e a ação direta interventiva.[7]
1.1 Ação direta de inconstitucionalidade
O artigo 102, I, a, da Constituição Federal estabelece que compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar originariamente a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal.
No seu papel de guardião da Constituição cabe ao Supremo Tribunal Federal o controle concentrado da constitucionalidade ou não da norma federal ou estadual quando diante de sua análise frente à Constituição Federal. Em se tratando de lei ou ato normativo estadual ou municipal em face da Constituição estadual, compete ao Tribunal de Justiça estadual julgar a demanda.
Pode haver o controle abstrato de súmula vinculante do próprio Supremo Tribunal Federal. Como a súmula vinculante tem caráter geral e vincula os órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo, tem natureza normativa, o que a torna passível de controle abstrato de constitucionalidade pela ação direta. Já o verbete de súmula simples (fruto de decisões reiteradas dos tribunais) não pode ser objeto do controle concentrado, pois não possui caráter normativo e vinculante.[8]
A ação direta de inconstitucionalidade pode ser proposta pelos legitimados previstos no artigo 103 da Constituição Federal.
Por ter natureza diferenciada do processo tradicional em que há litígio entre as partes, na ação direta de inconstitucionalidade não há interesse subjetivo. Trata-se de processo objetivo, em que não se decidem conflitos de interesses das partes, pois toda coletividade é interessada na decisão desta ação, uma vez que interessa a todos que as normas inconstitucionais sejam afastadas pela decisão do Supremo Tribunal Federal.
Luís Roberto Barroso[9] ensina que:
a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal consolidou uma distinção entre duas categorias de legitimados: (i) o universais, que são aqueles cujo papel institucional autoriza a defesa da Constituição em qualquer hipótese; e (ii) os especiais, que são os órgãos e entidades cuja atuação é restrita às questões que repercutem diretamente sobre sua esfera jurídica ou de seus filiados e em relação às quais possam atuar com representatividade adequada.
Assim, a confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional enquadram-se na segunda categoria. Porém, o Prof. Nelson Nery Junior faz uma crítica a exigência da pertinência temática consagrada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que entende que a norma contestada deve repercutir direta ou indiretamente sobre a atividade profissional ou econômica da classe envolvida, ainda que só parte dela seja atingida. O Prof. Nelson Nery Junior[10] entende ser descabida tal restrição, pois não está prevista na Constituição Federal. Assim, pondera o respeitado jurista:
Sendo o processo da ADIn de natureza objetiva, não há que se perquirir de pertinência temática para o seu ajuizamento. Caso contrário, a vingar a tese do STF, ter-se-ia de exigir que o governador do Estado demonstrasse que a lei ou norma questionada, caso declarada constitucional ou inconstitucional, interferiria na ordem jurídica de seu Estado, ou, ainda, exigir o porquê do ajuizamento da ADIn pelo Conselho Federal da OAB, já que deveria demonstrar o reflexo da constitucionalidade ou não da norma questionada para o interesse específico e corporativo da classe dos advogados. Ou a restrição existe para todos os colegitimados da CF 103, ou ela não existe para nenhum. Não se pode falar em interesse (e esse é o sentido da demonstração da pertinência temática, travestido de questão sobre a legitimação), quando se tratar de processo objetivo, como é o caso da ADIn. Em tudo e por tudo a restrição é inconstitucional, ainda que espelhada na iterativa jurisprudência do STF, data máxima venia.
Por ser um processo objetivo, aplicam-se a ele os princípios: inquisitório ao invés do contraditório, da não desistência da ação, e o princípio oficial, em lugar da inércia da jurisdição, sendo que a ação direta de inconstitucionalidade por ter caráter social e difuso, é perpétua, ou seja, imprescritível.[11]
1.2. Ação declaratória de constitucionalidade
Criada pela Emenda Constitucional n° 3, de 17 de março de 1993, a ação declaratória de constitucionalidade não tem instituto similar no direito comparado. Em nosso sistema jurídico a lei goza de presunção de constitucionalidade, o que torna a ação declaratória de constitucionalidade passível de críticas pela doutrina, pois seria desnecessária, na medida em que há a ação direta de inconstitucionalidade também prevista em nosso sistema.
Entretanto, como bem observa o Prof. Nelson Nery Junior[12], a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade não têm caráter dúplice, pois não se trata da mesma ação invertida. Na ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente não há pelo Supremo Tribunal Federal a declaração da constitucionalidade da norma, porque este não foi o pedido e a coisa julgada forma-se sobre o pedido. A declaração de constitucionalidade da lei ou ato normativo não foi objeto do pedido, assim, não há coisa julgada sobre um “não pedido”.
O pedido na ação declaratória de constitucionalidade é que seja reconhecida a compatibilidade de lei ou ato normativo federal com a Constituição Federal, sendo que se for julgada procedente, o Supremo estará proferindo uma decisão normativa para os demais órgãos do Poder Judiciário, decidindo que a norma era válida e continua sendo, apenas com a reafirmação da presunção de constitucionalidade que toda norma possui[13].
O procedimento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade está previsto na Lei 9.868, de 10 de novembro de 1999. Em ambos os casos, os efeitos produzidos na interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto são erga omnes e vinculantes para os demais órgãos do Poder Judiciário, bem como para a Administração Pública federal, estadual, municipal e distrital, consoante disposição do §2° do artigo 102 da Constituição Federal e do parágrafo único do artigo 28 da Lei 9.868. Assim, como o controle é abstrato, a decisão do Supremo Tribunal Federal não precisa ser enviada para o Senado Federal para que suspenda a eficácia da lei, pois essa providência somente é exigível quando ocorrer o controle difuso ou concreto, em que a coisa julgada, na ação individual, atinge somente as partes, o que não é o caso no controle abstrato ou concentrado, que tem caráter objetivo.
Georges Abboud[14] afirma que “A eficácia erga omnes é ínsita ao processo constitucional em razão do interesse difuso que o controle de constitucionalidade tutela.”
2. A proteção dos interesses difusos
“O estudo dos interesses difusos surgiu e floresceu na Itália nos anos 70”, como informa Ada Pellegrini Grinover[15]. Juristas como Mauro Cappelletti e Proto Pisani, entre outros, começaram os questionamentos sobre o tema.
Assim, os interesses ou direitos difusos têm características peculiares, pois são transindividuais, daí serem também denominados de coletivos (em sentido amplo), tem objeto indivisível, ou seja, pertencem a todos e a ninguém ao mesmo tempo, com titularidade indeterminada, pois é inviável determinar quem são os titulares e a titularidade é interligada por circunstâncias de fato, ou seja, inexiste uma relação jurídica, um vínculo contratual entre as partes.
Também é importante ressaltar que a correta distinção entre os interesses difusos e coletivos depende da correta fixação do objeto litigioso do processo, ou seja, pedido e causa de pedir.
Ada Pellegrini Grinover[17] ressalta que a transformação do direito processual individualista para um modelo social, foi necessária para a adequação da proteção desta categoria de direitos que passaram a ser reconhecidas.
Assim, a Lei que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente, Lei n° 6.938/81, estabeleceu a legitimação do Ministério Público para as ações de responsabilidade penal e civil pelos danos provocados ao meio ambiente.
Uma reforma na Lei de Ação Popular em 1977 considerou patrimônio público os bens e direitos de valor artístico, estético, histórico ou turístico. Isso possibilitou que diversas ações populares fossem ajuizadas em defesa de interesses difusos ligados ao meio ambiente. Em 1985, a Lei n° 7.347, Lei da Ação Civil Pública, trouxe importante mecanismo processual para a defesa dos interesses difusos. A Constituição Federal de 1988 reconheceu expressamente a existência desses direitos e posteriormente o Código de Defesa do Consumidor trouxe importantes regras não somente materiais, como processuais sobre esses direitos.
Desta maneira formou-se um microssistema no direito brasileiro que tutela os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, que tem exercido influência em outros ordenamentos jurídicos, como, por exemplo, em Portugal e alguns países da América Latina.
2.1A proteção dos interesses difusos no controle concentrado de constitucionalidade
Como já mencionado anteriormente, no controle concentrado de constitucionalidade não há litígio entre as partes, o processo é objetivo, não há direito subjetivo individual a ser preservado, portanto, o interesse é de toda coletividade, o interesse é de toda sociedade que haja manutenção no sistema positivo de normas que sejam constitucionais, pois como já visto também, a função da jurisdição constitucional é a preservação do próprio Estado Democrático de Direito.
Neste sentido já reconheceu o Supremo Tribunal Federal, como demonstra a emenda abaixo[18]:
EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Embargos de Declaração. Questões relacionadas à violação do devido processo legal, do contraditório e à inconstitucionalidade por arrastamento. 3. Natureza objetiva dos processos de controle abstrato de normas. Não identificação de réus ou de partes contrárias. Os eventuais requerentes atuam no interesse da preservação da segurança jurídica e não na defesa de um interesse próprio. 4. Informações complementares. Faculdade de requisição atribuída ao relator com o objetivo de permitir-lhe uma avaliação segura sobre os fundamentos da controvérsia. 5. Extensão de inconstitucionalidade a dispositivos não impugnados expressamente na inicial. Inconstitucionalidade por arrastamento. Tema devidamente apreciado no julgamento da Questão de Ordem. 6. Inexistência de omissão, obscuridade ou contradição. 7. Embargos de declaração rejeitados (ADI 2982 ED, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 02/08/2006, DJ 22-09-2006 PP-00029 EMENT VOL-02248-01 PP-00171 LEXSTF v. 28, n. 335, 2006, p. 53-59)
No processo objetivo não há lide e não têm os legitimados poder de dispor sobre a ação.
Assim, não há como afastar o controle concentrado de constitucionalidade da ideia de proteção dos interesses difusos, que traduzem exatamente esta noção de interesse de todos.
Mas quem são os titulares do interesses difusos? Como a titularidade é indeterminada e indeterminável, o que o diferencia dos interesses coletivos em sentido estrito, poderíamos utilizar o povo como sendo o destinatário da norma constitucional e, portanto, o principal interessado na sua preservação.
Porém, conceituar “povo” também não é tarefa simples. Friedrich Müller[19] enfrentou a árdua tarefa de estabelecer esta noção de povo como questão fundamental para a democracia. Assim, ele coloca o “povo” como destinatário de prestações civilizatórias do Estado e como participante.
Segundo o autor, o mero fato das pessoas se encontrarem no território de um Estado é uma situação relevante, pois elas têm juridicamente a qualidade de ser humano, portanto, gozam do direito a preservação da dignidade humana, da personalidade jurídica. Assim, são protegidas pelo direito constitucional e pelo direito infraconstitucional vigente, ou seja, gozam de proteção jurídica. São protegidas pelos direitos humanos, por prescrições de direito da polícia entre outros.
Para Müller[20] “os habitantes não habitam um Estado, mas um território; isso vale tanto para titulares de outras nacionalidades como para apátridas, que pertençam à população residente.” E isso vale inclusive para aqueles que atravessam o território do respectivo Estado, “ainda que com restrições não jurídicas, mas fáticas”.
Segundo Müller:
A função do “povo”, que um Estado invoca, consiste sempre em legitimá-lo. A democracia é dispositivo de normas especialmente exigente, que diz respeito a todas as pessoas no seu âmbito de “demos” de categorias distintas (enquanto povo ativo, povo como instância de atribuição ou ainda povo-destinatário) e graus distintos. A distinção entre direitos de cidadania e direitos humanos não é apenas diferencial; ela é relevante com vistas ao sistema. Não somente as liberdades civis, mas também os direitos humanos enquanto realizados são imprescindíveis para uma democracia legítima.
O autor coloca o “povo” com sendo a totalidade dos efetivamente atingidos pelo direito vigente e pelos atos decisórios do poder estatal, sendo aqui entendidas todas as pessoas que se encontram no território do respectivo Estado. Afirma o autor:
Segundo essa proposta (ao lado da figura do povo enquanto instância de atribuição), o corpo de textos de uma democracia de conformidade com o Estado de Direito se legitima por duas coisas: em primeiro lugar procurando dotar a possível minoria dos cidadãos ativos, não importa quão mediata ou imediatamente, de competências de decisão e de sancionamento claramente definidas; em segundo lugar e ao lado desse fator de ordem procedimental, a legitimidade ocorre pelo modo, mediante o qual todos, o “povo inteiro”, a população, a totalidade dos atingidos são tratados por tais decisões e seu modo de implementação. Ambas, a decisão (enquanto coparticipação “do povo”) e a implementação (enquanto efeitos produzidos “sobre o povo”), devem ser questionadas democraticamente. Os dois aspectos são resultado de uma cultura jurídica desenvolvida, assim como o é a correção, nos termos do Estado de Direito, da observância, por parte do Estado, das circunstâncias de fato de inibição da ação estatal bem como de prestações estatais diante das pessoas atingidas.
Assim, Müller denomina o povo nesta visão como “destinatário de prestações civilizatórias do Estado”, isto é, “povo-destinatário”.
Poderíamos utilizar a noção de “povo” acima abordada para fixarmos a ideia de que os destinatários dos interesses difusos tutelados nas ações de controle concentrado de constitucionalidade são todas as pessoas interessadas na preservação do Estado Democrático de Direito, pois todas são interessadas na preservação da própria Constituição Federal, que implica na preservação da própria dignidade humana e conseqüente preservação da qualidade de vida.
CONCLUSÃO
Os direitos difusos deixam claro sua dimensão social e na medida em que a controle concentrado de constitucionalidade integra a jurisdição constitucional, não há como afastar a relação que tem o controle concentrado de constitucionalidade com a proteção dos interesses difusos, pois como se trata de processo objetivo, não há conflito de interesses das partes envolvidas, até porque não há litígio, mas sim a necessidade de proteção de toda coletividade, e aqui podemos utilizar a ideia acima apontada de “povo”, como atingido pelo Estado democrático, que justamente a jurisdição constitucional visa proteger.
Por ser instrumento de proteção dos interesses difusos, outra não poderia ser a conseqüência das decisões no controle concentrado, que têm efeito vinculante e erga omnes.
O reconhecimento da existência dos direitos difusos e coletivos, com dimensão social e política, que acarretou uma nova geração de direitos fundamentais, intitulados de direitos de terceira geração, baseados na solidariedade, decorrentes dos interesses sociais, trouxeram a necessidade de uma transformação no direito processual, o que ocorreu no processo constitucional, não sendo possível tratar as ações de controle concentrado como ações individuais, na visão do processo civil tradicional, na visão de solução de litígios entre partes com interesses subjetivos a serem tutelados.
As ações de controle de constitucionalidade ou inconstitucionalidade visam proteger interesses difusos, pois há o interesse de toda coletividade, interesse difuso, na defesa da Constituição Federal e do Estado Democrático de Direito.
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[1] Origem americana do controle difuso ou concreto: vale lembrar que o que originou o Judicial review (controle difuso de constitucionalidade) foi o caso Marbury X Madison, de 1803, em que um juiz – Marshall – declarou a supremacia da Constituição em relação a uma lei ordinária. John Adams (do Partido Federalista) nomeou, no final de seu governo na presidência dos EUA, William Marbury como juiz de paz no Distrito de Columbia, em 1801. O Senado aprovou e foi lavrada a nomeação, mas não houve a posse no cargo. No último dia de seu governo, Adams assinou os atos de investidura (commissions) dos novos juízes, ficando seu Secretário de Estado – John Marshall – encarregado de entregá-los aos nomeados. Marshall também havia sido indicado para o cargo de Presidente da Suprema Corte. Ocorre que não deu tempo de Marshall entregar os atos de investidura para todos e acabou o governo. Quando Thomaz Jefferson, republicano, sucedeu Adams na presidência, determinou a seu secretário de Estado – James Madison – que negasse a posse, não entregando os atos de investidura aos que não haviam recebido. Dentre eles estava William Marbury que propôs uma ação (writ of mandamus) para ter reconhecido seu direito ao cargo. A Suprema Corte se reuniu em 1803 para analisar o caso. Marshall desenvolveu seu voto entendendo que Marbury tinha direito à investidura no cargo, que o remédio jurídico para assegurá-lo era o writ of mandamus e que o Judiciário poderia determinar que o Executivo cumprisse a ordem. Assim, estabeleceu a regra de que atos de Executivo são passíveis de controle jurisdicional, quanto a sua constitucionalidade e legalidade. Assim, três importantes consequências decorreram desta decisão: a supremacia da Constituição, a nulidade da lei que contrarie a Constituição e que é o Poder Judiciário o intérprete final da Constituição.
[2] ZAVASCHI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 14.
[3] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 25.
[4] ABBOUD, Georges. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 93 e segs.
[5] FROEHLICH, Charles Andrade; HAMMES, Elia Denise. Manual do controle concentrado de constitucionalidade. Curitiba: Juruá, 2009, p. 26.
[6] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 182.
[7] Idem, p.304.
[8] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal comentada e legislação constitucional. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 592.
[9] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 187 e 188.
[10] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal comentada e legislação constitucional. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 1092.
[11] Idem, p. 1088.
[12] Idem, p. 593.
[13] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 267 e 268.
[14] ABBOUD, Georges. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 125.
[15] GRINOVER, Ada Pellegrini e outros. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. vol.II, Processo coletivo. 10 ed. revista, atualizada e reformulada. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 39.
[16] CAPPELLETTI, Mauro. Formações Sociais e Interesses Coletivos diante da Justiça Civil, in Revista de Processo n. 5, Revista dos Tribunais, São Paulo, p. 128 a 159.
[17] GRINOVER, Ada Pellegrini e outros. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. vol.II, Processo coletivo. 10 ed. revista, atualizada e reformulada. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 41.
[18] ADIn 2.982-ED, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 02.08.2006, DJ 22.09.2006.
[19] MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo?A questão fundamental da democracia. 6ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 66 e segs.
[20] Idem, p. 66.
Mestre e doutoranda em Direito das Relações Sociais pela PUC de São Paulo, professora de direito civil e de direito ambiental, advogada. Autora do livro Resumo jurídico de direitos reais, volume 19. São Paulo: Quartier Latin, 2004 (a venda na internet)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JARDIM, Luciana Chiavoloni de Andrade. O controle concentrado de constitucionalidade como instrumento de proteção dos direitos difusos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 fev 2015, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43301/o-controle-concentrado-de-constitucionalidade-como-instrumento-de-protecao-dos-direitos-difusos. Acesso em: 23 dez 2024.
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