Resumo: Este artigo jurídico busca explanar, a partir de excerto da obra “O tempo do direito”, de autoria de François Ost, algumas características do ideal democrático. Para isso, procura-se desvendar algumas das diferenças de formação entre o regime do totalitarismo e da democracia (na visão de Hannah Arendt, Celso Lafer e outros autores) e o desenvolvimento do totalitarismo no regime nazista, ressaltando algumas possibilidades teóricas para a reflexão sobre a democracia.
Palavras-Chave: Estado Democrático de Direito. Democracia. Totalitarismo. Pluralismo.
Sumário: I- Democracia: a dissolução das marcas da certeza na visão de François Ost. II-Totalitarismo x Democracia: a visão de Hannah Arendt. III- Reflexões sobre o ideal democrático. Referências bibliográficas
I- Democracia: a dissolução das marcas da certeza na visão de François Ost.
François Ost destaca algumas das características que evidenciam a distinção entre democracia e totalitarismo. Elucida: “Enquanto que o totalitarismo, que o século 20 tentou se lhe opor, se vê crescer um partido que nutre a pretensão de encarnar o povo inteiro, a democracia torna o poder, ao contrário, infigurável” (OST, 2005, p .13) . O que o autor procura defender é que uma das marcas da democracia moderna é a indeterminação: o poder é continuamente reposto em jogo, de forma que ninguém será capaz de apropriá-lo.
Dessa forma, a esfera do poder, do saber e da lei não são tomadas como verdade, como ocorre no regime totalitário, mas, pelo contrário, considera-se a importância do permanente questionamento dos seus fundamentos. E este questionamento acaba por refletir em suas características mais intrínsecas: a pluralidade de opiniões e a existência do conflito. Mas o que isso significa? Simboliza que enquanto o totalitarismo reduz o conflito, representando a sociedade de forma orgânica, a democracia se sustenta pela deliberação, pela ausência de um bem comum inquestionável, pela falta de uma estrutura rígida, já que a democracia está sempre apta a alterar suas prioridades.
Parece que, procurando contra-argumentar aqueles que possam duvidar da legitimidade da aberta estrutura democrática, Ost defende que a o regime tem que se precaver de dois perigos: o da exacerbação do conflito e o de sua ocultação. Dentro do conflito deve existir ao menos um “acordo sobre uma regra de jogo comum”, sob pena da exclusão ou destruição do adversário. Por outro enfoque, enfatiza o risco de surgirem focos de violência ao se instaurar “consensos de fachada”. O autor alerta que a posição teórica de Rawls e Habermas, de defender um “consenso racional”, acaba por se expor ao risco de ocultar a natureza conflitual de toda interação social.
Mas seria possível, em meio ao dissenso, a formação de uma democracia plural? Partindo da perspectiva de Chantal Mouffe, Ost defende que: “Toda arte consiste, então, em dominar esta violência sem por isso negá-la; transformar o antagonismo potencialmente destrutivo em agonismo democrático; criar uma ordem política sobre um fundo de desordem ameaçador” (OST, 2005, p. 316). A dinâmica da democracia pluralista se estrutura sobre os seguintes alicerces: consenso quanto aos princípios a serem defendidos, mas dissenso quanto a sua interpretação. Como encontrar o equilíbrio? Para o autor, o regime democrático, por prometer a igualdade e a liberdade para todos, é o melhor projeto político, apesar do constante risco de recair em uma divisão caótica ou no fantasma do povo único.
O autor delineia aspectos das formas assumidas pela democracia nas últimas décadas. A formação do Estado Social, explica Ost, se deu com o anseio do Estado Providência, - em vistas da concretização das promessas de liberdade e igualdade-, com a crença no domínio de todos os riscos sociais, acreditando Estado ser capaz de impor a segurança generalizada. A idéia era de instaurar a segurança e afastar o medo coletivo do futuro. Para o autor, dar tratamento e estatuto a este medo é uma necessidade imperiosa de toda sociedade.
Ost prossegue com a discussão acerca do medo, e a mantença da segurança por parte do Estado. Observa que a social democracia enfatiza que o objetivo da sociedade é o bem comum. Neste sentido, o Estado, principalmente nos anos pós-guerra, reflete-se em prestações que objetivam a equalização das condições sociais. Como exemplo, no plano jurídico, menciona a Lei Fundamental Alemã de 1948: consagram-se os direitos econômicos, sociais e culturais, no sentido de garantir a dignidade a todos. Mitiga-se, contudo, as liberdades liberais e relativiza-se o direito a propriedade.
Para alçar o bem-estar social, seria suficiente o Estado ser redistribuidor de condições? Parece que não. Foi necessária uma conduta propulsiva, dirigente. Conforme argüi Ost, a mão invisível da economia foi substituída pela mão visível da economia estatal. E quais seriam as conseqüências no plano jurídico? O autor sugere que o ativismo jurídico dos poderes públicos, a determinação da regra do direito com base em políticas setoriais, acarreta uma insegurança jurídica. O arcabouço jurídico acaba por ser levado a segundo plano. Neste sentido, a opção do Estado Social foi a de que uma segurança fundada em melhorias sociais justificava uma perda de segurança jurídica.
Ocorre que, flagrantemente, esse modelo entrou em crise, não somente financeira – desencadeada pelo desemprego estrutural-, mas principalmente ideológica, já que se questiona a própria finalidade do Estado Social. Isso decorre de uma mudança de sociedade: “não se luta mais para que o futuro seja melhor, somente para que ele não seja pior” (OST, 2005, p. 320). Para o autor, esta é a passagem do Estado Social solidário para a sociedade do risco securitário. Demonstrado que o Estado Providência é incapaz de garantir a segurança, retoma-se a reprivatização das relações sociais.
Altera-se a formação de classes, já que os excluídos não parecem mais formar uma classe homogênea que poderia ser representada. Não se pretende mais um “direito social”, mas a reparação individual de um dano. Na sociedade do risco, emerge a figura da vítima, em oposição ao ator social, “e do juiz como substituto do político”. É nas Cortes que se desenvolve a questão da justiça social: praticamente não se reconhece direitos abstratos para o futuro, mas, cada vez mais, situações individualizadas e ligadas ao passado.
Como seria possível redefinir o risco? O medo e o risco estão no centro das preocupações coletivas desde o Estado Social, mas assumem novas configurações. Hans Jonas sugere uma “heurística do medo”, que concerne ao medo desinteressado pelo porvir das gerações futuras. Quais seriam, portanto, as etapas por que passaram os riscos?
A primeira etapa, na proposta do autor, é visualizada na sociedade liberal do séc. XIX, em que o risco é o acontecimento exterior e imprevisto, individual e repentino. Trata-se do risco-acidente. O segundo momento, no início do séc. 20, se refere à prevenção: atitude coletiva que enseja reduzir a probabilidade da chegada e da gravidade do risco. Tal concepção fica bastante nítida no Estado Social, forma de “sociedade providencial do risco calculado” (OST, 2005, p. 325)
Já a terceira etapa é a do risco “catastrófico”, de certa forma previsível, que leva a incerteza no campo dos poderes e saberes. Partindo da perspectiva de Luhmann e Beck, Ost defende que o risco é um efeito perverso ou secundário das nossas próprias decisões, sendo duplamente reflexivo: “produto de nossas escolhas tecnológicas, é igualmente o fruto de nossos modelos científicos e de nossos julgamentos normativos”. Como conseqüência, podemos exemplificar o saber científico: o princípio da precaução convida ao ceticismo. Com a política da indeterminação, o que mais interessa na ciência são as dúvidas que ela pode suscitar, e não os veredictos que produz.
O que caracteriza a sociedade do risco, na perspectiva desse autor, é a introdução da incerteza no campo dos saberes e dos poderes, enfatizando a revisibilidade das escolhas tomadas. Explica: “Virtual sem ser quimérico, improvável sem ser fantasma, este risco se apresenta como uma ameaça invisível e, entretanto, bem real. Quem poderia prever os efeitos da ingestão moderada de dioxina ou da exposição parcial às radiações nucleares?”. Neste contexto, a imobilidade é inconcebível, as sociedades são obrigadas a revisar continuamente suas opções, para se prepararem rapidamente para novos riscos.
II-Totalitarismo x Democracia: a visão de Hannah Arendt
Hannah Arendt tece importantes considerações quanto a formação do totalitarismo, que coincide de certa forma com a proposta de François Ost: o ideal democrático pressupõe o debate, o conflito, opondo-se, estruturalmente, ao totalitarismo. Não somente isso, importa tecer um paralelo entre o “risco” proposto por Ost e a “ruptura” proposta por Arendt, já que ambos se propõem a discutir a importância do questionamento das estruturas existentes.
Para esta filósofa, assim como em Ost, a mera aceitação da realidade constitui pano de fundo para instauração de estruturas totalitárias. A democracia se configura pela possibilidade de questionamento. Celso Lafer, em “A ruptura e o paradigma da Filosofia do Direito – os limites da lógica do razoável” na obra A reconstrução dos Direitos Humanos – um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, aborda as idéias de Hannah Arendt, propondo um diálogo, enfatizando a temática da ruptura e do totalitarismo, ressaltando a influência do pensamento da autora no campo da epistemologia da Filosofia do Direito.
O autor parte da idéia de ruptura, temática evidenciada por Hannah Arendt. A ruptura é vista como uma quebra nas tradições que perpassam a história ocidental, procurando mostrar que o novo não é resultado de causas antecedentes. A ruptura tem como marco definitivo o totalitarismo enquanto forma de governo e dominação baseada no terror e na ideologia, cujo ineditismo as categorias clássicas do pensamento político não captam e cujos “crimes” não podem ser julgados pelos padrões morais usuais, nem punidos dentro do quadro de referência dos sistemas jurídicos tradicionais. (LAFER, 1991, p. 80).
Considerando a descontinuidade uma nota típica do mundo moderno, Hannah Arendt busca, a partir da “dispersão de fragmentos”, reconstruir caminhos. Sua dedicação a Filosofia da Existenz remonta a idéia de unidade entre pensamento e ser, existência e essência. Da crítica a essa idéia, elaborada por Kant, resulta uma confirmação do pensamento de ruptura de Hannah Arendt, pois Kant, ao destruir a idéia de harmonia entre o homem e o mundo, quebrando a unidade entre o ser e o pensamento, substitui o paradigma do Direito Natural pelo paradigma da Filosofia do Direito. A partir deste autor, emergeriam esforços para reconstruir a unidade, ou para destruí-la. Essas inquietudes somam-se no campo de pensamento ao processo de ruptura.
Esse desconcerto epistemológico contribui para as constantes buscas de significados e compressão por parte de Hannah Arendt. Para a autora:
A compreensão (....) é uma atividade sem fim, por meio da qual, em constante mudança e variação, nos ajustamos e nos reconciliamos com a realidade, isto é, nós tentamos estar a vontade com o mundo. (ARENDT apud LAFER, 1991, p. 84)
A aliança entre pré-compreensão, que se encontraria na base do conhecimento, e compreensão possibilita ao conhecimento ser significativo. A reflexão sobre significados é retomada, e da colocação sobre a crise da filosofia e da religião emerge a possibilidade de reflexão sobre uma crise no direito, uma morte do direito, “de como o Direito participa (...) da angústia contemporânea pelas dúvidas que provoca nos próprios juristas”, formando assim uma nova ruptura.
Lafer ressalta a distinção feita por Hannah Arendt em sua obra Thinking, sobre o pensar e o conhecer. O pensar é visto como uma busca de significado e atributo da razão, já o conhecer como uma busca da verdade. Essa dicotomia básica na epistemologia arendtiana influencia o Direito, pois para se aderir a normas de conduta de uma sociedade é necessário não apenas conhecer as leis em novos termos, mas “parar para pensar” no Direito, criticando ou duvidando do conteúdo. O pensamento de Arendt firmou-se com o pensar vivo, herança do seu mestre Jaspers. O pensar vivo é necessariamente visto como o resultado da reflexão em situações-limite capazes de exercer um efeito liberador no juízo. “Para ela, o juízo é a mais política das aptidões mentais (...) o juízo reflexivo, como a ação, rompe o automatismo e enseja o novo”.
A partir de uma leitura sobre o senso comum, a crítica de Arendt direciona-se ao problema do continuo processo de dogmatização do conhecimento jurídico. Não se pára para pensar, e assim, sem se questionar, se adere a normas de conduta de uma sociedade. O que pode propiciar situações particulares como a ocorrida na Alemanha Nazista e na Rússia stalinista. Desta forma enfatiza-se o pensar vivo, uma interação entre o pensar e o conhecer suscitada em situações limites como a morte, o sofrimento ou o nazismo.
A liberdade é vista em The Life of the Mind, como “a capacidade de dar início, no espaço público da palavra e da ação, a coisas novas, singulares e sem precedentes”. Arendt propõe uma autonomia do julgar, do querer e do pensar em relação à cognição, objetivando assim a formação de um juízo que seja reflexivo e não determinante, pois desta forma se negaria à liberdade do eu que pensa, quer e julga para criar novos eventos sem precedentes.
A Filosofia do Direito é vista como uma interação entre o pensar e o conhecer, que resulta do processo de confronto com os problemas do Direito Positivo e do Direito Natural. O paradigma da Filosofia do Direito define um Direito em continua transformação de forma, não de conteúdo, e baseia-se e uma lógica do razoável. Para a autora, esse procedimento metodológico se mostra ineficiente diante de situações limite como o totalitarismo, pois não se instiga o pensar e, pela lógica do razoável existente nesse paradigma, pressupõe-se uma relativa razoabilidade do mundo.
Foi a partir de então que se vislumbrou a necessidade de alçar a relação pensar e conhecer de forma diferente daquela baseada na razoabilidade, o que iria futuramente resultar na proposta da autonomia já aqui exemplificada. Em sua obra The origins of Totalitarianism, Arendt não se propõe a conhecer o totalitarismo, mas a pensar sobre seu significado.
No pensamento arendtiano, o totalitarismo é caracterizado pelo primado do movimento. O primado do movimento busca que o modo de vida não seja regularizado, de modo que assim se facilite a dominação total. No campo do Direito, é legitimado pelo amorfismo jurídico, que corresponde a um amorfismo no campo de Estado. a relação jurídica é substituída pela fidelidade pessoal, como com HITLER. Na Alemanha Nazista, com a Constituição de Weimar, a lei de plenos poderes em 1933 “teve não só o efeito de legalizar a posse de Hitler no poder como o de legalizar geral e globalmente suas ações futuras” tornando-se ele a “fonte de toda legalidade positiva”.
Hannah Arendt imagina a sociedade nazista como uma cebola, e não como uma pirâmide. No centro encontrar-se-ia o líder, revestido por fachadas de contraditórias instituições que possibilitariam seu isolamento. Nesta sociedade, não há hierarquia de poder e as leis não se incomodam com a conduta e a organização humana, são apenas “leis de movimento”.
No estado totalitário não há hierarquia de poder ou competências definidas com base na lei, e este amorfismo é o mecanismo para instrumentalizar a realização do princípio de liderança. O desejo de liderança – do chefe – pode encarnar-se, dependendo do momento, em qualquer dos múltiplos órgãos existentes ou criados pelo regime.
A reflexão acerca deste aniquilamento da legalidade no Estado totalitário põe em xeque o Positivismo jurídico, pois ele combina decisões com normas que estão no ordenamento. Esse aniquilamento, baseado na busca de execução da Lei da Natureza, no caso do nazismo; e na execução da Lei da História, no caso do stalinismo – de forma que não se converte a lei em critério de certo ou errado que norteariam a conduta individual e sim se visa aplicá-la a humanidade em geral - contribui para a perda de significado de características como, por exemplo: A definição do Direito como ordenamento e os problemas daí derivados que levam aos pressupostos da coerência, hierarquia e inteireza do sistema jurídico; a preocupação com o rigor da análise da sintaxe e da semântica do discurso jurídico
A primeira contestação ao paradigma da Filosofia do Direito, como já observado, surge dessa ruptura trazida pelo totalitarismo. Não era possível por meio deste paradigma pensar o significado do totalitarismo. A ruptura refletiu uma a descontinuidade de conceitos e categorias e realidade, e não a existência de uma razoabilidade.
Como instituição que legitime a dominação total, Hannah Arendt enfatiza a importância dos campos de concentração na formação do ideal totalitário de considerar os homens supérfluos, de acreditar que tudo é possível e de manter o poder pelo medo. O campo de concentração permite ao regime totalitário alcançar com plenitude seus anseios, e essa proposta de organização da sociedade se distancia de qualquer critério razoável de justiça. Sendo assim, um aparato jurídico não pode ser observado, pois a legalidade levaria a uma estabilização, por mais injustas que fossem as normas. De acordo com Luis Alberto Warat:
Nos regimes totalitários se produz coletivamente uma espécie de 'cegueira histérica'; as pessoas negam-se a ver o horror da realidade a que estão expostas. É uma cegueira que lhes permite aceitar, delirantemente, a ilicitude do regime do terror como legalidade. Terror e lei terminam sendo, histericamente, a mesma coisa. (WARAT, 2002, p. 334)
Dessa forma, a distância dos indivíduos ao real acontecimento dos fatos é o resultado da lógica do terror, e dessa forma, alienando-se a realidade, diminui-se a compaixão. Como observa Warat: “os efeitos perversos desta mitologia da morte são vistos através do silêncio e do segredo sobre os que vão morrendo; é o 'diferente' [o judeu], transformado em 'desaparecido'”.
A destruição da idéia de justiça é confirmada pela forma de atuação do “inimigo objetivo”, da mentira ideológica, do racismo, do expansionismo e da burocracia. Do racismo, Lafer exemplifica, decorre “A perda do senso de realidade dos europeus no contato com os outros povos - uma perda que gerou insensibilidades que propiciaram o advento do genocídio”. A prática imperial seria o cerne do totalitarismo e do surgimento de campos de concentração, entretanto o autor enfatiza uma diferenciação elaborada por Hannah Arendt, que diz que, no imperialismo, por mais que se parta de que “tudo é permitido”, motivos utilitaristas e interesses permeiam as ações, o que não ocorre nos campos de concentração, pois lá se passa a esfera do “tudo é possível”. Deste modo o terror em um estado totalitário perde característica de meio com utilidade:
Hannah Arendt observa que, num regime totalitário, o medo é generalizado e difuso, mas também, de maneira paradoxal, não tem utilidade como critério de conduta individual, pois as ações que ele inibe e condiciona não evitam o perigo que se teme. (LAFER, 1991, p. 104)
Ressalta-se que na perspectiva arendtiana o Estado despótico-autoritário de tirania não pode ser confundindo com um totalitário, pois no primeiro haveria o interesse dos governantes na manutenção do poder, conferindo certa previsibilidade e razoabilidade ao regime. A polícia secreta de um Estado despótico-autoritário visaria à pacificação, como por meio da prisão de suspeitos de ações contra o governo. O que não ocorre no segundo, visto que o aparato totalitário desconsidera interesses nacionais, materiais, não sendo motivado pelo lucro. O serviço secreto é totalmente sujeito aos desejos do líder e deve estar sempre disponível quando o regime resolver “liquidar certas categorias da população”. (LAFER, 1991, p. 101)
Os próprios governantes não afirmam serem justos ou sábios, mas apenas executores de leis históricas ou naturais; não aplicam lei; mas aplicam um movimento segundo sua lei inerente. O terror é a legalidade quando a lei do movimento de alguma força sobre-humana, seja a Natureza ou a Historia. (LAFER, 1991, p. 102).
Para Celso Lafer, ao dialogar com Hannah Arendt, objetivando impedir o surgimento de um novo estado totalitário, emergem alguns temas de direitos humanos:
• a cidadania concebida com o “direito a ter direitos”, pois sem ela não se trabalha a igualdade que requer o acesso ao espaço público, pois os direitos – todos os direitos – não são dados (physei) mas construídos (nomoi) no âmbito de uma comunidade política;
• a repressão ao genocídio concebido como um crime contra a humanidade e fundamentado na tutela da condição humana da pluralidade e da diversidade que o genocídio visa destruir;
• o estudo da obrigação política em conexão: com o direito de associação como a base do agir conjunto e condição de possibilidade da geração de poder; com a dimensão de autoridade e legitimidade da fundação do nós de uma comunidade política e a sua relação com o direito à autodeterminação dos povos; com o poder da promessa e conseqüentemente com o pacta sunt servanda enquanto base da obediência ao Direito; com a resistência à opressão, através da desobediência civil, que em situações-limite pode resgatar a obrigação política da destrutividade da violência;
• o direito à informação, como condição essencial para a manutenção de um espaço público democrático, e o direito à intimidade, indispensável para a preservação do calor da vida humana na esfera privada. (LAFER, 1997, p. 64)
A tentativa de tornar os homens supérfluos, como se verificou nos governos totalitários, possui uma impressionante atualidade segundo a perspectiva arendtiana: Os acontecimentos políticos, sociais e econômicos de toda parte conspiram silenciosamente com os instrumentos totalitários inventados para tornar os homens supérfluos.
O que Lafer confirma considerando as guerras e a miséria como reflexo dos excessos de poder e excesso de impotência preponderantes no mundo hoje. A questão é, para ele, como reconstruir a temática dos direitos humanos diante da persistência do processo de ruptura mediante “juízos reflexivos sobre a singularidade da situação presente, uma vez que o ineditismo do mundo contemporâneo não permite a subsunção ao repertório das categorias tradicionais”. Segundo essa perspectiva, jamais poderemos nos sustentar em experiências passadas para lermos o presente, e muito menos ainda, o futuro, sendo de importância suprema a reflexão e o respeito aos direitos fundamentais.
III- Reflexões sobre o ideal democrático
Uma das dificuldades e questões que se colocam na Modernidade, neste paradigma de Estado Democrático de Direito, é a retomada de um espaço público no qual seja ultrapassada a concepção de cidadania limitada ao Estado, como ocorria no âmbito do Estado Social. Hannah Arendt considera o espaço público como o espaço aberto à imaginação inventiva que possibilita que o homem se torne capaz de criar eventos novos e sem precedentes. Retomar o espaço público, segundo a filósofa, mostrar-se-ia como a possibilidade de afirmar a autonomia do julgar, do querer e do pensar em relação à cognição, de forma que assim se suscite a formação de juízos reflexivos – e não determinantes - ante a realidade, de forma que se enfatize a liberdade de ação. Na filosofia arendtiana, a falta de reflexão apresenta-se como espelho de uma realidade que considera os indivíduos, não como participantes, e sim como meros espectadores do mundo. Deste modo, para ela, é o senso comum que configura a nossa integração com a sociedade, que nos deixa à vontade com o mundo, de forma que assim não se “pára para pensar”, não se questiona e simplesmente se adere a normas estatuídas.
Os princípios fundamentais, segundo Giancarlo Corsi em Sociologia da Constituição, se apresentam neste contexto de modo a não terem nenhuma consistência semântica: são vazios de conteúdo. Desta forma, propõe Corsi, a função destes direitos pode ser desenvolvida apenas e exatamente porque estes não especificam de nenhum modo a praticabilidade de seus preceitos. Assim, sugere que todo valor ou direito fundamental tem o sentido de abrir um espaço de contingência completamente indeterminado, no interior dos quais os aparatos organizacionais e seus procedimentos internos podem especificar determinadas formas. As normas ditas “fundamentais” não representariam imediatamente um instrumento decisório, visto que é mediante as constituições e o esvaziamento semântico de seus valores que o direito moderno neutraliza o passado, expondo-se, desta forma, à dependência de um futuro que é, exatamente como tal, imprevisível e ignorado.
Salienta Corsi que, se aceitarmos a idéia de que todo direito fundamental e todo valor têm sentido, apenas, porque deixam indeterminados os critérios de sua própria violação - mesmo que lícitas, produzidas por procedimentos, derrogações ou exceções-, podemos ver nestes um modo decisamente particular de representar-se a indeterminação daquilo que, no sistema do direito, é possível. Em outros termos: mediante a sua constitucionalização, os direitos fundamentais tornam-se símbolos de futuras diferenças, são unidades que têm sentido apenas como diferenças ainda desconhecidas e sobre as quais se deverá, eventualmente, decidir.
Sob esse enfoque, parece que de uma leitura de Ost, Arendt, Lafer, Corsi pode-se destacar como alicerces comuns do que se pretende por democracia hoje: a impossibilidade de apropriação do poder por parte de um grupo, a necessidade de convivência entre os conflitos, espaço público de discussão, sem uma supressão do político e a primazia dos direitos fundamentais.
Assim, para que se atenda a demanda de um Estado Democrático de Direito - enfatizando a efetivação de direitos fundamentais-, mostra-se como cada vez mais necessária a prática da democracia, sem que assim se pretenda “elaborá-la”, visto que os riscos encontram-se inerentes a sua estrutura e que a partir do momento em que se busca alcançá-la e concretizá-la acaba-se por instaurar regimes ditatoriais: “A maturidade democrática requer uma eticidade reflexiva capaz de rever como inadmissíveis antigas práticas naturalizadas”.[1]
Ademais, com fundamento nos entendimentos expostos e no que se refere à organização do Estado e a participação: “O que é constitucionalmente relevante para se assegurar a democracia é o bom e correto funcionamento das mediações institucionais que possibilitam, na normalidade institucional, o permanente debate dos argumentos e o acesso a informações.” [2] Neste contexto, ressalta-se o papel primordial atribuído ao sistema jurídico e constitucional, centrado na concretização de direitos fundamentais, como local de discussão e realização do ideal democrático.
Referências Bibliográficas
CORSI, Giancarlo. Sociologia da Constituição. Trad. Juliana N. Magalhães. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Nº 39. Belo Horizonte: UFMG, janeiro-junho de 2001.
LAFER, Celso. A ruptura e o paradigma da Filosofia do Direito – os limites da lógica do razoável. In: ______. A reconstrução dos Direitos Humanos – um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. 1ª reimpressão. São Paulo: Companhia de Letras, 1991.
OST, François. O tempo do direito. Tradução Élcio Fernandes. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2005.
PAIXÃO, Cristiano e NETTO, Menelick de Carvalho. Entre permanência e mudança: reflexões sobre o conceito de constituição. 2007.
ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito Constitucional. Tradução para o português por Menelick de Carvalho Netto. Belo Horizonte: Editora Mandamentos, 2003.
WARAT, Luis Alberto. “A fantasia jurídica da igualdade. Democracia e Direitos Humanos numa pragmática de singularidade”. In: Epistemologia e Ensino do Direito: O Sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.
[1] PAIXÃO, Cristiano e NETTO, Menelick de Carvalho.(2007, p. 09)
[2] PAIXÃO, Cristiano e NETTO, Menelick de Carvalho.(2007, p. 07)
Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília-UnB. Pós-graduada pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (FESMPDFT).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: KILIAN, Kathleen Nicola. Reflexões sobre o totalitarismo e o ideal democrático Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 fev 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43322/reflexoes-sobre-o-totalitarismo-e-o-ideal-democratico. Acesso em: 23 dez 2024.
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