Resumo: O presente artigo objetiva avaliar a aplicabilidade do princípio da coculpabilidade na primeira fase da dosimetria penal. Aborda-se o conceito do referido princípio, requisitos e hipóteses de aplicação na prática. Analisa-se também a possibilidade de utilização da coculpabilidade na segunda fase do cálculo da pena. Por fim, pretende-se trazer a discussão a necessidade de diferenciação da pena daqueles socialmente desfavorecidos.
Palavras-chave: Princípio da coculpabilidade. Isonomia. Pena-base.Individualização da pena.
1. INTRODUÇÃO
O meio social, em regra geral, influencia sobremaneira na formação das pessoas. Com efeito, em determinadas comunidades sociais, corriqueiro é o cometimento de crimes e a banalização de sua prática. O tipo de educação, de cultura, o ambiente social, a marginalidade presente no dia-a-dia das pessoas são fatores determinantes para a fomentação da criminalidade.
No atual estágio do capitalismo, nota-se que a sociedade premia poucos em detrimento de muitos. A riqueza se mostra concentrada em uma parcela pequena da população, enquanto a pobreza e a miserabilidade se fazem presentes em sua maioria.[1]
Sabe-se que a sociedade, por mais esforço que faça, não tem a capacidade de brindar a todos os cidadãos com as mesmas oportunidades. Em decorrência disso, surgem indivíduos com menor âmbitode autodeterminação diante das circunstâncias do caso concreto. Assim, segundo a teoria da coculpabilidade, a sociedade deve arcar com sua parcela de culpa, não sendo razoável sobrecarregar somente o infrator no momento da reprovação.[2]
Ingressa, então, a teoria da coculpabilidade no cenário do Direito Penal para apontar e evidenciar a parcela de responsabilidade do Estado quando da prática de determinados ilícitos penais pelos seus cidadãos.[3]
2. DESENVOLVIMENTO
O princípio da coculpabilidade é entendido como um princípio constitucional implícito no princípio da isonomia, vez que leva em conta as condições sociais e econômicas do agente e a parcela de responsabilidade da sociedade na aplicação da pena.[4]
Cumpre registrar que se tem afirmado que o instituto da coculpabilidade é uma ideia introduzida pelo direito penal socialista e herdado por Marat, sendo, atualmente, reconhecido em todo o Estado Social de Direito.[5]
Para melhor aclarar o tema, cita-se, o seguinte exemplo: um casal de mendigos, cuja “morada” é embaixo de um viaduto, é flagrado pela polícia na prática de relação sexual. Malgrado ser um local público, não possuem outro para tal prática, tendo em vista a inexistência de oportunidades de emprego ou programas sociais destinados a acolher moradores de rua.[6]
Nessa esteira, indaga-se se o referido casal poderia ser condenado pela prática de ato obsceno (artigo 233 do Código Penal) ou de que forma deveria ser a dosimetria penal? Entende-se que deveriam ser absolvidos, posto que foi a própria sociedade que os colocou naquela situação ou que o princípio da coculpabilidade deveria influir em uma relevante diminuição de suas penas-bases.
Portanto, entende-se que o grau de instrução e a posição social do réu devem ser avaliados no momento da aplicação da pena-base, como circunstâncias judiciais e/ou elementos valorativos da culpabilidade.[7]
Inclusive, observa-se que o princípio da coculpabilidade já está tão inserido em nosso ordenamento jurídico que o anteprojeto de reforma da Parte Geral do Código Penal brasileiro optou por sua inserção expressa. Confira-se o que prevê a nova redação do artigo 59 do Código Penal[8]:
O juiz, atendendo à culpabilidade, antecedentes, reincidência e condições pessoais do acusado, bem como as oportunidades sociais a ele oferecidas, aos motivos, circunstâncias e conseqüências do crime e ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente à individualização da pena.
Nesse sentido, traz-se à baila o seguinte julgado:
Embargos infringentes. Tentativa de estupro. Fixação da pena. Agente que vive de biscates, solteiro, com dificuldades para satisfazer a concupiscência, altamente vulnerável à prática de delitos ocasionais. Maior a vulnerabilidade social, menor a culpabilidade. Teoria da co-culpabilidade (Zaffaroni). Prevalência do voto vencido, na fixação da pena-base mínima. Regime carcerário inicial. Embargos acolhidos por maioria.[9]
Todavia, uma outra parte da doutrina e da jurisprudência considera que a coculpabilidade deve incidir na segunda fase da dosimetria penal. Ou seja, para essa corrente, no concurso entre circunstância judicial e circunstância legal deve esta prevalecer em detrimento daquela, face ao efeito produzido na pena definitiva (maior aumento ou menor diminuição).[10]
Nessa linha de pensamento, aplica-se o princípio da coculpabilidade com arrimo no artigo 66 do Código Penal, permitindo-se a diminuição da pena pela atenuante inominada – “em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei”.[11]
Ademais, nesse diapasão, defende-se que a atenuante da coculpabilidade não pode ficar adstrita apenas à situação econômica do acusado, mas devem ser avaliadas também sua condição de formação intelectual, seu grau de instrução.[12]
Neste passo, encontra-se o artigo 14, inciso I, da Lei nº 9.605/98, o qual dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Consoante mencionada lei, é circunstância que sempre atenua a pena o baixo grau de instrução ou escolaridade do agente.
Destarte, para um direito penal de garantias, a utilização de tal dispositivo por analogia é plenamente admissível se for para beneficiar o réu. Apesar disso, entende-se que o artigo 66 do Código Penal não só abarca a questão da condição econômica do infrator, como também a hipótese do baixo grau instrução.[13]
Por outro prisma, vê-se, ainda, presente a coculpabilidade na legislação penal brasileira, tendo em vista que a situação econômica do acusado é critério determinante para a fixação do quantum da pena de multa (art. 60, caput e § 1º do Código Penal).
Demais a mais, a margem de liberdade concedida ao juiz na fixação da pena-base lhe permite levar em conta, mesmo sem exprimi-la, qualquer outra circunstância, a seu ver, relevante.[14] Daí poder considerar também a questão da coculpabilidade.
Impende consignar, porém, que não se pode inverter os papéis, ou seja, não se pode enxergar o criminoso como vítima e o Estado como criminoso. Apenas a situação de vulnerabilidade e hipossuficiência do acusado, que influenciaram na prática do crime, é que devem conduzir a uma menor reprovabilidade.[15]
Logo, quanto maior a exclusão social do réu, maior a coresponsabilidade estatal; portanto, menor deve ser a reprovação de seu ato criminoso. Inversamente, quanto melhor as condições socioeconômicas e culturais do infrator, menor a coresponsabilidade do Estado; assim, maior deve ser a reprovação social.[16]
Assim sendo, nota-se que o princípio da coculpabilidade, como visto alhures, está intimamente ligado ao princípio da igualdade.
Isso porque, aplicar penas no mesmo patamar a indivíduos que se encontram em situação de privilégio e a indivíduos que se encontram em situação de extrema pobreza, é uma clara violação do princípio da igualdade.
O professor Gustavo Octaviano Diniz Junqueira, no II Simpósio Internacional “Direito Penal e Cidadania”[17], defendeu que o cidadão socialmente desfavorecido não sabe distinguir o que é seu e o que é do outro, porque ele nunca teve nada que fosse seu. Aduziu, outrossim, que o usuário de drogas desprovido de cultura não tem conhecimento dos seus efeitos nocivos. Assim, indagou se poderíamos tratar os socialmente desfavorecidos no mesmo patamar que os socialmente favorecidos.
Ao final de sua explanação, concluiu que uma das soluções seria “aplicar pena que respeite o Direito das Minorias”.
3. CONCLUSÃO
Diante de tal raciocínio, entende-se que uma das formas de se “aplicar pena que respeite o Direito das Minorias” seria a adoção do princípio da coculpabilidade na primeira fase da dosimetria penal, quando cabível, a fim de conduzir a pena a uma relevante diminuição, de acordo com o grau de culpabilidade do autor do fato.
A juíza BetinaMeinhardtRonchetti, em sentença confirmada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, tendo como Relator o Desembargador Amilton Bueno de Carvalho, fixou a pena-base do réu no mínimo legal, face ao princípio da coculpabilidade. Vale a pena conferir, in verbis:
Réu primário, sem quaisquer antecedentes. Não vieram aos autos elementos sobre conduta social ou personalidade. Entretanto, a ausência de registros negativos permite concluir por conduta adequada à normalidade. A motivação do delito, em se tratando de crime patrimonial, está vinculada ao desejo de obter lucro fácil, sem esforço e em detrimento de outrem. Entretanto, pela espécie de delito praticado (roubo de tênis, camiseta, relógio e boné), verifica-se evidente influência do sistema de desigualdades sociais vigente em nosso país, que, ao mesmo tempo em que marginaliza parcela da população, estimula o consumismo desenfreado para todos, mesmo para aqueles alijados das relações de consumo pelo pouco poder aquisitivo. Isso estimula a disputa por bens da moda e acirra o confronto de classes sociais. Note-se que esse apelo consumista atinge notadamente os adolescentes (que é o caso dos autos, pois mesmo o réu, embora penalmente imputável, tinha apenas 19 anos quando do fato, sendo ainda adolescente), portanto não se pode usar de maniqueísmo e imputar totalmente aos agentes a responsabilidade por essa conduta punível, para a qual toda a sociedade contribui (e justamente por isso —toda a sociedade é responsável, e não o indivíduo em particular- é que não é justo as vítimas sofrerem as conseqüências, merecendo, sem dúvida, proteção penal). Circunstâncias normais, tratando-se de típico crime de roubo praticado por adolescentes. De conseqüências, fica registrado que não houve nenhum prejuízo pelas vitimas, pois recuperaram integralmente seus pertences. Não houve contribuição das vítimas. Sopesadas tais circunstâncias, tenho que fica no mínimo o grau de reprovabilidade de sua conduta. Deste modo, vai a pena-base fixada em quatro (04) anos de reclusão.[18]
Ante o exposto, iniludível a aplicabilidade da teoria da coculpabilidade na primeira fase de cálculo da pena.
REFERÊNCIAS
- CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001.
- GRECO. Alessandra Orcesi Pedro. A autocolocação da vítima em risco. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.
- GRECO. Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 10. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008.
- LYRA, Roberto. Comentários ao código penal: decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. 2 (arts. 28 a 74).
- MOURA. Grégore Moreira de. Do princípio da co-culpabilidade. Niterói: Impetus, 2006.
- ZAFFARONI. Eugênio Raúl; PIERANGELI; José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.
[1] GRECO. Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 10. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008. p. 425-426.
[2] ZAFFARONI. Eugênio Raúl; PIERANGELI; José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997. p. 613. Nesse sentido: “Ao lado do homem culpado por seu fato, existe uma co-culpabilidade da sociedade, ou seja, há uma parte de culpabilidade - da reprovação pelo fato - coma qual a sociedade deve arcarem razão das possibilidades sonegadas... Se a sociedade não oferece a todos as mesmas possibilidades, que assuma a parcela de responsabilidade que lhe incumbe pelas possibilidades que negou ao infrator em comparação com as que proporcionou a outros. O infrator apenas será culpável em razão das possibilidades sociais que se lhe ofereceram”. CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001. p. 70-85.
[3] GRECO. Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 10. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008. p. 425-426.
[4]MOURA. Grégore Moreira de. Do princípio da co-culpabilidade. Niterói: Impetus, 2006. p. 35-91.
[5] ZAFFARONI. Eugênio Raúl; PIERANGELI; José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997. p. 613.
[6] GRECO. Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 10. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008. p. 425-426.
[7] CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001. p. 70-85.
[8]MOURA. Grégore Moreira de. Do princípio da co-culpabilidade. Niterói: Impetus, 2006. p. 35-91. Assim também discorre CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001. p. 70-85: “A propósito, a constatação da necessidade de divisão de responsabilidade entre Estado-sociedade-indivíduo pelo ilícito ganha relevo na concretização da reforma da parte geral do Código Penal”.
[9] Tribunal de Justiça do RS, Embargos infringentes n. 70000792358, Relator Tupinambá Pinto de Azevedo, Quarto Grupo de Câmaras Criminais, julgado em 28/4/2000.
[10] CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001. p. 70-85.
[11] ZAFFARONI. Eugênio Raúl; PIERANGELI; José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997. p. 613. Com esse entendimento: “Apesar de não estar prevista no rol das circunstâncias atenuantes do art. 65 do Código Penal brasileiro, a norma d art. 66 (atenuantes inominadas) possibilita a recepção do princípio da co-culpabilidade, pois demonstra o caráter não taxativo das causas de atenuação”. CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001. p. 70-85.
[12] CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001. p. 70-85.
[13] CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001. p. 70-85.
[14] LYRA, Roberto. Comentários ao código penal: decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. 2 (arts. 28 a 74). p. 203.
[15] CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001. p. 70-85.
[16] CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001. p. 70-85.
[17] Palestra sobre Fundamentos da pena, ministrada no dia 16 de dezembro de 2009. Evento realizado na Universidade Presbiteriana Mackenzie, tendo como organizadores o prof. Dr. GiampaoloPoggioSmanio, Prof. Dr. Alexis Couto de Brito e o prof.Ms. Humberto BarronuevoFabretti.
[18]Apelação Crime nº 70002250371, Relator Amilton Bueno de Carvalho, Quinta Câmara Criminal, julgado em 31/03/2001.
Defensora Pública do Estado de Santa Catarina. Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRAUN, Raquel Paioli. O princípio da coculpabilidade e o artigo 59 do Código Penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 fev 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43395/o-principio-da-coculpabilidade-e-o-artigo-59-do-codigo-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
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