RESUMO: O presente estudo tem como escopo analisar o instituto da litispendência no âmbito do processo coletivo, considerando-se, aprioristicamente, sua aplicação no processo individual, atendo-se, sobretudo, às questões da existência ou não de litispendência entre uma ação coletiva e uma ação individual, bem com entre ações coletivas. O instituto da litispendência, instituído para o processo individual revela novos contornos, mormente, quando aplicado no âmbito do processo coletivo, levando em consideração os princípios inerentes a essa área de conhecimento e a natureza concorrente e disjuntiva da legitimação ativa coletiva, dentre outras particularidades concernentes a esse novo ramo do direito.
Palavras-chave: Litispendência. Ações Coletivas. Legitimação Concorrente e Disjuntiva. Processo Coletivo.
1 INTRODUÇÃO
O sistema processual civil brasileiro foi elaborado visando a atender às demandas individuais, visto que na época em que o atual Código de Processo Civil entrou em vigor essas eram as únicas relações que se evidenciavam diante do Poder Judiciário.
No entanto, com o passar do tempo, o aumento do número das relações de massa passou a exigir do processo formas mais efetivas e adequadas para solucionar demandas coletivas.
O instituto da litispendência, criado para o processo individual, ganha novos contornos quando aplicado no processo coletivo, tendo em vista os princípios inerentes a essa área de conhecimento, bem como, a natureza concorrente e disjuntiva da legitimação ativa coletiva, além de outras particularidades relativas a esse novo ramo do direito.
O presente artigo busca analisar o instituto da litispendência no âmbito do processo coletivo, tomando por ponto de partida sua aplicação no processo individual, atendo-se, principalmente, às questões sobre a existência ou não de litispendência entre uma ação coletiva e uma ação individual, bem com entre ações coletivas.
Eriçadas as primeiras considerações, é basicamente com arrimo nessas diretrizes que seguirão as linhas desta tese.
2O INSTITUTO DA LITISPENDÊNCIA
O processo a partir da sua formação é considerado existente, e por conseqüência, encontra-se no estado de pendência.
Pendente, na lição de Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 49):
É algo que já foi constituído e ainda existe, não foi extinto. Processo pendente é processo em curso. Ele se considera pendente desde o momento em que a petição inicial foi entregue ao Poder Judiciário (formação) até quando se tornar irrecorrível a sentença que determinar sua extinção (trânsito em julgado) quer a extinção do processo se dê com ou sem julgamento do mérito. O Estado de pendência do processo chama-se litispendência (do latim litis-pendentia). Como entre os efeitos da existência do processo pendente está o de impedir a instauração válida e eficaz de outro processo para julgamento de demanda idêntica (mesmas partes, mesma causa de pedir, mesmo pedido: CPC, art. 301, inc. V e §§ 1° a 3°), tem-se a ilusão de que a litispendência seja esse impedimento – i.é, o impedimento de um outro processo válido, com a mesma demanda. Na verdade, litispendência é o estado do processo que pende, não esse seu efeito.
O fenômeno processual da litispendência possui características próprias e constitui um instituto de difícil conceituação. As definições dadas pela doutrina pátria apontam para o fato de entender a litispendência como uma situação jurídica formada a partir da propositura de uma ação perante o Poder Judiciário.
Nesse sentido, Chiovenda (2000, p. 282) destaca que: “em geral, indica a pendência de uma relação processual na plenitude de seus efeitos.”. E também aduz José Frederico Marques (1958. p. 212) que “a litispendência é fenômeno resultante da apresentação de uma lide em juízo”.
O Código de Processo Civil estabelece:
Art. 301. § 1o Verifica-se a litispendência ou a coisa julgada, quando se reproduz ação anteriormente ajuizada.
§ 2o Uma ação é idêntica à outra quando tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido.
§ 3o Há litispendência, quando se repete ação, que está em curso; há coisa julgada, quando se repete ação que já foi decidida por sentença, de que não caiba recurso.
Portanto, pelas disposições contidas no Código de Processo Civil, a litispendência ocorreria pela propositura de outra ação judicial, com o mesmo pedido, a mesma causa de pedir e as mesmas partes, de outra demanda que ainda se encontra em andamento. Dessa forma, haveria uma repetição de ação verificada por uma tríplice identidade: de partes, de pedido e de causa de pedir.
Como se pode observar, a litispendência, ao contrário do que se possa entender com os dispositivos do código, não pode ser vista como a existência de duas demandas formadas pelos mesmos elementos, quais sejam partes, pedido e causa de pedir, e sim como aquela demanda posta em juízo e sob a qual ainda se permite a prática de atos processuais.
O fato da existência de um processo impedir a instauração válida e eficaz de outro processo com os mesmos elementos constitui um dos efeitos da litispendência, e não propriamente seu conceito. Contudo, o termo litispendência, na linguagem menos precisa e técnica, vem sendo utilizado para designar o impedimento de se propor nova demanda idêntica e não a própria pendência desta.
Os autores Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. (2010, p. 172), consideram que o termo litispendência pode assumir dois significados na dogmática processual:
a) a pendência da causa, o percorrer criativo dessa existência; b) pressuposto processual’ negativo, que obsta a repropositura de demanda ainda pendente de análise. Embora distintos, os significados se entrelaçam: é que, havendo processo pendente (litispendência), o réu, uma vez novamente demandado, informa ao magistrado sobre esse novo processo que já pende com o mesmo conteúdo, ou seja, informa que há litispendência.
A ideia de litispendência a ser tratada neste trabalho é a do contexto da defesa processual tipificada em lei, voltada a combater o processo em razão de estar pendente um primeiro, que possui os mesmos elementos (partes, pedido e causa de pedir).
Nessa linha de pensamento, a litispendência constitui um dos pressupostos processuais negativos, e uma vez verificada sua incidência, a eficácia e a validade da relação jurídica processual daquele processo que fora proposto em segundo lugar ficam comprometidas. Tal pressuposto, por se encontrar fora do processo, é também denominado pela doutrina de pressuposto extrínseco.
Arruda Alvim (2010, p. 323) ressalta que:
Diz-se que a litispendência de um primeiro processo é um pressuposto negativo para um segundo, com conteúdo idêntico, porque o segundo, mesmo preenchendo todas as condições de prosperar, em virtude de um elemento que lhe é extrínseco, isto é, pelo mero fato da existência de um primeiro processo igual, será trancado. Então, a litispendência anterior é um pressuposto processual negativo, impedindo a validade de uma segunda relação jurídica processual idêntica.
O instituto da litispendência tem por fundamento o repúdio da ordem jurídico-processual ao bis in idem, evitando que a mesma demanda seja julgada por mais de uma vez, incorrendo na possibilidade, inclusive, da ocorrência de decisões contraditórias, que poderiam por em risco a segurança jurídica, além de, reflexamente, causar desprestígio ao Poder Judiciário.
Nesse sentido destaca Daniel Amorim (2009, p. 298):
A necessidade de manutenção de apenas um processo está baseada em dois importantes fatores: economia processual e harmonização dos julgados. Não há qualquer sentido na manutenção de dois processos idênticos, com realização duplicada de atos e gasto desnecessário de energia. Além disso, a manutenção de processos idênticos poderia levar a decisões contraditórias, o que, além de desprestígio ao Poder Judiciário, poderá gerar no caso concreto problemas sérios de incompatibilidade lógica ou prática dos julgados contrários.
Portanto, o Estado, buscando o objetivo de garantir ao cidadão o acesso à tutela jurisdicional adequada e eficiente, limitou que sua atuação fosse única, evitando-se, dessa forma, a proliferação de ações correlatas, a contradição entre os julgados e a própria burla ao sistema.
3 INÍCIO DA CONFIGURAÇÃO DA LITISPENDÊNCIA
Uma questão divergente na doutrina diz respeito ao início da configuração da litispendência. Há autores que entendem que a litispendência se configura com a propositura da demanda, já outros defendem que somente com a citação válida é que realmente ela se inicia.
O artigo 219 do CPC afirma que a citação válida induz a litispendência, o que pode ser verificada pela sua redação: “A citação válida torna prevento o juízo, induz litispendência e faz litigiosa a coisa; e, ainda quando ordenada por juiz incompetente, constitui em mora o devedor e interrompe a prescrição”.
Na defesa da primeira posição, qual seja, o início a partir da propositura da demanda, encontra-se o autor Alexandre Freitas Câmara. Segundo o doutrinador (2008, p. 288):
O art. 219 é expresso em afirmar que é a citação válida que induz litispendência, mas, nos termos do art. 263, a contrario sensu, tal efeito se produz para o demandante desde o momento da propositura da demanda. Assim é que, ajuizada a demanda, não poderá o autor a propor novamente, mesmo antes da citação, pois todos os processos instaurados depois daquele primeiro deverão ser extintos sem resolução de mérito. Com isto se poderá evitar os males da distribuição múltipla, fenômeno infelizmente muito comum na prática, consistente no ajuizamento de diversas demandas idênticas, com o fim de se escolher o juízo onde tramitará o processo. Opta o demandante pelo juízo que lhe seja mais favorável, desistindo das demais ações. Registre-se, aliás, que o inciso III do art. 253 do CPC, inserido pela Lei nº 11.280/2006, determina que no caso de se repropor a mesma demanda esta será distribuída ao mesmo juízo para o qual se distribuiu a primeira, evitando-se, assim, a distribuição múltipla.
Defendendo essa mesma posição, o autor Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 56):
A litispendência pesa os seus efeitos sobre as partes do processo em momento distinto. Em relação ao autor, os efeitos da litispendência são imediatos: a) para ele, o juiz está desde logo prevento, para a própria causa e outras conexas que ele próprio tome a iniciativa de instaurar, b) impede-o de repropor, durante ela, uma demanda igual à pendente e c) o bem postulado reputa-se litigioso, para os efeitos da lei processual e da substancial. Quanto ao réu, só a partir do momento em que passar a integrar a relação jurídica processual é que se pode pesar sobre ele os efeitos do processo existente.
A outra posição da doutrina sustenta que a litispendência só teria início com a citação válida, pois é a partir desse momento que se verifica a formação da relação processual. Antes desse momento, há apenas início de processo, que não se presta a produzir nenhum dos efeitos elencados no art. 219, nem com relação ao autor, nem com relação ao réu. Esse é o posicionamento que predomina na jurisprudência pátria, bem como na doutrina, alinhando-se Humberto Theodoro Júnior e Moacyr Amaral dos Santos.
No processo coletivo, a regra adotada para configurar o início da litispendência está plasmada no art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 7.347/85 (Lei de Ação Civil Pública), com mesma redação no art. 5º, § 3º da Lei nº 4.717/65 (Lei de Ação popular).
Lei de Ação Civil Pública
Art. 2º As ações previstas nesta Lei serão propostas no foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional para processar e julgar a causa.
Parágrafo único A propositura da ação prevenirá a jurisdição do juízo para todas as ações posteriormente intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto.
Lei de Ação popular
Art. 5º Conforme a origem do ato impugnado, é competente para conhecer da ação, processá-la e julgá-la o juiz que, de acordo com a organização judiciária de cada Estado, o for para as causas que interessem à União, ao Distrito Federal, ao Estado ou ao Município.
§ 3º A propositura da ação prevenirá a jurisdição do juízo para todas as ações, que forem posteriormente intentadas contra as mesmas partes e sob os mesmos fundamentos.
Dessa forma, no processo coletivo, o critério utilizado para a configuração do início da litispendência, bem como para caracterizar a prevenção do juízo, é o momento da propositura da ação, diferentemente do posicionamento predominante no âmbito do processo individual, que estabelece o momento da citação válida como fator para determinar a litispendência.
4 LITISPENDÊNCIA NO PROCESSO INDIVIDUAL
Como já abordado anteriormente, a litispendência ocorreria quando da propositura de outra ação judicial, com o mesmo pedido, a mesma causa de pedir e as mesmas partes, de outra demanda que ainda se encontra em andamento.
Com a ocorrência dessa situação, o segundo processo seria extinto sem julgamento de mérito, como assevera o Código de Processo Civil, em seu art. 267, inciso V:
Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito:
I - quando o juiz indeferir a petição inicial;
Il - quando ficar parado durante mais de 1 (um) ano por negligência das partes;
III - quando, por não promover os atos e diligências que Ihe competir, o autor abandonar a causa por mais de 30 (trinta) dias;
IV - quando se verificar a ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo;
V - quando o juiz acolher a alegação de perempção, litispendência ou de coisa julgada;
Vl - quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual;
VII - pelo compromisso arbitral;
Vll - pela convenção de arbitragem
Vlll - quando o autor desistir da ação;
IX - quando a ação for considerada intransmissível por disposição legal;
X - quando ocorrer confusão entre autor e réu;
XI - nos demais casos prescritos neste Código.
A litispendência deve ser argüida pelo réu, no primeiro momento em que se manifestar nos autos, sob pena de ser condenado pelo prejuízo causado no retardamento do processo. Esse entendimento está plasmado nos termos do artigo 267, § 3° do Código de Processo Civil.
Art. 267. § 3º. O juiz conhecerá de ofício, em qualquer tempo e grau de jurisdição, enquanto não proferida a sentença de mérito, da matéria constante dos ns. IV, V e Vl; todavia, o réu que a não alegar, na primeira oportunidade em que Ihe caiba falar nos autos, responderá pelas custas de retardamento.
Também, por meio desse dispositivo, fica constatado o dever do juiz de zelar pela originalidade da demanda, podendo extinguir o processo de ofício, independentemente da alegação do demandado e, em qualquer tempo e grau de jurisdição, por tratar-se de matéria de ordem pública.
Portanto, o procedimento adotado ao ser constatada a incidência de litispendência, no âmbito do processo individual, é a extinção da segunda demanda sem a resolução do seu mérito.
5 LITISPENDÊNCIA NO PROCESSO
A definição já abordada de que a litispendência ocorreria quando duas ações tivessem tramitando simultaneamente, possuindo uma tríplice identidade: partes, pedido e causa de pedir, não é suficiente para o estudo do assunto, pois essa tríplice identidade constitui apenas o exemplo mais claro de litispendência.
Assim, a propositura de qualquer demanda que objetive a proteção de direitos coletivos lato sensu, configura de imediato a litispendência para as demais ações coletivas, ainda que diversos alguns de seus elementos internos, desde que se verifique a convergência de pretensões. Em suma, ainda que distintos os elementos internos (partes, pedido e causa de pedir) de identificação de uma demanda, haverá litispendência, caso haja a correspondência entre as relações jurídicas, e por conseqüência, de pretensões.
Os autores Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. (2010, p. 172) esclarecem que:
Há litispendência quando pendem processos com mesmo conteúdo. A mesma situação jurídica controvertida é posta em mais de um processo para ser resolvida. Enfim, há litispendência quando o Poder Judiciário é provocado a solucionar o mesmo problema em mais de um processo.
Diante dessa idéia, duas questões são postas para análise: Haveria litispendência entre uma ação coletiva e uma ação individual, abordando a mesma questão? E entre duas ações coletivas?
5.1 ANÁLISE SOBRE A POSSIBILIDADE DE LITISPENDÊNCIA ENTRE UMA AÇÃO INDIVIDUAL E UMA AÇÃO COLETIVA
O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 104, trata sobre o instituto da litispendência, nos domínios do processo coletivo, sendo esta a sua redação:
As ações coletivas, previstas nos incisos I e II, do parágrafo único, do artigo 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva.
O dispositivo legal deixa clara a inexistência de litispendência entre ação coletiva e ação individual, silenciando, porém, acerca da possibilidade de litispendência entre ações coletivas. O texto é expresso em afirmar que a ação coletiva não induz litispendência para as ações individuais.
Dessa forma quanto à primeira questão a ser analisada, não existem maiores dificuldades para sua conclusão, uma vez que as ações coletivas, como o próprio nome já diz, objetivam a discussão e a tutela de direitos ou interesses que pertençam a uma coletividade, não se confundindo com a pretensão existente nas ações individuais, quando a parte estará postulando um direito ou interesse que lhe pertence, isoladamente.
Portanto, mesmo a existência de uma ação coletiva e outra individual, aparentemente semelhantes, não haveria de se falar em litispendência, pois tais ações apresentariam tanto os pedidos diversos, como causas de pedir e partes distintas.
Luiz Guilherme Marinoni e Sergio Cruz Arenhart (2003, p. 788) asseveram o seguinte sobre a matéria:
Não há litispendência, por óbvio, no cotejo entre a ação individual e as ações para a tutela de direitos difusos ou coletivos. A conclusão decorre não apenas da dicção expressa no art. 104 do CPC, como também da própria natureza das ações examinadas. De fato, em relação às ações para a defesa de direitos coletivos e difusos, é de se notar que esses direitos pertencem a toda coletividade ou a um grupo determinado, e não a cada indivíduo considerado isoladamente. Por isso, tais direitos não se confundem com eventuais direitos individuais decorrentes do mesmo fato ilícito.
Apesar do doutrinador apenas se referir aos direitos difusos e coletivos, não há que se falar também em litispendência entre uma ação coletiva que versa sobre direitos individuais homogêneos e uma ação individual.
A questão é debatida na doutrina pelo fato do art. 104 do CDC ao abordar a não formação de litispendência entre a ação individual e coletiva, somente se referir aos direitos difusos e coletivos, não abarcando os direitos individuais homogêneos. Percebe-se claramente que o legislador ao conferir a mencionada redação equivocou-se nas remissões feitas aos incisos do art. 81, parágrafo único. A maior parte da doutrina posiciona-se no sentido de que, na verdade, o legislador quis abranger todos os direitos coletivos em sentido amplo, ou seja, os difusos, os coletivos e os individuais homogêneos.
Prosseguindo na análise do art. 104 do CDC, este também aborda a questão referente à possibilidade do indivíduo se beneficiar dos efeitos da procedência da ação coletiva, por meio do transporte in utilibus da coisa julgada coletiva para o plano individual. Porém para ocorrer tal situação, o mesmo deverá requerer a suspensão da sua ação individual, no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva.
Antonio Gidi (1995, p.187) observa que:
O artigo 104 traz em seu bojo duas normas de fundamental importância para o sistema das ações coletivas. A primeira norma contida neste artigo 104 prescreve que essa simultânea pendência será disciplinada por um regime jurídico diverso do existente para a litispendência das ações individuais. Assim, está livre o consumidor para propor a sua ação individual, ainda que a correlata ação coletiva esteja ou venha a estar em curso. O princípio é o da absoluta liberdade do consumidor para propor sua ação individual e conduzi-la até o final, ou aguardar o desfecho da ação coletiva. A segunda norma prescreve que, ainda quando o consumidor tenha proposto a sua ação individual, esse fato não ilide a possibilidade de que ele venha a ser beneficiado pela extensão in utilibus da imutabilidade do comando julgado. Todavia, para que possa ser beneficiado pela eventual procedência da correspondente ação coletiva, precisa requerer a suspensão do seu processo individual no prazo estipulado.
Vale destacar que o indivíduo não é obrigado a requerer a suspensão do seu processo individual. A ele é dado uma opção. No entanto, mesmo estando ciente da pendência de um processo coletivo abarcando a mesma questão jurídica, não solicita a suspensão do seu processo individual, haverá a exclusão da incidência da coisa julgada coletiva.
Muito embora o objetivo da criação do processo coletivo seja o de evitar uma pulverização de ações sobre uma mesma lide, o sistema processual brasileiro, ao permitir que a vítima individualmente proponha sua ação, buscando o ressarcimento do seu dano, preserva seu direito de acesso à justiça, uma vez que o mesmo, por vários motivos, pode não querer aderir ao pleito coletivo, nem tão pouco aguardar seu desfecho. Nesse caso, ele é livre para ajuizar sua própria demanda ou optar por pedir a suspensão do seu processo individual no prazo legal para esperar o trânsito em julgado da sentença coletiva.
Outro aspecto importante a ser destacado é que o indivíduo precisa ser informado sobre a existência do processo coletivo, cabendo ao réu proceder com essa informação. Dessa forma, se o indivíduo não tomou ciência acerca do processo coletivo, não poderá ser prejudicado com o prosseguimento do processo individual.
Nessa linha, Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. (2010, p. 183) declaram que:
Cria-se, então, um ônus para o réu: trata-se de ônus, encargo do próprio interesse, e não dever; é ônus, pois, se não for cumprido, o autor individual beneficiar-se-á da coisa julgada coletiva mesmo no caso de a sua ação individual ser rejeitada. Trata-se de regra em consonância com o princípio da boa-fé processual, principalmente em relação ao princípio da cooperação.
Tal pedido de suspensão do processo individual deve ser realizado dentro do prazo legal, qual seja, trinta dias contados da ciência inequívoca da pendência do processo coletivo, porém não há prazo para a suspensão perdurar, podendo durar o tempo necessário ao trânsito em julgado da sentença coletiva. O pedido de suspensão pode ser feito até a sentença. Após ela, somente é possível se houver interposição de recurso, que impeça o trânsito em julgado da decisão.
O autor da ação individual deverá analisar com certo cuidado a real correspondência entre a lide ajuizada coletivamente e o seu processo individual para que não cometa o erro de requerer a suspensão do seu processo individual quando este, na verdade, não apresentar a necessária coincidência com a ação coletiva.
Nesse sentido, Daniele Regina Marchi Nagai (2009, p. 72) destaca:
É importante que as informações prestadas sejam específicas e adequadas, tais como sobre: quem seria o autor da ação coletiva, os pedidos e as causas de pedir deduzidas, a fase processual em que se encontra o processo, bem como as provas produzidas pelas partes, enfim, dados que possam influenciar na decisão do autor individual de prosseguir com sua demanda ou suspendê-la, apostando no êxito da empreitada coletiva.
Desse modo, segundo a legislação pátria, é plenamente aceitável a coexistência de uma ação coletiva e uma ação individual, pois o ajuizamento da ação coletiva não impede o prosseguimento da ação individual, que somente será suspensa a pedido do indivíduo. O objetivo maior é garantir o acesso à justiça do titular do direito individual.
5.2ANÁLISE SOBRE A POSSIBILIDADE DE LITISPENDÊNCIA ENTRE AÇÕES COLETIVAS
A questão sobre a possibilidade de ocorrência de litispendência entre ações coletivas, gira em torno da análise de situações nas quais diversas ações coletivas são propostas no intuito de tutelar, por vias diversas, um mesmo direito coletivo lato sensu. Tal estudo também visa examinar qual seria a solução mais adequada para essa situação.
A tutela de um direito coletivo pode ser realizada por meio de diversos procedimentos, como por exemplo: ação civil pública, ação popular, mandado de segurança coletivo, ação de improbidade administrativa, entre outros. O que prevalece no âmbito do processo coletivo, é que são admissíveis todas as espécies de ações desde que capazes de proporcionar sua adequada e efetiva tutela. Assim, é plenamente possível, por exemplo, que uma ação civil pública trate sobre a mesma questão jurídica de que uma ação popular.
Desse modo, mesmo com a existência de procedimentos distintos, haveria o fenômeno da litispendência, visto que a similitude de procedimento é indiferente para a caracterização desse instituto.
Vale ressaltar também a possibilidade de ocorrência de litispendência quando as ações coletivas possuírem a mesma causa de pedir e o mesmo pedido, porém com partes diversas.
Nessa linha de pensamento, Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. (2010, p. 174) estabelecem que:
Quando ocorrer litispendência com partes diversas, a solução não poderá ser a extinção de um dos processos, mas, sim, a reunião deles para processamento simultâneo. É que de nada adiantaria extinguir um dos processos, pois a parte autora, como co-legitimada, poderia intervir no processo supérstite, na qualidade de assistente litisconsorcial. Por uma medida de economia, se isso for possível (se houver compatibilidade do procedimento e respeito às regras de competência absoluta), os feitos devem ser reunidos.
Tal fenômeno ocorre em virtude de nas ações coletivas, a legitimação ativa ser extraordinária, disjuntiva e concorrente. Ou seja, quaisquer dos legitimados previstos, na Constituição federal ou em normas infraconstitucionais, podem propor a demanda coletiva, sem necessitar da participação e do consentimento dos demais legitimados.
Além da Constituição Federal, que trata em seu art. 5°, LXX, sobre os legitimados a proporem mandado de segurança coletivo, a Lei de Ação Civil Pública, em seu art. 5º e o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 82, estabelecem os legitimados concorrentes para impetrarem ações coletivas. No rol de legitimados, encontram-se entes públicos, pessoas jurídicas de direito privado, órgãos públicos e até mesmo o cidadão, no caso da ação popular.
É de se salientar que não há no microssistema processual coletivo norma que discipline o instituto da litispendência. Desse modo, não existe atualmente regulamentação das situações nas quais se verifica a tramitação de duas ações coletivas com os mesmos elementos, o que poderia levar à aplicação subsidiária do disposto no artigo 301 do Código de Processo Civil e, conseqüentemente, do inciso V, do artigo 267, do mesmo diploma legal, que tratam do instituto da litispendência.
No entanto, deve ser levado em consideração o fato de que o processo coletivo apresenta certas particularidades e é norteado por princípios próprios, que divergem, muitas vezes, do processo individual. Assim, mesmo na falta de regulamentação legal no microssistema coletivo, relativamente ao instituto da litispendência, resta claro a inviabilidade da aplicação dos dispositivos do Código de Processo Civil, por evidente incompatibilidade com os fins colimados no processo coletivo. Não há dúvida de que o Código de Processo Civil deve ser aplicado de forma subsidiária ao processo coletivo, porém deve-se atentar para a situação de colisão de objetivos buscados pelos dois ramos processuais.
Dessa forma, muitos doutrinadores vêm se posicionando pela reunião dos processos no caso de tramitação simultânea de ações coletivas propostas com os mesmos elementos, buscando, assim, privilegiar os princípios da economia processual, do acesso à justiça, da primazia do conhecimento do mérito do processo coletivo, entre outros. Porém, existe na doutrina quem defenda a extinção do segundo processo, em caso de litispendência.
Sustentando a extinção do processo coletivo que fora proposto com igualdade de elementos, argumenta o doutrinador Antonio Gidi (1995, p. 223) que:
É preciso, pois, encontrar, no sistema do direito positivo brasileiro, solução para esse inconveniente: a) de lege lata, a interpretação mais correta do sistema, para a solução do impasse criado pela existência de “duas” ações coletivas “idênticas” (com mesmas partes, no sentido acima, mesma causa de pedir e mesmo pedido) contemporaneamente em curso (rectius: é a mesma ação, e não duas idênticas), é a aplicação dos dispositivos do CPC no que toca à matéria, mesmo porque assim dispõe, expressamente, o próprio CDC (art. 93, II, in fine). [...] No caso de duas ações coletivas, o potencial conflito é evidente, pelo que somente uma dessas ações deve prosperar. E nem seria de se esperar o prosseguimento de duas ações coletivas exatamente com o mesmo fim. [...] Desse modo, impõe-se que seja extinto o segundo processo, naquilo que coincidir com o primeiro, prosseguindo o feito no juízo prevento. À entidade autora do processo extinto resta, apenas, a possibilidade de intervir no processo remanescente como assistente litisconsorcial.
Os fundamentos que apontam para a extinção de processos que tenham sido propostos em segundo lugar, embora estejam baseados no ordenamento jurídico pátrio, são afastados por diversos doutrinadores, os quais embasam seu pensamento, necessariamente, na finalidade social do processo coletivo, bem como nos princípios que regem tais processos.
Nesse sentido, Gregório Assagra de Almeida (2007, p. 198) destaca que:
Com a devida vênia aos entendimentos em sentido contrário, entendemos que o fato de ser possível a ocorrência de litispendência (identidade) entre ação civil pública e ação popular ou entre outras ações coletivas não impõe e não pode impor a aplicabilidade fria e rígida do estabelecido no art. 267, V, do CPC. A extinção pura e simples com base nos efeitos negativos da litispendência de uma das ações coletivas poderá causar risco à efetiva tutela jurisdicional de direito coletivo. Imagine que a extinção venha a recair em relação a uma ação civil repleta de provas colhidas durante o inquérito civil. Nessas situações de ocorrência de litispendência entre ação civil pública e ação popular, o mais lógico e razoável é a aplicabilidade do que dispõe o CPC em seu artigo 105, com a reunião das respectivas ações coletivas para julgamento simultâneo em uma mesma sentença.
É necessário levar em consideração que a possibilidade de reunião das demandas, pode trazer significativa vantagem para a solução da questão, em virtude da possibilidade de se obter um manancial de provas mais robusto capaz de propiciar um julgamento mais justo e eficaz.
E também é de se destacar que adotando a idéia de extinção do segundo processo, haveria um impedimento de acesso à Justiça pelos demais legitimados, e, portanto, restringiria a defesa dos interesses em questão, apenas pelo fato de uma demanda já ter sido proposta anteriormente. Até porque, é importante frisar que nem sempre a primeira ação proposta necessariamente trará os elementos indispensáveis para um bom julgamento da problemática, e, além disso, poderá esse primeiro legitimado não ser o mais adequado para representar a sociedade ou o grupo, podendo, dessa forma, trazer imensos prejuízos a toda uma coletividade.
Essa solução de reunião dos processos apresenta-se mais adequada para solucionar a questão da litispendência, pois busca privilegiar o interesse social presente nas ações coletivas propostas, bem como, por questões de economia processual, tenta aproveitar o conjunto probatório presente em cada demanda, e por conseqüência, tem maiores condições de proporcionar uma tutela mais efetiva, célere e com o afastamento de conflito lógico entre os julgados.
6 CONCLUSÃO
O processo coletivo possui características e princípios próprios daqueles presentes no processo individual, o que faz com que esse ramo busque fins diferenciados para atender de forma mais adequada e efetiva as questões de massa.
É necessário que haja uma maior flexibilização das regras processuais até então existentes e uma busca por uma interpretação dos institutos processuais de forma mais consentânea com a realidade do processo coletivo.
A ausência de uma codificação precisa e sistemática do processo coletivo, não permite, por conseqüência, a aplicação direta dos preceitos e regras do processo individual, visto que é preciso que haja uma análise sobre a compatibilidade formal e substancial dessas regras com os fins visados pelas ações coletivas.
Nesse sentido é que o instituto da litispendência ganha novas dimensões no âmbito do processo coletivo. A litispendência é entendida como o processamento simultâneo de duas demandas que possuam os mesmos elementos, quais sejam: partes, pedido e causa de pedir. A solução definida, no âmbito do processo individual, para evitar que duas ações idênticas tramitem ao mesmo tempo e sejam levadas a julgamento pelo Judiciário, é a extinção do segundo processo sem julgamento de mérito.
Porém esse não tem sido o melhor entendimento para o caso de litispendência entre ações coletivas. Grande parcela da doutrina tem se posicionado a favor da reunião das demandas, para que as mesmas sejam julgadas conjuntamente, em caso de ocorrência de litispendência, embasando seu pensamento nos princípios que regem o processo coletivo, como por exemplo, o da economia processual, acesso à justiça, máxima efetividade, primazia pelo conhecimento de mérito do processo coletivo.
Com essa reunião, todos os argumentos e provas trazidos pelas diversas ações ao Poder Judiciário poderão auxiliar de forma fundamental na solução da questão levantada. Além disso, haveria a preservação da legitimidade de cada uma das partes que impetraram suas ações, fortalecendo, dessa forma, o interesse social consubstanciado nas ações coletivas, bem como o afastamento de possíveis decisões contraditórias.
Com relação à possibilidade de litispendência entre ações coletivas e individuais, o Código de Defesa de Consumidor é claro em estabelecer em seu art. 104 que a propositura de uma ação coletiva e de uma ação individual, com base em uma mesma situação fática e jurídica, não gera litispendência, podendo ambos os processos tramitar concomitante e separadamente, sem que os efeitos de um interfiram no do outro. Contudo, é facultado ao autor individual, dentro do prazo legal estabelecido, requerer a suspensão do andamento do seu processo, de modo a aproveitar-se dos efeitos positivos da sentença proferida na ação coletiva.
É necessário ter em mente as particularidades do processo coletivo frente ao processo individual, para que os institutos processuais, como por exemplo, a litispendência tratada nesse estudo, possam ser adaptados à realidade das demandas massificadas.
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Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NOGUEIRA, Rachel Furtado. Litispendência no âmbito do processo coletivo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 mar 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43637/litispendencia-no-ambito-do-processo-coletivo. Acesso em: 22 dez 2024.
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