Resumo: Os Tribunais de Justiça vêm, ao apreciarem recursos de apelação interpostos exclusivamente pela Defesa, e ao manterem a condenação imposta pelo juízo de primeiro grau, acrescendo argumentos para justificarem a condenação, por vezes, não adequadamente fundamentada pelo juízo a quo. O Superior Tribunal de Justiça, recentemente, afirmou que tal conduta não implica prejuízo ao réu desde que mantido os limites da condenação imposta. Respeitado o entendimento do Tribunal Superior, não podemos concorda com tal posição, uma vez que o “complemento” de fundamentação, realizado pelo Tribunal de Justiça em sede de recurso exclusivo da Defesa, pode acarretar prejuízos diretos ao acusado, ensejando, pois, reformatio in pejus.
Palavras-chave: Recurso exclusivo da defesa. Apelação. Recurso Especial. Recurso Extraordinário. Reformatio in pejus. Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Introdução:
O Superior Tribunal de Justiça veiculou em seu informativo de jurisprudência número 553 o seguinte:
DIREITO PROCESSUAL PENAL. EFEITO DEVOLUTIVO DA APELAÇÃO E PROIBIÇÃO DA REFORMATIO IN PEJUS.
O Tribunal, na análise de apelação exclusiva da defesa, não está impedido de manter a sentença condenatória recorrida com base em fundamentação distinta da utilizada em primeira instância, desde que respeitados a imputação deduzida pelo órgão de acusação, a extensão cognitiva da sentença impugnada e os limites da pena imposta no juízo de origem. De fato, o princípio do ne reformatio in pejus tem por objetivo impedir que, em recurso exclusivo da defesa, o réu tenha agravada a sua situação, no que diz respeito à pena que lhe foi impingida no primeiro grau de jurisdição. Não se proíbe, entretanto, que, em impugnação contra sentença condenatória, possa o órgão de jurisdição superior, no exercício de sua competência funcional, agregar fundamentos à sentença recorrida, quer para aclarar-lhe a compreensão, quer para conferir-lhe melhor justificação. E nem seria razoável sustentar essa proibição. Nesse sentido grassam diversos julgados dos Tribunais Superiores, notadamente em tema de individualização da pena, nos quais, não raro, o Tribunal, em recurso exclusivo da defesa, de fundamentação livre e de efeito devolutivo amplo, encontra outros fundamentos em relação à sentença impugnada, não para prejudicar o recorrente, mas para manter-lhe a reprimenda imposta no juízo singular, sob mais qualificada motivação. A propósito, no HC 106.113-MT, consignou-se que, para se cogitar da reformatio in pejus, a decisão do Tribunal “teria que reconhecer, em desfavor do Paciente, circunstância fática não reconhecida em primeiro grau, de modo que o recurso da defesa causaria prejuízo ao Paciente (...)” (STF, Segunda Turma, DJe 1º/12/2012). No RHC 116.013-SP, por sua vez, decidiu-se que “O efeito devolutivo inerente ao recurso de apelação permite que, observados os limites horizontais da matéria questionada, o Tribunal aprecie em exaustivo nível de profundidade, a significar que, mantida a essência da causa de pedir e sem piorar a situação do recorrente, é legítima a manutenção da decisão recorrida ainda que por outros fundamentos” (STF, Segunda Turma, DJe 21/10/2012). No STJ, por ambas as Turmas que compõem a Terceira Seção, a questão tem sido enfrentada. É bem verdade que, na Sexta Turma, há julgados conferindo maior limitação à possibilidade de se agregar novos fundamentos à sentença (v.g., HC 223.524-SP, DJe 27/9/2013). Entretanto, há diversas decisões em sentido permissivo ao afastamento da incidência da ne reformatio in pejus, decidindo-se que essa proibição “não vincula o Tribunal aos critérios e fundamentos adotados pelo Juízo monocrático, mas apenas o impede de agravar a situação do réu” (HC 218.858-SP, DJe 26/3/2012). A seu turno, a Quinta Turma perfilha entendimento – mais pacificado no âmbito do referido órgão julgador – de que a proibição da reforma para pior não impede acréscimo de fundamentos (sopesadas as mesmas circunstâncias fáticas) pelo Tribunal ad quem, desde que mantida a pena imposta na instância original (v.g., HC 133.127-SP Quinta Turma, DJe 13/10/2009). Cabe ressaltar, por fim, que o tema em questão não é idêntico aos casos – que têm merecido o correto repúdio do STJ e do STF – nos quais, em ação de habeas corpus, o tribunal supre o vício formal da decisão do juízo singular para acrescentar fundamentos que, v.g., venham a demonstrar a necessidade concreta de uma prisão preventiva. Nessas situações, tem-se entendido que “os argumentos trazidos no julgamento do habeas corpus original pelo Tribunal a quo, tendentes a justificar a prisão provisória, não se prestam a suprir a deficiente fundamentação adotada em primeiro grau, sob pena de, em ação concebida para a tutela da liberdade humana, legitimar-se o vício do ato constritivo ao direito de locomoção do paciente” (RHC 45.748/MG, Sexta Turma, DJe 26/5/2014). Precedentes citados: HC 68.220-PR, Sexta Turma, DJe 9/3/2009; HC 276.006-SP, Sexta Turma, DJe de 8/9/2014; e AgRg no AREsp 62.070-MG, Quinta Turma, DJe 23/10/2013. HC 302.488-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 20/11/2014, DJe 11/12/2014. – grifos nossos
Respeitado o entendimento supraexposto, não se pode concorda com a tese veiculada no aludido informativo, pois, que, diretamente o “complemento de fundamentação”, poderá causar prejuízo ao réu. Vejamos as razões.
Desenvolvimento:
Inicialmente, antes de tecer comentários acerca do tema proposto, importante registrar que os recursos especial e extraordinário, julgados, respectivamente, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF) são recursos excepcionais. Ambos são previstos na Constituição Federal, ao primeiro tribunal cabe a apreciação do recurso na hipótese de violação a regras de direitos infraconstitucional, enquanto, ao último, o julgamento quando ocorre violação as normas constitucionais. Desta forma, consoante ensinamentos doutrinários, são recursos de fundamentação vinculada.
As hipóteses de cabimento do recurso extraordinário estão elencadas no inciso III do artigo 102 da Constituição Federal: a) contrariar dispositivo da Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição e d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. Ainda, de acordo com o disposto no parágrafo 3º do mesmo comando constitucional, deverá o recorrente demonstrar “a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”.
O recurso especial, por sua vez, está disciplinado no artigo 105, inciso III, da Constituição, é tem cabimento quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal; c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.
Vê-se, pois, que, tratando-se de recursos excepcionais não é possível a discussão de matéria fática, apenas questões de direitos já examinadas pelo juízo a quo, como, aliás, preceitua a súmula 7 do STJ: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.”.
Nestor Távora, citando o professor Dirley da Cunha Júnior, em seu livro Curso de Direito Processo Penal (3º Ed. Editora Juspodivm – página 795), ensina que a discussão de matéria fática em sede de recursos excepcionais configuraria espécie de “segunda apelação”, hipótese que não pode ser admitida.
Também necessário consignar que a apelação é o recurso que pode ser interposto por qualquer das partes sucumbentes – acusação ou defesa – a fim de que sentença prolatada por juiz de primeiro grau seja anulada ou reformada pelo tribunal, órgão de segundo grau de jurisdição.
É recurso de ampla fundamentação, de modo que a parte recorrente pode suscitar questões fática e de direito. Saliente-se que a parte delimitará as questões contra as quais se insurge (artigo 599 do Código de Processo Penal), sendo estas o objeto de apreciação pelo tribunal destinatário das razões recursais.
Delineada as questões a serem analisadas pelo tribunal, em recurso exclusivo da defesa, não é admitida a chamada reformatio in pejus que, conforme apregoa Nestor Tavora, no livro susocitado (página 767), consiste na impossibilidadede agravamento da pena quando somente o réu tenha apelado da sentença.
Nesta esteira, voltando ao informativo de jurisprudência suprarreferenciado, à guisa de exemplo suponhamos que um réu seja condenado pela prática de crime de roubo circunstanciado pelo concurso de agentes e emprego de arma.
Consabido que, à luz do parágrafo 2º do artigo 157 do Código Penal, é possível o aumento da pena, na terceira fase de dosimetria do crime de roubo, de um terço até metade.
E, por muito tempo, perdurou o entendimento de que o aumento a ser impingido ao condenado era mensurado pelo número de causas de aumentos presentes no caso concreto:
[...] Havendo três causas de aumento, adota-se o entendimento de que o acréscimo deve ser de 5/12 e não de 1/2, como fixado na r. sentença. A propósito, a doutrina esclarece que "(...) com o advento da Lei 9.426/96, que introduziu os incisos IV e V ao § 2º do art.157 do CP, as frações de aumento de pena devem ser remodeladas, devendo o aumento de um terço até a metade ser dividido por cinco; assim, presente uma qualificadora, aumenta-se em um terço; em se tratando de duas, a elevação será de 3/8; no caso de três qualificadoras, majora-se em 5/12; com quatro qualificadoras, o aumento será de 11//24; e, concorrendo as cinco qualificadoras, o acréscimo será no patamar máximo da metade (TACrSP, RT 771/614)". (Celso Delmanto, Código Penal Comentado, 8 edição, revista, atualizada e ampliada, Saraiva, 2010, p. 575). - grifei
No entanto, tal critério meramente aritmético confrontava o comando contido no artigo 93, inciso IX, da CF, que determina que todas as decisões e emanadas do Poder Judiciário serão fundamentadas.
A análise objetiva e fria do número de majorantes foi repudiada pelo STJ, que, através da súmula número 443, pacificou o entendimento que: “O aumento na terceira fase de aplicação da pena no crime de roubo circunstanciado exige fundamentação concreta, não sendo suficiente para a sua exasperação a mera indicação do número de majorantes.”.
Nesta toada, voltando ao nosso exemplo, ao condenar o acusado com lastro tão somente no número de causas de aumento, em nosso sentir, o julgador afrontaria dispositivo constitucional que determinada a fundamentação concreta das decisões, de modo que, ante a balizes inidôneas, seria possível que a defesa pugnasse pela redução do aumento imposto ao acusado ao mínimo legal.
No entanto, de acordo com o exposto no informativo de jurisprudência n.º 553 do STJ, poderia o tribunal, mantida a pena imposta ao acusado -exemplificativamente exasperada em três oitavos apenas com base no número de causas de aumento - agregar fundamentos idôneos e aptos a justificar, concretamente, o agravamento da pena.
Ocorre que, mesmo mantidos os limites da pena fixada em primeira instância, o tribunal, agindo desta maneira, causará prejuízo ao réu, uma vez que, considerando, como já exposto, que o recurso especial e extraordinário são recursos excepcionais, que não permitem discussão de matéria fática, a inclusão de novos fundamentos é danosa ao acusado, que vê-se impossibilidade de refutar os argumentos acrescidos e demonstrar, no mundo dos fatos, que a incidência de duas causas de aumento não acentuou a gravidade da conduta perpetrada.
Assim, melhor seria adotar-se o entendimento exarado no seguinte julgado também do Superior Tribunal de Justiça:
“Em recurso exclusivo da defesa, não é dado ao Tribunal modificar o entendimento do Juízo singular em prejuízo do réu, ainda que o resultado final não seja pior do que o prolatado em primeiro grau de jurisdição. Na espécie, a saber, reconheceu-se, na Corte estadual, que o crime cometido pelo Paciente foi consumado ao invés de furto tentado. Ademais, os temas que não foram objeto de recurso pelo Ministério Público restam preclusos, mostrando-se, portanto, inoportuna a modificação da tipificação do crime cometido, porquanto nem ao menos foi interposto recurso da sentença pelo Parquet. É certo que o efeito devolutivo da apelação é amplo e permite a revisão inclusive da dosimetria da pena, possibilitando a readequação de circunstâncias judiciais e legais. Contudo, não é dado ao Tribunal agregar novos dados, em recurso exclusivo do réu. De fato, referida prática violaria o princípio da ne reformatio in pejus, uma vez que o Tribunal deve analisar a legalidade dos fundamentos da sentença, não criar nova análise que possa prejudicar a situação do condenado.” – (HC nº 223524 / SP - 2011/0260351) – grifei
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Conclusão:
Isto posto, forçoso concluir, que a “melhor justificativa” dada por tribunais de justiça ao apreciarem recursos interposto exclusivamente pela defesa, causa prejuízo ao acusado, razão pela qual não pode ser admitido, sob pena de violação do tão relevante princípio do duplo grau de jurisdição.
Referências bibliográficas:
Távora, Nestor. Alencar, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 3ª edição.Editora Juspodivm: 2009.
<https://ww2.stj.jus.br/jurisprudencia/externo/informativo/> Acesso em 23 de março de 2015.
<http://www.stj.jus.br/SCON/sumanot/toc.jsp#TIT1TEMA0> Acesso em 23 de março de 2015.
MOREIRA, Mario. Recurso especial e recurso extraordinário: a tutela do direito objetivo. Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 4152, 13 nov. 2014. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/30012>. Acesso em: 23 mar. 2015.
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em: 24 de março de 2015
<http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/toc.jsp?tipo_visualizacao=RESUMO&livre=%40docn&&b=SUMU&p=true&t=&l=10&i=511> Acesso em: 24 de março de 2015
<http://www.jusbrasil.com.br/diarios/87144928/stj-05-03-2015-pg-7157> Acesso em: 24 de março de 2015
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=201102603519&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea> Acesso em: 24 de março de 2015
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1265376&num_registro=201102603519&data=20130927&formato=PDF> Acesso em: 24 de março de 2015
Juíza de Direito do TRibunal de Justiça do Estado de São Paulo (desde 10/2016 - atual). Defensora Pública do Estado de Pernambuco (10/2015 - 10/2016). Analista de Promotoria do Ministério Público do Estado de São Paulo (07/2011 - 10/2015). Advogada (05/2008 - 07/2015). Formada em Direito pela Universidade Prebisteriana Mackenzie - SP. Mestranda em Direito - habilitação em Efetividade do Direito (núcleo de Direito Penal) - pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (agosto/2020) - em andamento.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Fernanda Oliveira. Considerações sobre a possibilidade de o Tribunal acrescentar fundamentos que justifiquem a condenação em Recurso de Apelação exclusivo da defesa e o prejuízo ao réu Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 mar 2015, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43649/consideracoes-sobre-a-possibilidade-de-o-tribunal-acrescentar-fundamentos-que-justifiquem-a-condenacao-em-recurso-de-apelacao-exclusivo-da-defesa-e-o-prejuizo-ao-reu. Acesso em: 23 dez 2024.
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