RESUMO: O presente trabalho visa abordar o direito sucessório do companheiro e do cônjuge no Código Civil de 2002. O referido diploma dispensa tratamento totalmente diferente a quem vivia com o de cujus em regime matrimonial e em regime de união estável. Serão abordadas, de forma minuciosa, no presente trabalho, todas essas diferenças, apontando entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, bem como será feita uma análise acerca da constitucionalidade do art. 1.790, que disciplina a sucessão do companheiro, e será demonstrado o panorama atual do tema nos nossos Tribunais.
Palavras-chave: Direito das sucessões, casamento, união estável, cônjuge, companheiro.
Apesar de a Constituição Federal em seu art. 226, §3º reconhecer a união estável como entidade familiar, merecedora da proteção do Estado, assim como o casamento, o Código Civil Brasileiro trata de forma bem diferenciada os direitos sucessórios do companheiro e do cônjuge.
No Código Civil de 1916 o companheiro não tinha direito sucessório algum, porém com a evolução da sociedade e das relações humanas esta figura foi adquirindo alguns direitos até que em 1988 a Constituição reconheceu a união estável como entidade familiar, colocando-a no mesmo patamar que o casamento.
Com a nova Constituição o Código Civil ficou ultrapassado em matéria sucessória, já que não regulava o direito de sucessão do companheiro sobrevivente, até que vieram as leis 8.971/94 e 9.278/96 que regulavam a união estável e a sucessão do companheiro. Com estas leis o companheiro sobrevivente passou a gozar dos mesmo direitos sucessórios do cônjuge sobrevivente.
Até que, na contramão do espírito igualitário da Constituição de 1988, adveio o Código Civil de 2002, que regulou os direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro de forma totalmente discriminatória em relação este, gerando um verdadeiro retrocesso, já que anteriormente havia uma equiparação em relação aos direitos sucessórios destas duas figuras.
Assim desde então se discute a constitucionalidade do art. 1.790, que regula a sucessão do companheiro.
Então o presente trabalho pretende analisar e expor esse importante tema que vem sendo muito discutido na doutrina e jurisprudência. Vejamos:
Conforme ensina Flávio Tartuce (2013, p. 270) “a liberdade de testar no direito brasileiro não é ilimitada. Pelo contrário, tendo o falecido determinados parentes, o Código Civil limita o direito de dispor gratuitamente de seus bens”.
Tais parentes que limitam a disposição dos bens do falecido são chamados de herdeiros necessários. Eles possuem direito à reserva legal de metade da herança, como dispõe o art. 1.846, CC: “Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima”.
O Código Civil de 1916 não contemplava o cônjuge como herdeiro necessário, segundo o seu art. 1.721, os herdeiros necessários eram os descendentes e os ascendentes.
O cônjuge foi incluído no rol de herdeiros necessários no Código de 2002, que em seu art. 1.850 dispõe que “são herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge”.
Como se percebe, com a leitura do artigo supracitado, diferentemente do cônjuge, o companheiro não foi contemplado como herdeiro necessário, não possuindo direito à legítima, assim como os parentes colaterais, sendo estes considerados herdeiros facultativos como ensina Flávio Tartuce (2013, p. 270): “os parentes colaterais do falecido e os companheiros são chamados de herdeiros facultativos, já que não têm direito à legítima”.
Dessa forma para que o companheiro seja excluído da sucessão basta que o de cujus tenha feito testamento dispondo da totalidade de seus bens e não o tenha contemplado.
Porém alguns doutrinadores consideram que não se deve ser feita uma interpretação meramente literal do dispositivo e o companheiro deve ser considerado como herdeiro necessário.
Adriano Costa (p. 104, 2013) considera que fazendo uma interpretação sistêmica do art. 1.845 com o art. 1.850, segundo o qual “para excluir da sucessão os herdeiros colaterais, basta que o testador disponha de seu patrimônio sem os contemplar”, constata-se que o preceito faculta a exclusão simples, em testamento dos colaterais, mas não a do companheiro.
Antes de falarmos das diferenças entre os direitos sucessórios do companheiro e do cônjuge no que tange à questão de concorrência com outros parentes sucessíveis é necessário explicar sobre que massa patrimonial eles vão herdar.
Conforme ensina Adriano Costa (p. 105, 2013), “consoante à sistemática estabelecida no art. 1.829, I, é sobre os bens particulares do de cujus, que recaem os direitos sucessórios do cônjuge, uma vez que, em relação ao patrimônio comum, este já tem assegurada a meação”.
Situação diversa é imposta ao convivente, pois o art. 1.790 do Código Civil, em seu caput, determina que “a companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável”.
Assim concluímos que cônjuge e companheiro herdam sobre massas patrimoniais diferentes. O consorte herda sobre os bens particulares, enquanto o convivente herda sobre os aquestos, ou seja, os bens adquiridos a título oneroso, na constância da união estável.
O cônjuge é favorecido em relação ao companheiro pelo fato de ter direito à meação sobre os bens comuns e ter direito à herança sobre os bens particulares, enquanto o convivente herdará sobre os aquestos, ou seja, o patrimônio em que já tem direito à meação. Porém observa Adriano Costa (p. 105, 2013) que:
Embora resulte evidente que o propósito do legislador foi reduzir o quinhão dos conviventes, esse tratamento diferenciado pode, paradoxalmente, gerar cenário em que o companheiro seja beneficiado, em relação ao cônjuge. Tudo vai depender do momento em que o de cujus adquiriu a maior parte de seus bens transmissíveis.
Segundo o artigo 1.832 do Código Civil quando o cônjuge herda em concorrência com descendentes do cônjuge lhe cabe a quota igual à dos descendentes, tendo inclusive direito a uma reserva legal de ¼ da totalidade dos bens compreendidos na herança caso concorra com descendentes que também sejam seus filhos. Dessa forma se concorrer com mais de três descendentes lhe será garantido um quarto da herança e os descendentes dividirão o restante por cabeça. Vejamos:
Art. 1.832. Em concorrência com os descendentes (art. 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer.
Já o companheiro sobrevivente que concorre com descendentes do de cujus, recebe tratamento bem diferente. Se concorrer com descendentes do falecido, que também são seus filhos lhe caberá o quinhão igual ao deles, porém não terá direito à reserva de ¼ da qual goza o cônjuge. Como dispõe o artigo 1.790, I: “se concorrer com filhos comuns terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho”.
Outra diferença, talvez seja essa a pior, é quando o companheiro concorre com descendentes exclusivos do falecido. Nesse caso terá direito apenas à metade do que caberá a cada descendente. De acordo com o inciso segundo do supracitado artigo: “se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles”.
Segundo o artigo 1.837 do código civil, “concorrendo com ascendente em primeiro grau, ao cônjuge tocará um terço da herança; caber-lhe-á a metade desta se houver um só ascendente, ou se maior for aquele grau”.
Assim concorrendo com pai e a mãe do de cujus, o cônjuge herda 1/3, o pai 1/3, e a mãe 1/3. Se concorrer apenas com o pai ou com a mãe lhe será garantida a metade da herança, enquanto o ascendente do falecido herdará a outra metade, o mesmo ocorre se o morto deixar apenas um ascendente de primeiro grau (o pai ou a mãe) em uma linha e ascendentes de segundo grau (avô e avó) na outra linha (materna ou paterna), pois a existência de parentes em grau mais próximo exclui da sucessão o de grau mais remoto.
Da mesma forma lhe é garantida a metade da herança se concorrer apenas com ascendentes de segundo grau, ficando com 50% do patrimônio, enquanto o restante será dividido entre os ascendentes, por linha, ou seja, se concorrer com os dois avós paternos e os dois maternos a cada um destes caberá 12,5% da herança, mas se concorrer com os dois avós de uma linha (materna ou paterna) e apenas um ascendente de segundo grau da outra (avô ou avó), caberá a este 25% e àqueles 12,5% cada, ficando assim 25% para uma linha de parentesco e 25% para a outra.
No caso do companheiro, ocorre de forma diferente. O art. 1.790 não menciona expressamente a concorrência entre companheiro e os ascendentes, como faz em relação à concorrência com descendentes, porém em seu inciso terceiro determina que “se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança”. Fazendo uma interpretação lógica do dispositivo, entende-se facilmente que os ascendentes se encaixam no mencionado inciso.
Dessa forma quando o companheiro concorre com ascendentes lhe cabe 1/3 da herança, porém não possui a garantia de herdar a metade do patrimônio se concorrer com apenas um dos ascendentes nem se concorrer com ascendentes de grau mais remoto.
Assim se concorrer com apenas um dos pais do de cujus, terá direito a um terço da herança, enquanto o ascendente ficará com os dois terços restantes. Caso concorra com ascendentes que não sejam de primeiro grau, também terá direito apenas a um terço da herança e os ascendentes vão dividir o restante, obedecendo à regra da divisão por linha, conforme explicado anteriormente.
De acordo com a ordem de vocação hereditária estabelecida pelo artigo 1.829 do Código Civil, o cônjuge sobrevivente é o herdeiro de terceira classe e herda a totalidade dos bens do falecido, caso este não tenha deixado descendentes nem ascendentes vivos.
Desta forma são excluídos da sucessão os colaterais, já que são herdeiros de quarta classe, assim não existe a possibilidade de concorrência entre cônjuge e parentes colaterais.
Contudo o Código de 2002 prevê tratamento bem pior ao companheiro. De acordo com seu artigo 1.790, em seu inciso terceiro, o companheiro sobrevivente terá direito a um terço da herança se concorrer com parentes sucessíveis que não sejam descendentes nem ascendentes.
Assim há possibilidade de concorrer com parentes colaterais e, pior, há a possibilidade de o companheiro ter direito a uma parte menor da herança que o parente colateral. Se o falecido não deixar descendentes, nem ascendentes, mas sim apenas a companheira e um primo, a companheira terá direito a um terço, conforme o art. 1.790, III, enquanto o primo terá direito ao restante, ou seja, dois terços.
A situação exposta acima é um total absurdo, Flávio Tartuce (2013, p. 228), nessa linha de raciocínio diz que “imaginar que um sobrinho do morto, um primo irmão ou um tio-avô terão mais direitos que a companheira de uma vida causa certo espanto”.
O inciso quarto do mencionado artigo prevê a possibilidade de o companheiro herdar a totalidade dos bens quando determina que “não havendo parentes sucessíveis, (o companheiro) terá direito à totalidade da herança”.
Portanto para que o companheiro herde a totalidade da massa patrimonial deixada pelo de cujus é necessário que este não tenha deixado nenhum parente sucessível vivo, ou seja, nem descendentes, nem ascendentes, nem parentes colaterais até 4º grau. Se houver, por exemplo, um primo distante ou até mesmo um sobrinho-neto de quem o falecido nunca ouviu falar, o companheiro já não terá mais direito à totalidade da herança.
Ao comentar casos de concorrência com parentes colaterais Maria Berenice Dias (2013, p. 165) diz que “o mais surpreendente é ter a lei tratado de forma desigual situações idênticas, ensejando resultados que se afastam do desejo de só quer ser feliz”. Afirma também que:
O tratamento não é somente perverso, é escancaradamente inconstitucional, afrontando de forma direta os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, sem falar da desequiparação preconizada entre duas células familiares: união estável e casamento. (2013, p. 165)
O inciso IV do art. 1.790 determina que não havendo parentes sucessíveis, o companheiro sobrevivente, terá direito à totalidade da herança. Dessa forma fazendo a leitura desse inciso de maneira isolada, deduzimos que, não deixando, o falecido, descendentes, ascendentes nem parentes colaterais, de até 4º grau, vivos, caberá ao companheiro a totalidade da herança.
Porém analisando o artigo por completo nos deparamos com um problema. O caput do mencionado artigo determina que “a companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável”.
Então deixando, o falecido, bens particulares, anteriores à união estável, e bens comuns, adquiridos onerosamente na constância da união estável, estes caberiam ao companheiro e aqueles ao Estado? E se o de cujus não deixasse bens comuns, mas apenas bens particulares, o Estado herdaria todos os seus bens?
Fica o questionamento se a “totalidade da herança” mencionada no inciso IV deve ser interpretada em conformidade com o caput, se referindo à totalidade dos bens adquiridos a título oneroso na vigência da união, ou deve ser interpretada como a totalidade de bens do de cujus, seja adquirido antes ou durante a união.
O artigo 1.844 do Código Civil dispõe que:
Não sobrevivendo cônjuge, ou companheiro, nem parente algum sucessível, ou tendo eles renunciado a herança, esta se devolve ao Município ou ao Distrito Federal, se localizada nas respectivas circunscrições, ou à União, quando situada em território federal.
Assim, de acordo com o artigo supracitado, para que os bens deixados pelo de cujus vão para o estado, é necessário que não tenha deixado nenhum parente sucessível. Dessa forma havendo companheiro sobrevivente, os bens não iriam para o Estado. Nessa linha de raciocínio ensina Flávio Tartuce (2013, p. 230):
O art. 1.844 do CC, que trata de herança vacante, é expresso ao afirmar que a herança dó será devolvida ao Município, se não houver cônjuge, companheiro ou nenhum parente sucessível. Contrario sensu, se houver cônjuge ou companheiro, o município será excluído da sucessão. Só se realmente não houver cônjuge ou companheiro a herança será considerada vacante
Parece, assim, mais correto pensar que a “totalidade da herança” referida no inciso IV diz respeito à totalidade dos bens deixados pelo falecido. Além do aspecto da interpretação sistêmica e gramatical lei, é difícil concordar com o fato de o companheiro, que compartilhou toda uma vida, trocando sentimentos e dividindo problemas com o falecido, tenha que concorrer com o Estado ou até mesmo ficar sem nada enquanto o Estado herda todos os bens.
Flavio Tartuce (2013, p. 231) cita Maria Helena Diniz, que concorda com tal pensamento:
Se o Município, a União e o Distrito Federal só é sucessor irregular da pessoa que falece sem deixar herdeiro, como poderia se admitir que receba parte do acervo hereditário concorrendo com o herdeiro sui generis (sucessor regular), que no artigo sub examine, seria o companheiro? Na herança vacante configura-se uma situação de fato em que ocorre a abertura da sucessão, porém não existe quem intitule herdeiro. Por não existir herdeiro um sucessor regular, é que o Poder Público entra como sucessor irregular. (...) Isto seria mãos justo, pois seria inadmissível a exclusão do companheiro sobrevivente, que possuía laços de afetividade com o de cujus, do direito à totalidade da herança, dando prevalência à entidade Pública. Se assim não fosse, instaurar-se-ia no sistema uma lacuna axiológica. Aplicando-se o art. 5º da LICC, procura-se a solução mais justa, amparando o companheiro sobrevivente (Curso de Direito Civil, 2005, v. 6, p. 143).
O direito real de habitação na residência da família é garantido ao cônjuge sobrevivente pelo art. 1.831 do Código Civil, que determina que:
Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.
Assim com o falecimento de um dos cônjuges ao outro é garantido o direito de habitar a residência onde vive a família, independente do regime de bens estabelecido e de como se deu a partilha, desde que seja o único imóvel desta natureza.
Com relação ao direito de habitação do companheiro, Adriano Costa (2013, p. 106) explica que “ao concentrar toda a disciplina da sucessão do companheiro no art. 1.790, silenciou a respeito do assunto”.
De fato o Código de 2002 não mencionou o direito de habitação com relação ao companheiro, questiona-se então se isso significaria que não possui tal direito.
Ocorre que a lei 9.278/96, em seu art. 7º, parágrafo único, estabelecia que “Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família”.
O Código de 2002 revogou as leis anteriores que regulavam a união estável, quais sejam as leis 8.971/94 e 9.278/96, porém grande parte da doutrina e da jurisprudência entende que por não ter regulado tal direito não teria sido revogado o dispositivo da lei 9.278/96 que o regulava. Como ensina Maria Berenice Dias (2013, p. 79):
O cochilo da lei, no entanto , não permite afastar o direito do companheiro de permanecer na posse do bem que servia de residência à família. (...) a omissão do Código Civil não significa que foi revogado o dispositivo que estendeu ao companheiro o mesmo direito concedido ao cônjuge. São normas que não se incompatibilizam.
Ademais, segundo o Enunciado 117 das Jornadas de Direito Civil diz “o direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da Lei n. 9.278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1.831, informado pelo art. 6º, caput, da CF/88”.
No mesmo sentido entende o STJ (Resp 1156744/MG, 4ª Turma, Rel. Min. Marco Buzzi, julgamento em 09/10/1012):
A disciplina geral provida pelo Código Civil acerca do regime sucessório dos companheiros não revogou as disposições constantes da Lei 9.278/96 nas questões em que verificada compatibilidade. A legislação especial, ao conferir direito real de habitação ao companheiro sobrevivente, subsiste diante da omissão do Código Civil em disciplinar tal direito àqueles que convivem em união estável.
Assim conclui-se que segundo entendimento doutrinário e jurisprudencial majoritário o companheiro tem direito real de habitação.
No Código Civil de 1916 não se falava em sucessão do companheiro que vivia em união estável com o de cujus. Na época nem existia o termo “união estável”, o que conhecemos hoje por união estável era chamado de concubinato, como observa Carlos Roberto Gonçalves (p. 605, 2013): “A união prolongada entre o homem e a mulher, sem casamento, foi chamada, durante longo período histórico, de concubinato”.
A concubina não possuía direito à sucessão legítima e nem mesmo a herdar por testamento ou legado, como assevera o art. 1.719, III do supracitado Código.
Com o tempo foi-se admitindo a união estável, ainda chamado de concubinato, como um fato social, que merecia tutela jurídica.
Foram criadas duas figuras, a “concubina pura” que seria a companheira numa relação que hoje entendemos por união estável e a “concubina impura”, fruto de uma relação adulterina, sendo aquela merecedora de tutela jurídica e esta não.
Até que então a Constituição Federal, em seu art. 226, §3º inaugurou na lei a denominação de “união estável” e a reconheceu como entidade familiar digna da proteção constitucional.
Duas leis vieram regulamentar este instituto agora reconhecido como entidade familiar pela Carta Magna, quais sejam, as leis 8.971/94 e 9.278/96. Essas leis puseram o companheiro, em situação sucessória análoga à do cônjuge, de acordo com o Código Civil de 1916.
Neste sentido Flávio Tartuce e José Fernando Simão (2013, p. 204) afirmam: “com relação aos companheiros, antes da vigência do Código Civil de 2002, a situação sucessória era semelhante àquela dos cônjuges”.
A lei 8.971/94 garantiu ao companheiro o usufruto a quarta parte dos bens do de cujus, se este tiver deixado descendentes e usufruto à metade dos bens se houver deixado apenas ascendentes, o que era garantido ao cônjuge pelo §1º do art. 1.611 do Código Civil de 1916.
Também de acordo com a supramencionada lei, caso não houvesse descendentes ou ascendentes vivos o companheiro herdaria a totalidade da herança. Desta forma o companheiro era considerado herdeiro de 3ª classe, assim como o cônjuge, conforme art. 1.603 e 1.611, caput, do supracitado Código.
Enquanto a lei 9.278/96 garantiu que o companheiro sobrevivente teria direito real à habitação relativamente ao imóvel destinado à família, o que era garantido ao cônjuge pelo §2º do art. 1.611 do Código de Beviláqua.
Com o advento do Código Civil de 2002, muito avanço houve quanto aos direitos do cônjuge, que passou a ser considerado herdeiro necessário, não podendo mais ser excluído por testamento, passou a ter direito de concorrência com os descendentes, com direito à reserva de ¼ em caso de filhos comuns, e ascendentes, tendo direito neste caso a 1/3 da herança ou metade se concorrer com apenas um ascendente.
Em contrapartida essa evolução não aconteceu com relação aos companheiros, muito pelo contrário, os seus direitos foram reduzidos em relação à legislação anterior, ocorrendo um verdadeiro retrocesso na lei.
Com a nova legislação civil o companheiro sobrevivente passou a ter direito de herança apenas aos aquestos e a concorrer com os parentes colaterais, não sendo mais necessário apenas a falta de descendentes e ascendentes para que herde a totalidade dos bens.
Em relação ao direito real a habitação afirmam Flávio Tartuce e José Fernando Simão (2013, p. 237) que “contrariamente ao que determinou a Lei 9.278/1996, o Código Civil de 2002 não contém regra expressa a respeito do direito real a habitação caso venha a falecer um dos companheiros”.
O que explica, embora não justifique, tal retrocesso foi o fato de o projeto do Código Civil de 2002 ser anterior à Constituição Federal de 1988, como assevera Adriano Costa (2013, p. 98).
Na época da apresentação do Projeto do Código Civil, em 1975, a união estável não era assunto abordado à luz do direito de família, tampouco do direito das sucessões. Somente quando da tramitação no Senado é que foi apresentada emenda para – evitando o reconhecimento de possível inconstitucionalidade material – regular também o direito hereditário do companheiro.
Como a esta época a união estável não era reconhecida constitucionalmente como entidade familiar nem existiam as leis 8.971/94 e 9.278/96, que a regulavam, o novo Diploma Civil foi elaborado em total desconformidade com a Constituição, quanto a este aspecto, o que acabou gerando um grande recuo aos direitos sucessórios do companheiro e uma afronta ao princípio constitucional da vedação ao retrocesso social.
Asseveram Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2011, p. 85) que “esse superior princípio traduz a ideia de que uma lei posterior não pode neutralizar ou minimizar um direito ou uma garantia constitucionalmente consagrado”. Afirmam também os mencionados autores, a respeito do Código de 2002, que:
Em vez de buscar uma equiparação que respeitasse a dinâmica constitucional – uma vez que diferença não deve haver entre a viuvez de uma esposa e a de uma companheira, pois ambas mantinham com o falecido um núcleo de afeto –, o legislador, em franca violação ao princípio constitucional da vedação ao retrocesso, minimizou – e sob certos aspectos aniquilou – o direito hereditário da(o) companheira(o) viúva(o) (p. 417 - 418).
Ensina Maria Berenice Dias (2009, p. 68-69) que:
A consagração constitucional da igualdade, tanto entre homens e mulheres, como entre filhos, e entre as próprias entidades familiares, constitui simultaneamente garantia constitucional e direito subjetivo. Assim não podem sofrer limitações ou restrições da legislação ordinária. É o que se chama de princípio constitucional da proibição ao retrocesso social.
[...]
A partir do momento em que o Estado, em sede constitucional, garante direitos sociais, as realizações destes direitos não se constituem somente em uma obrigação positiva para a sua satisfação - passa a haver também uma obrigação negativa de não se abster de atuar de modo a assegurar a sua realização. O legislador precisa ser fiel ao tratamento isonômico assegurado pela Constituição, não podendo estabelecer diferenciações ou revelar preferências. Todo e qualquer tratamento discriminatório levado a efeito pelo legislador ou pelo Judiciário mostra-se flagrantemente inconstitucional.
A Constituição Federal consagrou a igualdade entre entidades familiares e em decorrência dessa consagração as leis 8.971/94 e 9.278/96 regularam os direitos dos conviventes em união estável de forma análoga à dos cônjuges. Assim o Código de 2002 ao regular a sucessão do companheiro comete grave afronta ao princípio da vedação ao retrocesso social, pois confere a ele uma situação pior que a anteriormente estabelecida.
Devido a tudo que foi discutido no presente trabalho se debate na doutrina e na jurisprudência a constitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil.
Para Cezar Peluso (2008, p. 1940), “a questão fundamental para análise do art. 1.790 é saber se a Constituição Federal permite ao legislador infraconstitucional tratar de forma diferenciada o cônjuge e o companheiro em matéria sucessória”.
A Constituição Federal em seu art. 226, §3º reconhece a união estável como entidade familiar digna de proteção do Estado, assim como o casamento. A Carta Magna não hierarquizou as entidades familiares, de modo que todas merecem a mesma proteção do Estado, apesar de alguns discordarem dessa não hierarquização, como explica Cezar Peluso (2008, p. 1940-1941):
Segundo argumentam os que pensam ser possível a diferenciação legal entre cônjuge e companheiro, a Constituição teria reconhecido a união estável como entidade familiar, mas não teria equiparado à família constituída pelo casamento, tanto que no §3º do art. 226 prevê que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento. Isso revelaria uma preferência da Constituição pela família oriunda do casamento.
No mesmo sentido Adriano Costa (2013, p. 98) explica que: “para alguns, a referência à “conversão em casamento” revelaria certa preferência jurídica pelo casamento, o que justificaria certos privilégios legislativo deferidos apenas a cônjuges, excluindo companheiros”.
Enquanto outros entendem a expressão “conversão em casamento” de outra forma, como explica Flávio Tartuce e José Fernando Simão (2013, p. 244):
Para outros, a determinação constitucional apenas impede que a lei infraconstitucional dificulte a conversão da união estável em casamento. Seria uma norma proibitiva da imposição de qualquer dificuldade, mas não geradora de hierarquia entra as duas formas de constituição de família.
Prevalece majoritariamente, assim como nos parece ser mais adequado, o entendimento de que a constituição não hierarquizou as entidades familiares, de modo que todas elas merecem igual proteção do Estado. Nesse sentido defende Cezar Peluso (2008, p. 1941):
As famílias assentadas na união estável ou no casamento são idênticas nos vínculos de afeto, solidariedade e respeito. A diferenciação entre elas se dá pelo modo de sua formação. [...] Nos aspectos em que as famílias, oriundas do casamento ou da união estável, são semelhantes, como é o caso das relações afetivas que geram, não pode haver tratamento legal diferenciado. O vinculo familiar, de afeto, solidariedade e respeito, deve ser o norte do legislador infraconstitucional na disciplina da ordem de vocação hereditária [...] Essa [...] posição parece ser mais adequada, pois efetivamente, não há distinção, em termos de afeto e dignidade, entre as famílias constituídas pelo casamento ou união estável. Sem diferenciação entre elas quanto a esse aspecto, parece não ser aceitável que sejam diferenciadas pelo legislador quanto à questão sucessória.
O mencionado autor explica que um forte argumento em defesa dessa posição é o fato de após a Constituição de 88 e antes da lei 8.971/94, ter havido manifestações jurisprudenciais no sentido de que mesmo sem lei bastava a Constituição para garantir direitos sucessórios ao companheiro sobrevivente equiparando-o por analogia ao cônjuge.
Ana Luiza Maia Nevares (2006, p. 157) explica que “a concepção que preconiza uma hierarquia axiológica entre as entidades familiares é inconstitucional” e afirma que “admitir a superioridade do casamento significa proteger mais, ou prioritariamente, algumas pessoas em detrimento de outras, simplesmente porque aquelas optaram pó constituir uma família a partir da celebração do ato formal do matrimônio.”.
Levando em consideração o entendimento majoritário da doutrina, uma norma que garantisse direitos menos favoráveis a quem vive em determinado tipo de entidade familiar em comparação a quem vive em outro seria totalmente inconstitucional.
Segundo Maria Berenice Dias (2013, p. 158) “de modo injustificável, a lei empresta tratamento desigual ao casamento e à união estável no âmbito no direito sucessório”. Afirma a mencionada autora (2013, p. 72-73) que:
Este tratamento diferenciado não é somente perverso. É flagrantemente inconstitucional. A união estável é reconhecida como entidade familiar pela Constituição Federal (CF 226 §3.º), que não concedeu tratamento diferenciado a qualquer das formas de constituição de família.
[...]
È preciso chamar o legislador à sua função, exigindo-lhe o cumprimento do preceito constitucional de proceder e garantir a idêntica proteção dispensada pelo Estado à entidade familiar, seja qual for a origem e a gênese de suas relações, certamente fundadas no afeto vivenciado originalmente. Todo e qualquer tratamento discriminatório levado a efeito pelo legislador ou pelo Judiciário mostra-se escancaradamente inconstitucional. Assim, a melhor solução é reconhecer a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC.
Portanto grande parte da doutrina se posiciona acerca do tema de modo a defender a inconstitucionalidade, assim como muitos tribunais, que acabam afastando a interpretação literal do artigo 1.790, e aplicando uma interpretação sistemática de acordo com a Constituição federal.
Flávio Tartuce e José Fernando Simão (2013, p. 237) ensinam que:
De início é interessante notar que a simples leitura do Código Civil não é suficiente para a compreensão das regras sucessórias referentes ao companheiro. Os tribunais têm realizado leituras muitas vezes completamente dissociadas do texto da lei, afastando-se do que pretendeu o legislador e mostrando que o direito não se confunde com a lei. Ora, a lei é fonte do direito, mas não o próprio direito. Se a lei não se enquadra no sistema, cabe à doutrina e à jurisprudência ajustá-la ou extirpá-la do sistema jurídico. Em reforço, não vivemos o império do Estado da Legalidade, mas do Estado de Direito.
Adriano Costa (2013, p. 110), conclui quanto ao tema da seguinte forma:
No Direito Civil conforme a Constituição, impossível, sob qualquer prisma, admitir que o companheiro, reconhecido como tal pelo Poder Judiciário, possa ser alvo de tratamento legal desfavorável em relação ao cônjuge. Casamento e união estável são células familiares distintas, mas análogas juridicamente. Destarte, patente é a inconstitucionalidade material do art. 1.790, cuja aplicação pretoriamente deve ser afastada, cabendo aos tribunais realizar uma interpretação do direito sucessório que não ceda espaço a injustiças e discriminações, em tudo incompatíveis com o espírito igualitário da Lei das Leis.
Dessa forma, entendendo pela inconstitucionalidade do art. 1.790, este deve ser afastado aplicando-se à sucessão do companheiro as normas referentes à do cônjuge, respeitando-se o princípio da igualdade e a não hierarquização das entidades familiares igualmente protegidas pela Constituição Federal.
Há em tramitação o Projeto de Lei n. 508/2007 que prevê a revogação do art. 1.790 do código Civil e equipara os direitos sucessórios do companheiro e do cônjuge, porém enquanto tal projeto não for aprovado cabe aos magistrados, aplicadores do direito, afastar tal artigo e aplicar ao companheiro as normas referentes aos cônjuges, assim como já está sendo feito em alguns Tribunais, como podemos nos julgados abaixo.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. COMPANHEIRO SOBREVIVENTE. DIREITO À TOTALIDADE DA HERANÇA. PARENTES COLATERAIS. EXCLUSÃO DOS IRMÃOS DA SUCESSÃO. INAPLICABILIDADE DO ART. 1790, INC. III, DO CC/02. INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 480 DO CPC. Não se aplica a regra contida no art. 1790, inc. III, do CC/02, por afronta aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e de igualdade, já que o art. 226, § 3º, da CF, deu tratamento paritário ao instituto da união estável em relação ao casamento. Assim, devem ser excluídos da sucessão os parentes colaterais, tendo o companheiro o direito à totalidade da herança. Incidente de inconstitucionalidade arguido, de ofício, na forma do art. 480 do CPC. Incidente rejeitado, por maioria. Recurso desprovido, por maioria". (TJRS, Agravo de instrumento n. 70017169335, Porto Alegre, Oitava Câmara Cível, Rel. Des. José Ataídes Siqueira Trindade, julgado em 08/03/2007, DJERS 27/11/2009, pág. 38).
EMBARGOS INFRINGENTES. UNIÃO ESTÁVEL. SUCESSÃO. COMPANHEIRA SOBREVIVENTE. DIREITO À TOTALIDADE DA HERANÇA. EXCLUSÃO DOS COLATERAIS. INAPLICABILIDADE DO ART. 1.790, INC. III, DO CÓDIGO CIVIL. Tendo a Constituição Federal, em seu art. 226, § 3º, equiparado a união estável ao casamento, o disposto no art. 1.790, III, do Código Civil vigente colide com a norma constitucional prevista, afrontando princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, resguardados na Carta Constitucional, razão para ser negado vigência ao disposto legal. À união estável são garantidos os mesmos direitos inerentes ao casamento, efeito que se estende ao plano sucessório, mormente no caso em exame onde autora e de cujus viveram more uxorio por três décadas, obtendo o reconhecimento judicial desta união como estável aos fins da C.F.Inexistindo descendentes e ascendentes, é da companheira sobrevivente o direito à totalidade da herança, excluindo-se os parentes colaterais.EMBARGOS INFRINGENTES ACOLHIDOS. SUSCITADO INCIDENTE DE RESERVA DE PLENÁRIO. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Embargos Infringentes Nº 70027265545, Quarto Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: André Luiz Planella Villarinho, Julgado em 10/07/2009)
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. SUCESSÃO DA COMPANHEIRA. ABERTURA DA SUCESSÃO OCORRIDA SOB A ÉGIDE DO NOVO CÓDIGO CIVIL. APLICABILIDADE DA NOVA LEI, NOS TERMOS DO ARTIGO 1.787. HABILITAÇÃO EM AUTOS DE IRMÃO DA FALECIDA. CASO CONCRETO, EM QUE MERECE AFASTADA A SUCESSÃO DO IRMÃO, NÃO INCIDINDO A REGRA PREVISTA NO 1.790, III, DO CCB, QUE CONFERE TRATAMENTO DIFERENCIADO ENTRE COMPANHEIRO E CÔNJUGE. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA EQUIDADE. Não se pode negar que tanto à família de direito, ou formalmente constituída, como também àquela que se constituiu por simples fato, há que se outorgar a mesma proteção legal, em observância ao princípio da eqüidade, assegurando-se igualdade de tratamento entre cônjuge e companheiro, inclusive no plano sucessório. Ademais, a própria Constituição Federal não confere tratamento iníquo aos cônjuges e companheiros, tampouco o faziam as Leis que regulamentavam a união estável antes do advento do novo Código Civil, não podendo, assim, prevalecer a interpretação literal do artigo em questão, sob pena de se incorrer na odiosa diferenciação, deixando ao desamparo a família constituída pela união estável, e conferindo proteção legal privilegiada à família constituída de acordo com as formalidades da lei. Preliminar não conhecida e recurso provido. (Agravo de Instrumento Nº 70020389284, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Raupp Ruschel, Julgado em 12/09/2007).
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. COMPANHEIRO SOBREVIVENTE. BEM DOADO. ASCENDENTE. INAPLICABILIDADE DO ART. 1790, DO CC/02. Não se conhece de parte do recurso onde é pleiteado o direito real de habitação, matéria não abordada nas razões recursais do agravo de instrumento. Não se aplica a regra contida no art. 1790 do CC/02, por afronta aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e de igualdade, já que o art. 226, § 3º, da CF, deu tratamento paritário ao instituto da união estável em relação ao casamento. Como é irrelevante para o direito sucessório do cônjuge o regime de bens adotado, não se deve discutir se houve ou não conjugação de esforços para a obtenção do patrimônio dos companheiros, pois o que é relevante é se houve união estável, não importando a origem do bem. Logo, a companheira sobrevivente tem direito a eventuais bens recebidos pelo falecido por herança de sua mãe, tal como ocorreria se se tratasse de cônjuge supérstite. Recurso conhecido em parte, e nesta provido. (Agravo Nº 70018505313, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 01/03/2007).
O assunto é tão importante que foi arguida sua inconstitucionalidade no Superior Tribunal de Justiça pelo Relator do REsp 1135354/PB, Ministro Luis Felipe Salomão, que prolatou voto muito bem fundamentado no sentido de declarar a inconstitucionalidade do art. 1.790, de onde retiramos os seguintes trechos:
[...]Diante desses fatos, não parece mais consentâneo com a nova ordem constitucional diferenças grandes de tratamento entre os institutos relacionados à família, porquanto a Carta de 1988 coloca sob o mesmo manto da "especial proteção" da "família" todos esses novos arranjos. [...] A união estável, na Constituição Federal de 1988, é entidade familiar digna da especial proteção do Estado, ciente o constituinte que os mesmos laços afetivos que ligam os cônjuges para a formação de uma família também ligam os companheiros na união estável, e os pais e filhos na família monoparental. [...] Não há como sustentar, com efeito, que a Carta Cidadã tenha adotado predileção pela família constituída pelo casamento, relegada às uniões estáveis e às famílias monoparentais apenas a qualidade de "entidades familiares", como se as ditas "entidades familiares" fossem algo diferente de uma família. [...] Diante da fundamentação até agora desenvolvida, a apreciação da adequação constitucional do art. 1.790, especialmente os incisos III e IV do Código de 2002, em última análise, deve levar em consideração um dos princípios basilares do ordenamento jurídico, qual seja, o princípio da igualdade, na vertente substantiva, apregoada há tempos por Rui Barbosa em sua Oração aos moços, segundo a qual o tratamento desigual aos desiguais se justifica apenas na exata medida em que se desigualam. [...] É até intuitivo que haverá juridicidade em norma que proceda a algum tratamento diferenciado se se fizer perceptível a correlação entre a distinção de regimes estabelecidos e a desigualdade que lhe deu suporte. [...] Entretanto,também é intuitiva a rejeição de validade à norma que, ao proceder a tratamento jurídico diferenciado aos supostamente desiguais, ancora-se em fatores que não guardam relação de pertinência lógica com a diferenciação jurídica estabelecida. [...] De tudo o que se afirmou, tenho que o casamento, tido por entidade familiar, não se difere em nenhum aspecto da união estável, tida também por entidade familiar, porquanto - como acredito que esteja correto - não há famílias timbradas como de “segunda classe” pela Constituição Federal de 1988, diferentemente do que ocorria nos diplomas constitucionais e legais superados. [...] Com efeito, diante de tudo o que se me afigura correto sobre o tema e que foi exposto na fundamentação desenvolvida, tenho que os incisos III e IV do art. 1.790 do Código Civil não possuem lastro constitucional, devendo, portanto, ser declarada sua inconstitucionalidade. [...] Por tudo o que foi dito, percebe-se que a fundamentação do estabelecimento de uma ordem de vocação hereditária deita raízes nas relações afetivas existentes entre o autor da herança e sua família. As normas jurídicas alusivas ao tema, portanto, apoiam-se naqueles valores metajurídicos relacionados à solidariedade e à afetividade, inservíveis à justificação de tratamento diferenciado entre casamento e união estável. [...] Com efeito, o estabelecimento, pelo art. 1.790, incisos III e IV, do Código Civil de 2002, de uma ordem de vocação hereditária para a união estável diferenciada daquela prevista para o casamento (art. 1.829) atenta contra a Constituição Federal de 88, especialmente contra o art. 226 – que concedeu a mesma especial proteção estatal a todas as famílias lá previstas –, e o caput do art. 5º -, porquanto concede tratamento desigual à união estável exatamente onde esta se iguala ao casamento, que é nos vínculos afetivos decorrentes das relações familiares. Ademais, é também desigual e discriminatório o fato de o companheiro receber apenas um terço da herança partilhável, ao passo que ao colateral tocam os dois terços restantes. [...] Finalmente, é de se ressaltar que o entendimento ora manifestado no voto não contrasta de forma nenhuma com os precedentes firmados nesta Corte Superior, sobretudo alguns das Turmas da Segunda Seção. Primeiramente porque os litígios antes apreciados sempre o foram pela óptica da legislação ordinária, ao passo que, agora, a análise é essencialmente constitucionalizada. Por outro lado, a grande preocupação sempre foi em não conferir aos conviventes em união estável mais direitos que aos cônjuges, o que não faz verdadeira a assertiva inversa, ou seja, de que os cônjuges possuem necessariamente mais direitos que os conviventes em união estável. [...] Diante do exposto, declaro a inconstitucionalidade dos incisos III e IV do art. 1.790 do Código Civil de 2002, para que, na ausência de ascendentes e de descendentes do falecido, o companheiro sobrevivente receba a totalidade da herança. (STJ - AI no REsp 1135354/PB - Relator(a) Ministro Luis Felipe Salomão – 4ª Turma – Data do Julgamento: 24/05/2011). (grifos nossos)
Assim, conforme demonstrado, vê-se que é discutida a constitucionalidade do art. 1.790 em diversos tribunais, inclusive no Superior Tribunal de Justiça e assim como muitos doutrinadores, parte da jurisprudência já começa a se inclinar para a tese da inconstitucionalidade do mencionado artigo.
Foi demonstrado no presente trabalho que cônjuge e companheiro têm direitos bastante distintos no que se refere à sucessão causa mortis e há muita discussão acerca dessas diferenças, uns dizem que estão condizentes com a Constituição Federal e outros consideram tais diferenças uma afronta à Lei Maior.
Um importante ponto que deve ser analisado para tentar achar uma resposta para esta questão é saber se a Constituição de 1988 hierarquizou ou não as entidades familiares no art. 226, §3º.
Tal artigo reconhece a união estável como entidade familiar, digna da proteção do Estado e determina que a lei deva facilitar sua conversão em casamento.
Ao falar em facilitação da conversão da união estável em casamento, a redação do dispositivo constitucional deu margem para que se interpretasse no sentido de haver hierarquização entre as entidades familiares.
Alguns autores defendem essa tese, argumentando que, se a lei diz que deve ser facilitada a conversão em casamento, teria ficado claro que a Constituição dá preferência ao matrimônio e que esse tipo de entidade familiar seria “hierarquicamente superior” à união estável.
Por outro lado muitos doutrinadores entendem que a Constituição não impôs essa hierarquização, mas consideram tanto o casamento quanto a união estável, entidades familiares igualmente merecedoras da proteção do Estado.
Quanto à conversão de que trata mencionado artigo, quem defende esse posicionamento entende que a lei apenas proibiu a lei de dificultar tal conversão, de modo que quem quisesse mudar de uma união estável para passar a viver num regime matrimonial, não se deparasse com obstáculos impostos por lei que dificultasse tal mudança.
Quem se filia ao primeiro posicionamento entende que as diferenças entre os direitos sucessórios do companheiro e do cônjuge são justas e que estão em conformidade com a Constituição Federal.
Já quem é adepto do segundo posicionamento entende que tais diferenças são injustas, injustificáveis e inconstitucionais, de modo que o art. 1.790 deveria ser expurgado da legislação.
Com todo respeito aos doutrinadores que defendem a primeira tese, nos posicionamos de modo a concordar com a tese que defende que a Constituição não hierarquizou as diferentes entidades familiares e que todas foram postas em mesmo plano, sendo merecedoras do mesmo grau de proteção do Estado.
A maioria da doutrina e da jurisprudência se filia a essa linha de raciocínio, existindo já diversos julgados afastando o art. 1.790 do Código Civil na sucessão do companheiro, para aplicar a ele as regras que regulam a sucessão do cônjuge, equiparando-os para fins sucessórios.
A título de exemplo, não nos parece justo pensar na possibilidade de o companheiro do falecido ter que concorrer na herança com um primo distante ou um tio avô do qual o de cujus nunca ouvira falar, existido inclusive a possibilidade de tal primo distante fique com uma parte maior da herança do que o companheiro, se ele for o único parente sucessível além do companheiro.
Isso porque quando concorre com qualquer parente sucessível, que não seja descendente, cabe ao companheiro sobrevivente 1/3 do patrimônio e no caso acima suposto o primo ficaria com 2/3 da herança, o dobro do que terá direito o convivente.
Seria justo uma pessoa que dividiu felicidades e tristezas, passou por momentos bons e ruins ao lado do falecido, lhe prestou auxílio diante das adversidades, dividir o patrimônio do de cujus com um parente com o qual ele nunca compartilhou nenhuma intimidade? A nosso ver, não.
Assim o mais justo seria garantir ao companheiro o mesmo direito do cônjuge de herdar a totalidade da herança no caso de ausência de descendentes e ascendentes, como já era garantido inclusive pela lei 8.971/94.
A lei supracitada, juntamente com a 9.278/96, regulava a união estável antes do Código Civil de 2002.
Outro fator que pesa para o lado da inconstitucionalidade das diferenças é o retrocesso gerado pelo Código de 2002. A união estável com a evolução da sociedade e das relações humanas foi ganhando cada vez mais espaço e adquirindo cada vez mais direitos, ao ponto de ser na Constituição de 88 reconhecida como entidade familiar e ter as leis 8.971/94 e 9.278/96 equiparado o companheiro ao cônjuge em direitos sucessórios, o que foi muito bem absorvido e amplamente aceito pela sociedade.
Até que na contramão dessa evolução jurídica e da onda igualitária proposta pela CF88 vem o Código de 2002 e diminui os direitos do convivente deixando-os numa situação pior da que lhe já era garantido por lei e volta a dar um tratamento aos direitos sucessórios do companheiro bastante distinto em relação ao cônjuge.
Se por um lado a Constituição preza pelo princípio da igualdade, inclusive entre entidades familiares, por outro o Código Civil, em matéria sucessória, propõe a discriminação, ao favorecer um tipo de entidade familiar em detrimento de outro.
Assim nos parece necessário que seja declarada a inconstitucionalidade do art. 1.790, de modo que este seja expurgado do ordenamento jurídico e que o companheiro seja equiparado ao cônjuge para fins sucessórios.
Porém enquanto não há uma mudança na legislação fica nas mãos dos magistrados a tarefa de afastar tal dispositivo e aplicar aos companheiros as normas referentes a cônjuges, o que já bem ocorrendo em alguns Tribunais.
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Graduando em Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Felipe Beviláqua. Diferenças entre os direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro e a inconstitucionalidade do Art. 1.790 do CC/02 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 abr 2015, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44033/diferencas-entre-os-direitos-sucessorios-do-conjuge-e-do-companheiro-e-a-inconstitucionalidade-do-art-1-790-do-cc-02. Acesso em: 23 dez 2024.
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