RESUMO: Este artigo objetiva estabelecer parâmetros para a interpretação das hipóteses de justa causa para a rescisão do contrato de trabalho, previstas no artigo 482 da Consolidação das Leis do Trabalho. As orientações aqui apresentadas se fundamentam na premissa de que a boa-fé objetiva, em consonância com os novos parâmetros do Direito Privado, aplica-se e gera efeitos próprios às obrigações laborais.
PALAVRAS-CHAVE: Justa Causa. Deveres Anexos ao Contrato de Trabalho. Sistema Taxativo. Boa-Fé.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Sistema Taxativo das Justas Causas. 3. A Boa-Fé Aplicada ao Contrato de Trabalho. 4. Os Deveres Acessórios ao Pacto Laboral. 4.1. Algumas Especificações. 5. Considerações Finais.
1. INTRODUÇÃO
A legislação trabalhista brasileira adota o sistema taxativo das infrações capazes de ensejar a dispensa por justa causa obreira. Nesse viés, é cediço que o artigo 482 da Consolidação das Leis do Trabalho vale-se de critério enumerativo para prever quais as condutas do trabalhador são passíveis de ensejar a ruptura do vínculo de emprego sem ônus para o empregador.
Contudo, impende-se notar que o sistema taxativo das infrações trabalhistas não afasta a possibilidade de interpretação extensiva dos “padrões” insculpidos no indigitado dispositivo, principalmente se são considerados elementos extralegais que integram as obrigações decorrentes do vínculo de emprego.
Nesse sentido, a análise da configuração da justa causa obreira vai muito além do que a mera aplicação, de forma estritamente objetiva, do texto legal celetista. Isso porque outros elementos estão diretamente ligados à leitura das hipóteses legais, dentre os quais é possível citar os deveres anexos ao contrato de trabalho.
Reconhecendo-se que o pacto laboral não encerra pura e simplesmente, para o trabalhador, a obrigação principal de prestar os serviços pactuados, tem-se que o vínculo de emprego impõe ao obreiro o cumprimento de obrigações acessórias, também denominadas de deveres acessórios, anexos ou instrumentais ao contrato de trabalho.
Assim posta a questão, o presente artigo debruça-se sobre a origem dos mencionados deveres anexos – qual seja, a aplicação do princípio da boa-fé objetiva às relações de trabalho – e analisa como se opera a incidência deste princípio ao contrato de emprego.
A proposta, pois, envolve a análise do artigo 482 da Consolidação das Leis do Trabalho em seu aspecto objetivo e, também, subjetivo, em observância às circunstâncias peculiares de cada caso. Assim, será possível verificar que a aplicação das hipóteses elencadas no supracitado dispositivo, conforme já adiantado, não decorre de mera subsunção legal, persistindo elementos capazes de modificar o seu conteúdo no decorrer do tempo.
2. SISTEMA TAXATIVO DAS JUSTAS CAUSAS
As infrações trabalhistas podem ser entendidas no âmbito de dois sistemas diversos: o genérico, ou, ao revés, o taxativo.
De acordo com o sistema genérico, inexiste previsão legal expressa dos tipos jurídicos que caracterizam os atos faltosos obreiros, ou seja, o ordenamento jurídico não realiza sua previsão exaustiva e formal. Segundo este sistema, pois, a ordem jurídica apenas se utiliza de fórmulas amplas para explicar o conteúdo das “infrações trabalhistas”, as quais consubstanciariam todas aquelas condutas que abalam a confiança que sustenta o vínculo de emprego, em razão de sua natureza e características.
Diversamente, o sistema taxativo prevê exaustivamente e em texto de lei o rol das infrações trabalhistas, sejam dos empregados ou dos empregadores. Tal sistema, também denominado de “tipicidade legal”, indica quais são os tipos jurídicos que encerram infrações trabalhistas, razão pela qual não há que se pensar em ato faltoso alheio à legislação. Este é o sistema adotado no ordenamento jurídico pátrio.
Nada obstante o sistema da tipicidade legal se aproxime daquele aplicável às infrações do Direito Penal, fato é que a tipificação trabalhista não ocorre nos moldes observados pela tipificação penal. Sobre o tema, explicou Maurício Godinho Delgado que inexiste, no sistema taxativo trabalhista, o rigor característico da tipicidade penal. Ao revés do que ocorre com as previsões legais do Direito Penal, os tipos legais trabalhistas são, na grande maioria das vezes, dotados de flexibilidade e plasticidade, diante da inexistência de descrição legal esmiuçada[1].
Por conseguinte, a ausência de rigidez do sistema taxativo de infrações obreiras implica na previsão, pelos tipos trabalhistas, de fórmulas legais, as quais são, por si mesmas, imprecisas e demasiadamente abertas, fazendo-se imprescindível a delimitação de seus traços por elementos alheios à lei.
Na legislação celetista, as hipóteses de infrações obreiras estão descritas em seu artigo 482, as quais são aplicáveis a todos os trabalhadores submetidos às suas disposições. Além do rol que concentra a grande maioria das hipóteses mencionadas, outros dispositivos esparsos ainda contêm descrições de atos faltosos do empregado, aplicáveis a trabalhadores em circunstâncias diferenciadas ou de categorias específicas. Dentre estes dispositivos, os artigos 158, parágrafo único, e 240, também parágrafo único, são exemplos de descrições aplicáveis a casos especiais, mas que em verdade poderiam ser abrangidos pelas hipóteses previstas para todos os trabalhadores indistintamente.
3. A BOA-FÉ APLICADA AO CONTRATO DE TRABALHO
Nada obstante se tenha a ciência de que o ordenamento jurídico pátrio adota o sistema taxativo das infrações trabalhistas, ou seja, de que a configuração da justa causa para dispensa obreira deve se amoldar às hipóteses exaustivamente previstas em lei, faz-se necessário perceber a maleabilidade do pretenso rol enumerativo, em razão da aplicação da boa-fé objetiva ao contrato de trabalho.
O princípio da boa-fé, também denominado de eticidade ou probidade, pode ser depreendido dos artigos 422, 113 e 187 do atual Código Civil pátrio. Assim, ao revés do que se observava no diploma civil anterior, a boa-fé objetiva passou a ser expressamente elemento inerente ao sistema jurídico brasileiro.
Ocorre que, para muito além de ser elemento presente na legislação de direito privado, o princípio da boa-fé possui fundamentação de nível constitucional, conforme ensina Teresa Negreiros:
A fundamentação constitucional do principio da boa-fé assenta na cláusula geral de tutela da pessoa humana – em que esta se presume parte integrante de uma comunidade, e não um ser isolado, cuja vontade em si mesma fosse absolutamente soberana, embora sujeita a limites externos. Mais especificamente, é possível reconduzir o princípio da boa-fé ao ditame constitucional que determina como objetivo fundamental da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, na qual o respeito pelo próximo seja um elemento essencial de toda e qualquer relação jurídica [2].
Por conseguinte, a boa-fé aparece, na vigente ordem jurídica, enquanto decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana, sendo responsável por associar aos pactos de vontade os valores da ética e lealdade, impondo a quebra do antigo paradigma do individualismo como preponderante nas relações privadas.
O aspecto objetivo da boa-fé não se resume a analisar o elemento volitivo que ensejou a conduta do indivíduo, possuindo abrangência muito maior. A boa-fé objetiva constitui-se fonte de deveres que tocam às partes contratantes, representando verdadeira norma de conduta, o “dever de conduta contratual ativo” [3]. Seu âmbito de incidência, pois, ultrapassa a mera análise do motivo psicológico que ensejou a prática do ato que se pretende qualificar.
Para Teresa Negreiros, equidade, razoabilidade e cooperação são expressões da especialização do princípio da boa-fé, razão pela qual é possível afirmar que a conduta esperada pelo contratante deve ser leal, correta e honesta, sendo que tais características não podem ser alvo de predefinições. Nesta linha, e complementando o raciocínio até aqui exposto, explica a autora que:
Com efeito – e isto fica muito claro na lista exemplificativa reproduzida acima – “os deveres de cooperação e proteção dos recíprocos interesses – especificam-se em comportamentos diversos conforme uma série de fatores, tais como: a condição socioeconômica dos contratantes; o tipo de vínculo que os une, mais ou menos fundado na confiança; a finalidade do ajuste; e demais circunstâncias a serem valoradas concretamente pelo magistrado” [4].
Por isso, apesar de ser possível fazer referência a um padrão de comportamento que deve ser adotado pelo contratante, os comportamentos em si especificados não podem ser previamente definidos, uma vez que são especificações dos deveres de colaboração e proteção característicos a cada situação particular.
Diante das considerações acima realizadas, infere-se que o ordenamento jurídico contemporâneo inaugurou uma concepção diversa de contrato, reservando ao passado o culto ao individualismo e à propriedade privada sem precedentes. Com efeito, a nova relação contratual, desenhada pelo Código Civil de 2002 e pela Constituição Federal de 1988, possui função social, ou seja, visa à satisfação de interesses mútuos, pautados na noção de solidariedade. O novo contrato, assim, demonstra que os deveres e ele anexos se fundam no princípio da boa-fé objetiva, no sentido de que aos contratantes cabe o cumprimento de suas obrigações principais com lealdade, probidade, cooperação e fidelidade.
4. OS DEVERES ACESSÓRIOS AO PACTO LABORAL
A cláusula da boa-fé, em seu viés objetivo, guarda importante aplicação ao contrato de trabalho. Neste prisma, cumpre relembrar algumas ideias preconizadas por Clóvis do Couto e Silva, doutrinador que escreveu bons ensinamentos a respeito da teoria das obrigações no direito contemporâneo.
O autor traz à baila a noção de “obrigação como processo”, ou seja, como fenômeno complexo que merece análise em toda sua totalidade. Dentro de sua nova ideia de vínculo contratual, os mandamentos decorrentes da boa-fé objetiva impõem a participação ativa de todos no vínculo obrigacional, havendo um elo de cooperação que tem o escopo de alcançar as finalidades pretendidas com o pacto.
A boa-fé inerente à concepção de “obrigação como processo”, pois, implica no surgimento de deveres obrigacionais, os quais, segundo o autor, não possuem o mesmo grau de intensidade em todas as relações jurídicas. Nesta linha, assim explicou:
Os deveres derivados da boa-fé ordenam-se, assim, em graus de intensidade, dependendo da categoria dos atos jurídicos a que se ligam. Podem, até, constituir o próprio conteúdo dos deveres principais, como nas hipóteses, já mencionadas, da gestão de negócio ou fidúcia, ou ainda expressarem-se como deveres duradouros de fidelidade, abrangendo e justificando toda a relação jurídica, como no contrato formador da relação de família [5].
Os “deveres derivados da boa-fé” não se restringem a um ou outro ato isolado, mas, ao contrário, permeiam toda a relação jurídica, sendo que o autor os exemplifica com os atos de vigilância, de guarda, de cooperação e de assistência [6].
E o que são, conceitualmente, os deveres acessórios à relação contratual? A resposta a este questionamento encontra-se bem enunciada nas palavras de Teresa Negreiros, para quem:
Tais deveres, não abrangidos pela prestação principal que compõe o objeto do vínculo obrigacional, caracterizam a correção do comportamento dos contratantes, um em relação ao outro, tendo em vista que o vínculo obrigacional deve traduzir uma ordem de cooperação, exigindo-se de ambos os obrigados que atuem em favor da consecução da finalidade que, afinal, justificou a formação daquele vínculo [7].
São, os deveres anexos aos contratos em geral, aqueles que ditam o comportamento do contratante, mesmo que apenas indiretamente vinculado ao objeto principal do pacto. Os deveres acessórios, pois, nada mais são do que derivações da noção de cooperação, a qual, por sua vez, decorre diretamente do princípio da boa-fé objetiva.
Conforme ensina Judith Martins-Costa, as funções atinentes à boa-fé objetiva são comumente enumeradas em três distintas: cânone hermenêutico-integrativo do contrato, norma de criação de deveres jurídicos e norma de limitação ao exercício de direitos subjetivos [8]. Muito embora se tenha a ciência de que as três funções aludidas têm vinculação com o tema dos deveres acessórios ao contrato de trabalho, este trabalho, conforme já se percebe, restringir-se-á a analisar apenas à função da boa-fé enquanto criadora de deveres jurídicos.
Os reflexos advindos da supramencionada função repercutiram não só no campo do Direito Civil, mas também no Direito Público e em outras áreas do Direito Privado. Com efeito, a incidência das noções de boa-fé em toda a ordem jurídica decorre da mudança de perspectiva de seu próprio entendimento, conforme explica Menezes Cordeiro, in verbis:
Cabe conhecer a expansão da boa-fé fora do direito civil. Essa expansão é notável e denota a compleição da boa-fé não como um instituto jurídico comum, mas como fator cultural importante, ligado, de modo estreito, a um certo entendimento do jurídico. O radicar da boa-fé em zonas privadas não civis, designadamente no direito comercial e no direito do trabalho não reveste dimensões problemáticas específicas [9].
Portanto, e já adentrando na particularidade que se deseja apontar, bem explicou o doutrinador ao se referir à “compleição da boa-fé não como um instituto jurídico comum, mas como fator cultural importante, ligado a certo entendimento jurídico”. A noção de boa-fé, assim, ultrapassa qualquer pretensão de adequação ou classificação jurídica, vez que corresponde a um autêntico valor cultural, que, por ser criação humana, vai sendo moldado ao longo da história. Incide na ordem jurídica, pois, não por ser um instituto jurídico genérico, comum a todas as esferas do Direito, mas por ser um valor cultural.
No âmbito do Direito do Trabalho, a boa-fé foi recebida dentro do seu aspecto obrigacional, face ao reconhecimento de que a relação de trabalho, em seu núcleo, visa vincular as partes ao cumprimento das prestações pactuadas, seja de prestação do serviço, seja do pagamento da remuneração. A posição de inspiradora dos deveres contratuais trabalhistas foi bem ressaltada em lição de Menezes Cordeiro, a seguir transcrita:
O transcender dessa orientação, com um reconhecimento da natureza obrigacional pura da situação laboral, conduz a uma aplicação renovada da boa fé na situação de trabalho; os seus efeitos, embora adaptados à especificidade da problemática laboral, ordenam-se, sem dificuldades, pelo figurino obrigacional [10].
Assim, vê-se que o reconhecimento da relação de trabalho enquanto reflexa à obrigacional foi responsável pela “aplicação renovada da boa fé na situação de trabalho”, passando a ser considerada enquanto fonte para os deveres acessórios à relação de trabalho.
Cumpre, contudo, alertar que os deveres anexos à relação contratual não se dirigem à pessoa do contratante em si mesma, mas sim à finalidade pretendida pela pactuação, resultado da vontade de ambas as partes. Não há que se falar, pois, em lealdade à pessoa do contratante, mas sim em lealdade ao objetivo perseguido com a pactuação, que perpassa pela adoção de condutas condizentes com a ética contratual.
No campo do Direito do Trabalho, a observação acima feita é de suma importância. De fato, as mudanças ocorridas na relação contratual genérica alcançaram a relação contratual de trabalho, a qual procurou adaptar ao seu âmbito as noções trazidas pela boa-fé objetiva. Daí porque se afirmar que a observação quanto ao destinatário dos deveres anexos é de importante aplicação às relações de trabalho, haja vista que os deveres de lealdade, cooperação e fidelidade do empregado não se dirigem à figura do empregador, mas, ao contrário, destinam-se a tutelar e reger os comportamentos relativos ao objeto da prestação de serviço em si, no estrito limite do cumprimento do contrato de trabalho.
Diante das explicações acerca da existência dos deveres anexos ao contrato de trabalho, bem como da noção de que estes deveres são derivações do princípio da boa-fé objetiva, prestigiado pela nova ordem jurídica constitucional e civil, cumpre esclarecer e explicar quais seriam os referidos deveres em espécie.
Fazendo breve leitura doutrinária a respeito da especificação dos deveres acessórios, percebe-se grande variedade a depender do campo do Direito em que se inserem. Assim, apesar de ser possível notar alguma concordância pacífica quanto a certos deveres, estes vão se especificando na medida em que se relacionam com determinada área jurídica. Na verdade, as noções intrínsecas a cada um dos deveres em muito se assemelham, razão pela qual alguns doutrinadores preferem inserir no campo de um deles um significado específico que foi, por outro, atribuído a dever específico.
Com o objetivo traçar os principais aspectos dos deveres acessórios ao contrato, mais especificamente quanto àqueles referentes às relações de trabalho, far-se-á uma análise das modalidades de deveres mais recorrentes na doutrina civil e trabalhista. Assim, a compilação dos deveres anexos adiante exposta não faz parte de sistematização única de determinado doutrinador, mais sim da mistura de várias sistematizações, das quais se procurou extrair todos os elementos pertinentes à “relação obrigacional trabalhista”.
4.1. Algumas Especificações
Apresentada a noção de boa-fé objetiva enquanto fonte de deveres instrumentais ao contrato de trabalho, cumpre perceber quais seriam estes deveres individualmente considerados, verificando de que forma se procedeu a adequação das noções obrigacionais do direito civil à relação contratual de emprego.
Diante de tudo quanto já foi exposto, não resta dúvida de que o contrato de trabalho, muito embora encerre, em tese, obrigação única (mesmo que contínua), obriga os contratantes ao cumprimento de deveres outros, não diretamente ligados à obrigação principal. Da mesma forma, já é possível inferir que a origem dos deveres decorrentes do pacto laboral, assim como de qualquer outra modalidade de vínculo contratual, decorre na incidência do princípio da boa-fé objetiva no Direito Privado e, também, no ordenamento jurídico como um todo, eis que concebido como valor cultural.
Um dos deveres anexos ao contrato de trabalho, e muito recorrente nas conceituações doutrinárias, é o “dever de fidelidade”.
A noção intrínseca ao aludido dever é inerente à ideia de que o empregado, no exercício das atividades para as quais foi contratado, deve colaborar positivamente com o empregador, sendo fiel às suas atribuições e ao objeto do contrato. Já aqui, pois, percebe-se que a noção de fidelidade acaba por se confundir com a própria ideia de colaboração, tida, por alguns, como dever específico.
O dever de fidelidade, analisado sob o ponto de vista do empregado, é bem visível na previsão da denominada “cláusula de não-concorrência”. Com efeito, a disposição segundo a qual é vedado ao trabalhador concorrer com a atividade desempenhada pelo empregado, abstendo-se, para isso, de angariar para si a clientela vinculada à empresa, nada mais significa senão agir com fidelidade ao objeto do contrato. Neste particular, observe-se a lição de Luciano Martinez:
A fidelidade é um atributo caracterizado pela sinceridade, pela crença positiva, pela segurança na probidade moral e na qualidade profissional de um indivíduo, e que, por isso, é incompatível com deslizes e traições. A fidelidade está contida no amplo conceito de lealdade. Ferem, portanto, o dever de fidelidade comportamentos de operários que negociam, dentro do horário de trabalho, habitualmente, por conta própria ou de terceiros, sem permissão do empregador, bens ou serviços [11] (destaque contido no original).
Deve o empregado, pois, prestar o serviço com vistas a contribuir (e já aqui se nota a recorrente noção de colaboração) com o sucesso da atividade empresarial, e não, ao contrário, adotar condutas que, muito embora o favoreçam egoisticamente, não convirjam ao resultado almejado pelo empregador, do qual o empregado teve ciência no momento da contratação e, justamente por isso, a este foi obrigado.
O dever acessório de fidelidade deve ser observado, também, pelo empregador, por óbvio. Apesar de o inconsciente coletivo associar o cumprimento dos deveres anexos em geral à pessoa do empregado, pode-se exemplificar hipótese em que o empregador não foi fiel ao empregado.
Nesta senda, basta rememorar que o sucesso da atividade empresarial é também desejado pelo empregado (ou pelo menos o deveria ser), já que a contraprestação pelo serviço prestado será mais facilmente paga se o empregador não tiver prejuízos com a empresa. Assim, para o caso de o empregador perceber que a atividade empresarial não produzirá os resultados esperados e que, inevitavelmente, isto afetará na remuneração dos trabalhadores, cabe a ele, com base no dever de fidelidade, comunicar as dificuldades para quem esta informação mais possa interessar, ou seja, para os próprios empregados.
Por último, cumpre alertar que há quem negue a existência do dever de fidelidade, pelo menos enquanto regra. Assim entende, por exemplo, Antônio Lamarca, autor já tratado neste capítulo. Segundo o seu entendimento, apenas contratos específicos com alto grau de dependência fiduciária implicam no aludido dever, como ocorre com o trabalho dos empregados domésticos, aprendizes (em pequenas firmas) e altos empregados que “substituem ou falam em nome do empregador” [12].
Com base no entendimento de que os deveres de fidelidade e de colaboração não vêm expressos na lei brasileira, o autor reforça a sua ideia de que a justa causa somente pode ser aferida objetivamente, inexistindo “base fiduciária” no contrato individual de emprego.
Porém, consoante se pretende demonstrar com o presente capítulo e, mais, com toda a extensão deste trabalho, particularmente entende-se que o contrato de trabalho é essencialmente fundado na confiança recíproca das partes interessadas, razão pela qual persiste o dever de fidelidade em qualquer vínculo, muito embora mais seja melhor evidenciado modalidades específicas de contratação.
O “dever de lealdade”, que em muito se aproxima do dever acima explicado, também é de recorrência manifesta nos ensinamentos doutrinários civis e trabalhistas. Sobre o seu conteúdo, ensinam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho que:
A ideia de lealdade infere o estabelecimento de relações calcadas na transparência e enunciação da verdade, com a correspondência entre a vontade manifestada e a conduta praticada, bem como sem omissões dolosas – o que se relaciona também com o dever anexo de informação – para que seja formado um elo de segurança jurídica calcada na confiança das partes que pretendem contratar, com a explicação, a mais clara possível, dos deveres e direitos de cada um [13].
A lealdade, assim, está intimamente ligada com a noção de confiança, a qual é responsável por manter o vínculo de emprego intacto. Mais uma vez percebe-se a confusão entre os conceitos, os quais, consoante será possível concluir ao final, decorrem da ideia de confiança recíproca existente entre empregado e empregador.
O trabalhador é leal ao contrato de trabalho, e não ao empregador, como oportunamente salientado. Aliás, relembre-se que essa observação se aplica a todas as especificações de deveres instrumentais, haja vista que inexiste, nos moldes da ordem jurídica contemporânea, a noção de sujeição do empregado ao empregador.
A lealdade do trabalhador ao contrato, em síntese, pretende significar que devem ser adotados, por este, todos os comportamentos tendentes à consecução de seu objetivo e, da mesma forma, o mesmo deve se abster de praticar condutas que não compactuem com a intenção manifestada no ato da contratação, ou, nos próprios termos dos autores supracitados, que não demonstrem “correspondência entre a vontade manifestada e a conduta praticada”.
Ser leal ao contrato de trabalho significa, assim, respeitar as regras e princípios que o norteiam [14]. No que tange à conduta que não observa este dever, praticada pelo empregador, Luciano Martinez exemplifica as hipóteses em que o empregador desconta as contribuições sociais, mas não as repassa ao órgão competente, ou, ainda, a situação de o empregador exigir do empregador serviços defesos em lei.
Por último, cumpre ressaltar que o dever de lealdade já foi bem mais evidenciado, pode-se dizer até mesmo desmedidamente. Com efeito, o dever de lealdade, acompanhado também do dever de fidelidade, não tinha sequer o caráter de acessório, da forma que o é atualmente. Isso porque a ideia da “comunidade de trabalho”, intrínseca à concepção comunitário-pessoal do vínculo empregatício, encarava tais deveres como objetos principais das obrigações trabalhistas, às vezes até mesmo únicos. Daí porque se admitir, nos moldes da aludida concepção, tamanha ingerência do empregador na vida do empregado.
Outra especificidade dos deveres acessórios é o “dever de cooperação”, também denominado “dever de assistência” ou de “colaboração”. A noção de cooperação é apreendida da simples constatação de que todo contrato é firmado com o objetivo de seu cumprimento, razão pela qual os comportamentos a este atinentes devem cooperar com a consecução de seus objetivos.
Segundo Clóvis do Couto e Silva, “todos os deveres anexos podem ser considerados deveres de cooperação[15]”. Com efeito, “cooperar” é termo amplo, cujo conteúdo imprescinde do cumprimento dos demais deveres de lealdade e fidelidade. Isso porque é impossível compatibilizar o empregado que colabora, mas é infiel, ou o empregador que é leal, porém não coopera com a permanência e sucesso do vínculo. São noções, pois, necessariamente relacionadas.
Demais disso, é intrínseco ao significado deste dever a noção de trabalho coletivo, no sentido de que o objeto almejado pelas partes somente pode ser alcançado com esforços mútuos. Por isso, o “dever de cooperação” e os seus reflexos nos demais deveres acessórios advêm da própria feição do contrato na contemporaneidade. Neste prisma, a antiga ideia de que as partes pactuavam almejando interesses opostos evoluiu para a noção de que os interesses são, em verdade, comuns. O vínculo contratual, seja este de qualquer espécie, passa a ser encarado como vínculo de cooperação, cuja satisfação dos interesses das partes depende de atuação recíproca, a qual, em primeira e última instância, pauta-se na confiança que sustenta a relação entre os contratantes.
A função social do contrato, muito embora não seja o tema central da presente discussão, está altamente relacionada com a nova concepção de relação contratual. Isso porque o contrato, acompanhando o quanto já foi explicado a respeito dos novos paradigmas do Direito Privado, deixa de ser encarado como instrumento para satisfação de interesses individuais, regidos pela irrestrita autonomia da vontade. Ao contrário, o Direito Privado moldado aos valores da atual Constituição e, também, vinculado a novas regras civis, prevê a relação contratual enquanto meio para a consecução de interesses mútuos e, mais que do isso, sociais.
Por conseguinte, a sociedade que prestigia o convívio como fomentador da personalidade humana, em contraponto àquela que priorizava os interesses individuais, foca-se nas ideias de solidariedade e responsabilidade mútuas, as quais não estão alheias à relação contratual. O contrato passa a exercer, assim, a função social de realizar a dignidade da pessoa humana, através da previsão de direitos e deveres para as partes contratantes.
Diante de tais considerações, demonstra-se que o dever de cooperação das partes no contrato, em especial no contrato de trabalho, é mais do que um dever acessório, derivado. Como visto, a colaboração presente no vínculo decorre da nova concepção de Direito Privado, razão pela qual empregado e empregador devem agir cooperativamente, com o escopo de alcançar sucesso nos interesses reciprocamente considerados, agindo em conformidade com esta finalidade.
Outros deveres minoritariamente especificados são os de “diligência” e de “respeito”. Ser diligente significa agir com zelo, cuidado. No âmbito do contrato de trabalho, o dever de diligência é mais visível no que tange ao empregado, o qual deve zelar pelo desempenho positivo de suas atividades.
Ser respeitoso, por sua vez, implica agir com consideração e deferência em relação ao outro. Respeitar, ademais, traz a ideia de acatar e obedecer ao que foi pactuado, conduta que deve tocar a ambas a partes, em suas respectivas obrigações.
Assim, infere-se que o dever de respeito é também indissociável das noções de lealdade e fidelidade contratuais, já que não há como se conceber um empregado que não cumpre o pactuado, mas é leal, ou ainda que não guarda consideração a seu empregador, apesar de ser fiel. São, pois, ideias estritamente vinculadas. O mesmo pode ser dito em relação ao dever de diligência, uma vez que o desempenho das atividades das partes com zelo é inerente ao cumprimento de todos os deveres anteriormente citados, de lealdade, fidelidade, cooperação e respeito.
Da análise das especificações dos deveres acessórios, pois, impõe-se à seguinte constatação: os deveres anexos ao contrato de trabalho, fundados no princípio da boa-fé objetiva, nada mais são do que reflexos da nova concepção de relação contratual enquanto instrumento dotado de função social. A partir do momento em que o contrato é entendido como meio para satisfação de interesses mútuos, a colaboração torna-se elemento indissociável, da qual exsurgem implicações de condutas leais, fiéis, diligentes e respeitosas.
Demais disso, a base do vínculo contratual de emprego, assim como a de todas as relações contratuais contemporâneas, pauta-se na confiança recíproca existente entre as partes, a qual, da mesma forma em que ocorre com a noção de cooperação, imprescinde do cumprimento dos deveres de lealdade, fidelidade, diligência e respeito. A confiança, assim, somente pode ser alcançada materialmente se cumpridos os deveres elencados, conforme bem enunciou Menezes Cordeiro:
A aproximação entre confiança e boa-fé constitui um passo da Ciência Jurídica que não mais se pode perder. Mas ele só se torna produtivo quando, à confiança, se empreste um alcance material que ela, por seu turno, comunique à boa-fé [16].
Boa-fé, confiança e deveres anexos, assim, são noções que caminham lado a lado, necessariamente. Não há utilidade do conceito de confiança se seu conteúdo não for concretizado na prática. A concretização da confiança, por sua vez, imprescinde dos deveres anexos ao contrato de trabalho. E os deveres instrumentais, a seu passo, são reflexos da incidência do princípio da boa-fé objetiva nas relações contratuais.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da fundamentação doutrinária acima exposta impede-se concluir que as hipóteses de justa causa não podem ser aferidas por uma análise meramente objetiva. Ao revés, admite-se que o rol previsto no artigo 482 do texto celetista merece ser valorado de acordo com o caso concreto, observando-se a existência de deveres decorrente da aplicação do princípio da boa-fé objetiva. Nesta linha, bem sintetizou Evaristo de Moraes Filho, ao dispor, in verbis:
Com esses ligeiros enunciados, deixamos sobejamente demonstrado que a figura da falta grave não pode ser encarada sob o ângulo abstrato nem sob qualquer dogmatismo esquemático e hermético, e sim concretamente, variando de hipótese para hipótese, nos seus cometimentos reais [17].
Assim, o ato de rechaçar o aspecto subjetivo das justas causas, o que, registre-se, inclui a impossibilidade de adequá-lo ao caso concerto em análise, traz grande prejuízo ao sistema trabalhista das infrações. Isso porque a taxatividade pretendida pela pátria consolidação do trabalho não pode ser encarada em seu viés absoluto, assim como nada deve o ser. Com efeito, é despiciendo explicar a fundo que as disposições contidas nas leis não refletem, por completo, as situações que se apresentam na realidade prática, porquanto esta se posiciona sempre um passo à frente ao legislador.
Eis porque o sistema brasileiro, embora admirado por empreender maior segurança jurídica às pretensas partes faltosas, não é perfeito, e, por isso mesmo, não pode ser absolutamente objetivado. A imperfeição do sistema ora tratado foi, pelo próprio Antônio Lamarca – autor que nega a possibilidade de interpretação subjetiva das hipóteses de justa causa – ressaltada, na medida em que o autor afirmou que “embora o sistema não seja bom, acaba por constituir uma garantia para o trabalhador (e para o empregador, quando a justa causa for ensejada por ele): fora do elenco legal, não há justa causa” [18].
Neste prisma, entende-se que a própria imperfeição do sistema da taxatividade é responsável por afastá-lo de qualquer apreciação meramente objetiva.
Assim, o entendimento favorável à possibilidade de subjetivação da justa causa aplicada pelo empregador implica em importante conclusão: não há objetividade nem tampouco rigidez nas hipóteses elencadas pelo artigo 482 da lei celetista. Ao contrário, defende-se a flexibilização dos “pontos de referências” sedimentados na CLT, os quais, inclusive, podem ter seu conteúdo preenchido com elementos da “vida real”, contemporânea.
Não há que se falar, pois, em conceitos absolutos e objetivos. O legislador celetista, muito embora tenha optado pelo sistema taxativo das infrações trabalhistas, certamente não desejou o engessamento das hipóteses previstas no texto legal, as quais devem sempre espelhar a realidade dos fatos vividos em cada sociedade.
REFERÊNCIAS
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MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: Sistema e Tópica no Processo Obrigacional. São Paulo: RT, 1999.
MORAIS FILHO, Evaristo. A Justa Causa na Rescisão do Contrato de Trabalho. São Paulo: LTr, 1996.
NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: novos paradigmas. 2. ed. São Paulo: Renovar, 2006.
SILVA, Clóvis do Couto e. A Obrigação como Processo. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
[1] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 8. ed. São Paulo: LTr, 2009, p. 1088.
[2] NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: novos paradigmas. 2. ed. São Paulo: Renovar, 2006, p. 116-117.
[3] Ibidem, p. 122.
[4] Ibidem, p. 153.
[5] SILVA, Clóvis de Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 34.
[6] Ibidem, p. 93.
[7] NEGREIROS, Teresa. Op. cit., p. 150.
[8] MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: Sistema e Tópica no Processo Obrigacional. São Paulo: RT, 1999, p. 427-428.
[9] CORDEIRO, António Manuel da Rocha Menezes. Da Boa Fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2007, p. 371.
[10] Ibidem, p. 373.
[11] MARTINEZ, Luciano. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 490.
[12] LAMARCA, Antônio. Manual das Justas Causas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 64.
[13] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: contratos: teoria geral. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 71.
[14] MARTINEZ, Luciano. Op cit. p. 490.
[15] SILVA, Clovis de Couto e. Op. cit., p. 96.
[16] CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha Menezes. Op. cit., p.1241.
[17] MORAES FILHO, Evaristo de. A Justa Causa na Rescisão do Contrato de Trabalho. São Paulo: LTr, 1996, p. 216.
[18] LAMARCA, Antônio. Op. cit., p. 245.
Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Pós Graduanda em Ciências Criminais pela Faculdade Baiana de Direito. Assessora Administrativa da 1ª Vice-Presidência do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Yosadhara de Araújo. As hipóteses de justa causa para a dispensa obreira frente aos deveres anexos ao contrato de trabalho Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 abr 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44074/as-hipoteses-de-justa-causa-para-a-dispensa-obreira-frente-aos-deveres-anexos-ao-contrato-de-trabalho. Acesso em: 23 dez 2024.
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