RESUMO: O direito fundamental à saúde, sob a perspectiva do fornecimento de medicamentos não incluídos nas listas oficiais do Estado, passou a integrar o mínimo existencial e se tornou parte essencial da dignidade da pessoa humana quando da sua inclusão como garantia constitucional e da necessária regulamentação desse direito pelo legislador ordinário. O direito à saúde pode ser exigido por meio do Poder Judiciário com fulcro na garantia constitucional da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais. O direito de postular em juízo possui caráter subjetivo, fundamentado pelos princípios da proibição de retrocesso social, do direito à vida, à saúde e da dignidade da pessoa humana.
Palavras-chave: Direito à saúde. Direito fundamental. Dignidade da pessoa humana. Tutela judicial. Medicamentos.
INTRODUÇÃO
Tem-se observado um aumento significativo de ações judiciais para efetivar o direito fundamental à saúde, principalmente para obtenção de medicamentos não incluídos nas listas oficiais.
Para alguns, a prestação fática à saúde está assegurada na Constituição. Outros restringem esse direito tão-somente ao que dispõe a legislação e a regulamentação infraconstitucional.
Destacam-se, de um lado, o direito à vida, à saúde, o respeito à dignidade humana e à liberdade, em contraposição à competência orçamentária do legislador, ao princípio democrático, à reserva do possível e a eficiência da atividade administrativa.
Assim, eventual provimento judicial para conceder medicamentos pode resultar em danos relevantes ao funcionamento do serviço público de saúde e vir em detrimento do direito à saúde de outros cidadãos.
Necessário se faz a análise acerca das garantias constitucionais asseguradoras do direito à saúde e a legitimidade do Poder Judiciário, quando do julgamento dessas ações, ao obrigar os demais Poderes em promover prestações positivas diante da inércia estatal.
Levando em consideração a omissão estatal na criação de leis ou na implementação de políticas públicas para assegurar o direito à saúde, procurar-se-á demonstrar a obrigatoriedade de aplicação imediata das normas constitucionais garantidoras desse direito e o papel desempenhado pelo Judiciário para tal finalidade.
A Constituição de 1988 e o direito à saúde
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes a inviolabilidade ao direito à vida - o mais fundamental de todos os direitos.
Nas lições de Alexandre Moraes :
(...) o direito humano fundamental à vida deve ser entendido como direito a um nível de vida adequado com a condição humana, ou seja, direito à alimentação, vestuário, assistência médico-odontológica, educação, cultura, lazer e demais condições vitais (Moraes, 2003, p. 87).
O dever do Estado, assim, não se restringe a preservar a vida a seus residentes, mas também garantir o respeito aos fundamentos e objetivos da República Brasileira, tais como a dignidade da pessoa humana, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades nacionais e regionais etc.
O artigo 6° da Carta Política prevê que são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.
Nesse sentido, para que a vida seja adequada à condição humana, faz-se necessário o respeito aos direitos sociais pelo Estado.
Correto, assim, afirmar que o princípio da dignidade da pessoa humana, o direito fundamental à vida e o direito social à saúde estão correlacionados, pois, para a manutenção da vida digna, muitas vezes, é fundamental o acesso a prestações que visem a manter ou a restabelecer a saúde.
Os artigos 196 a 200 da Constituição Federal, de forma direta, asseguraram o direito fundamental à saúde como direito de todos, impondo ao Estado o dever de garantir o direito à saúde, mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário.
Segundo ensina José Afonso da Silva (SILVA, 2008), as normas da Constituição de 1988 foram classificadas em três categorias: normas constitucionais de eficácia plena, normas de eficácia contida e normas de eficácia limitada.
As normas de eficácia plena são auto-executáveis, ou seja, podem ser exigidas de plano, sem a necessidade de intermediação legislativa ou estatal. Desse modo, possuem aplicabilidade direta, imediata e integral, estando aptas a operarem todos os seus efeitos no momento de sua entrada em vigor.
As segundas, com eficácia contida, da mesma forma, são auto-executáveis. Assim como as normas de eficácia plena, têm aplicabilidade direta e imediata, contudo nem sempre integral, pois podem sofrer restrição por normas constitucionais.
Por sua vez, as normas de eficácia limitada não detêm os efeitos imediatos característico das anteriores. Necessitam de regulamentação legislativa para que os efeitos possam operar. Possuem aplicabilidade indireta ou mediata, produzindo efeitos apenas quando regulamentadas por normas infraconstitucionais. Dentre essa classificação há ainda uma subdivisão em normas de eficácia limitada de princípio institutivo e normas de eficácia limitada de princípio programático.
As primeiras são as que criam organismos ou entidades. Também são conhecidas como normas de princípio organizativo, contendo esquemas gerais de estruturação e atribuições de instituições, entidades ou órgãos, para que o legislador infraconstitucional se estruture mediante a criação de leis.
As normas de princípio programático são aquelas cuja função é traçar princípios a serem cumpridos pelos órgãos e poderes do Estado, como programas das respectivas atividades, e visam à realização dos fins sociais do Estado. Tratam de matéria de natureza ético-social, representando os direitos referentes à justiça social, como a proteção dos trabalhadores, da família, as prestações positivas do Estado, o qual deverá se organizar e possibilitar a todos o exercício desses direitos.
Dentre eles, encontra-se o direito elencado no artigo 6° da Constituição Federal bem como em outros dispositivos e em todo o título VIII, que trata da ordem social.
O Constituinte regulamentou o direito à saúde como norma de eficácia limitada programática, ou seja, cuja aplicabilidade plena depende de normatividade futura pelo legislador ordinário para conferir-lhes eficácia, tornando viável a execução dos interesses visados.
Todavia, além da necessária normatividade infraconstitucional, as referidas normas programáticas exigem, ainda, num segundo momento, a adoção de um compromisso pelas forças políticas, a fim de possibilitar a execução na sociedade dos direitos previstos. A Constituição impõe, assim, aos Poderes Legislativo e Executivo, de forma direta e imediata, o dever de desenvolver e executar as políticas públicas de saúde mais eficazes e abrangentes possíveis.
Nesse lanço, o Estado deve promover meios de garantir o direito à saúde a todos os indivíduos, mediante políticas públicas sociais e econômicas objetivando não somente tratar doenças (recuperar) mas ainda prevenir e proteger, tais como as campanhas sanitárias e a vacinação obrigatória.
Os direitos sociais, em especial a saúde, pressupõem a atuação programada e controlada dos órgãos estatais como condição de sua existência. Tratam-se de atividades que concretizam os direitos fundamentais.
Não há dúvida que o direito à saúde é tido pela Carta Magna como um direito fundamental, razão pela qual vincula os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário assim como impõe ao Estado, no exercício desses poderes e dentro dos limites da realidade, fazer o possível para promover a saúde.
Em suma, aos Poderes Legislativo e Executivo cabe o desenvolvimento e execução de políticas públicas de saúde mais eficazes e abrangentes possíveis, concretizando o direito fundamental, dentre as quais o fornecimento de medicamentos.
Levando em consideração uma política pública definida legislativamente e executada adequadamente, o Poder judiciário pode ser chamado a se manifestar se há outra prestação positiva que pode ser inserida no conteúdo jurídico de direito à saúde, portanto diversa da definida pelos outros Poderes, cujo direito decorre diretamente da Constituição.
Na maioria das ações em que se pleiteia o fornecimento de medicamentos não disponibilizados pelas listas oficias, o provimento judicial favorável resulta na afirmação da eficácia originária do direito à saúde ao obrigar Administração a conceder a medicação pretendida.
Deve-se ter em mente que negar a possibilidade de eficácia originária do direito à saúde, significa restringir a força normativa da constituição à legislação e à administração.
Admitir que o direito a determinada prestação de saúde permaneça limitada tão-somente ao previsto nas políticas públicas definidas e executadas pelo legislador ordinário e pela administração significa admitir que estes têm o poder de suprimir a competência do constituinte ao definir o conteúdo jurídico da norma de direito fundamental.
O direito à saúde e a superação do caráter programático da norma constitucional
Na concepção de J. J. Gomes Canotilho (2003, p. 407), os direitos fundamentais são definidos a partir de suas funções: funções de defesa ou liberdade, função de prestação social, função de proteção perante terceiros e função de não discriminação. De acordo com o mesmo autor:
os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).
Os primeiros, conforme por ele definido, são os direitos de liberdade, os quais exigem do Estado competência negativa necessária para a proteção das liberdades individuais, dos direitos civis e políticos (primeira dimensão). No tocante à esfera individual, são elencados como direitos de abstenção do Estado frente às liberdades individuais. Os direitos de defesa são os exercidos em face do Estado, com o propósito de evitar agressões lesivas por parte deste.
Quanto aos direitos a prestações, destaca que é o direito do particular a obter algo através do Estado (saúde, educação, segurança social).
Segundo Canotilho (2003, p. 408), existem três núcleos que diferenciam os direitos prestacionais, quais sejam: (1) os direitos sociais originários, em que o direito pode ser exigido automaticamente, por decorrência da norma escrita, como o direito de exigir a moradia ou uma casa; (2) os direitos sociais derivados, os quais determinam ao legislador infraconstitucional uma atuação regulamentadora e, a partir disso, o direito do particular de buscar uma participação igual nas prestações criadas com a atuação legislativa e, por último, (3) as políticas sociais ativas, que são as medidas concretas para a efetividade do direito social a ser implementado, como a criação de hospitais, de escolas, contratação de médicos, serviços etc.
Somente para a terceira situação, de acordo com o referido constitucionalista, há o mandamento constitucional para que se implemente políticas públicas ativas (CANOTILHO, 2003, p. 409).
Os direitos sociais, ou seja, direito de obter algo através do Estado pelo particular, se situam, portanto, nos direitos a prestação social, que somente se tornarão efetivos no seio social a partir de políticas públicas capazes de proporcionar a todos, genericamente, o exercício e a garantia do respectivo direito.
Conforme já demonstrado, a Constituição Federal de 1988 consagrou o direito à saúde como um direito fundamental social. Esse bem jurídico é passível de garantia estatal, cuja proteção jurídica possibilita exigir do Estado prestações positivas quanto à efetividade deste direito.
Nessa seara, o direito à saúde passa a ter também conotação administrativa ao exigir a atuação estatal na sua promoção, proteção e recuperação. Assim, depende da atuação legislativa e da sua efetivação por meio da atuação positiva por políticas sociais.
José Afonso da Silva ensina que não se pode atribuir caráter meramente programático à norma contida no artigo 196 da Constituição, dada a previsão como direito social e fundamental (SILVA, p. 150).
A referida norma, em leitura conjunta como o caput do art. 6º, institui o dever ao Estado de satisfazer o direito à saúde. Quando o Estado não cumpre com sua obrigação, tem-se um nítido desrespeito ao direito prestacional que deve ser disponibilizado aos residentes.
Hodiernamente, não é mais possível enquadrar o direito à saúde, esculpido no art. 196 da Carta Política, como mera norma programática, sob pena de converter-se em promessa constitucional inconseqüente. Em conjunto com o caput do art. 6º, a Constituição institui dever ao Estado de satisfazer aquele direito. Destarte, assegurar constitucionalmente, mas não trazer qualquer limite ao Estado, é o mesmo que não assegurar nada.
Assim, pode-se concluir que o direito à saúde é um direito público subjetivo oponível ao Estado, o qual é protegido pelos princípios fundamentais como a proteção da dignidade da pessoa humana, englobando a saúde do indivíduo, o direito à vida e à qualidade de vida saudável.
A reserva do possível enquanto limite ao direito à saúde
No Brasil, o Estado recebeu a incumbência de elaborar leis infraconstitucionais com a finalidade de assegurar a efetividade do direito à saúde, em conformidade com os dispositivos constitucionais e de acordo com a natureza da norma constitucional de eficácia limitada programática.
Ou seja, o Constituinte transferiu para o legislador a competência de concretizar o direito à saúde. Essa delegação, assim, não se restringe ao âmbito legislativo. Há ainda a vinculação do Estado para assegurar à população a efetividade desse direito, o que, por óbvio, encontra limites na disponibilidade de recursos.
Como decorrência da limitação orçamentária, grande parte da doutrina defende que apenas o mínimo existencial pode ser garantido, isto é, somente os direitos sociais econômicos e culturais considerados mais relevantes poderiam ser assegurados, por integrarem o núcleo da dignidade da pessoa humana ou decorrente do direito básico da liberdade.
Outros (Machado, 2007, p. 9) entendem que o preceito da reserva do possível é utilizado por aqueles que pretendem justificar a inoperância do Estado em termos de Estado Social, principalmente diante da notoriedade de gastos com publicidade institucional, os quais, muitas vezes, são maiores que as verbas destinadas à eficaz prestação de saúde.
No entanto, como acima demonstrado, as destinações de recursos públicos para a garantia de determinado direito social assim como a sua efetiva disponibilidade não podem ser opostas ao indivíduo caso dela dependa a manutenção de sua existência. Nessa situação, os recursos materiais mínimos devem garantir a existência do indivíduo, sob pena de atentar contra o princípio da dignidade da pessoa humana.
Não se olvida que o sistema de saúde brasileiro visa ao cumprimento das normas constitucionais, respaldado na dignidade da pessoa humana e no direito à vida, ainda que passível de falhas e vícios. A realidade brasileira está marcada pelas mazelas sociais a que estão submetidos os brasileiros. É sabido ainda que os grandes óbices à efetivação do direito à saúde sempre estiveram ligados às limitações do Estado, principalmente às possibilidades financeiras, à destinação de recursos assim como em relação à consecução de medidas que torne viável o seu exercício.
O artigo 5°, §1º, da Carta Magna garante eficácia e aplicabilidade dos direitos fundamentais, cuja responsabilidade de efetivação foi atribuída aos legisladores e aos demais poderes públicos. Ou seja, os órgãos públicos efetivadores de tais direitos estão obrigados a dar cumprimento aos dispositivos constitucionais que assegurem direitos fundamentais e garantir o seu exercício a todos.
É óbvio que a implementação dos direitos sociais, por meio de políticas públicas, depende de recursos financeiros. Não é novidade, por sua vez, que o Estado alega a escassez de recursos e posterga a efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais. Com isso, cabe postular junto ao poder judiciário as prestações positivas quando do não atendimento da norma constitucional pelo Executivo e Legislativo.
Em conformidade com a ordem constitucional, a negativa por parte do Estado para a implementação de direitos e garantia não pode ser justificada pela escassez de recursos públicos, tendo em vista a força suprema da Constituição Federal e ainda os objetivos do Estado para tornar efetivos tais direitos.
A partir da Constituição Federal de 1988, não é mais possível alegar que o direito social à saúde não é garantido em razão de motivos que ultrapassem a esfera legal – como a dotação orçamentária. Passou a ser possível sua exigência por intermédio do Poder Judiciário, cujas ações judiciais visa a garantir o direito à obtenção de medicamentos, cirurgias, próteses etc, de forma individual ou coletiva.
A cobrança de impostos e o mau uso dos recursos públicos fartamente veiculados pelos meios de comunicação e pelos próprios órgãos de controle de gastos do Estado justificam, por si só, o dever da garantia dos direitos sociais, não podendo o Estado atribuir custos aos direitos sociais como forma de se subtrair da obrigação constitucional estabelecida.
Assim, o preceito da reserva do possível não pode ser utilizado para justificar a inoperância/ineficácia do Estado e eximi-lo de suas responsabilidades sociais.
Com efeito, o direito à saúde estaria subjugado à condição de mera disposição constitucional, sem qualquer força normativa, sem o reconhecimento por parte do Estado (Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário) de sua correspondente obrigação e do comprometimento em realizá-la.
Por tudo isso, o direito à saúde, que preenche o núcleo do direito à vida, não pode estar condicionado às possibilidades/prioridades estatais. Ao contrário, o Estado está vinculado às funções constitucionais de realização da nova ordem econômica e social.
A atuação do Poder Judiciário no fornecimento de medicamentos não previstos em listas oficiais
Nos últimos anos, tem-se observado um número crescente de ajuizamento de demandas judiciais requerendo o fornecimento de medicamentos não arrolados nas listas oficiais.
É intenso o debate na doutrina e jurisprudência acerca do tema, devido ao impacto decisivo não apenas na saúde, mas, igualmente, no próprio direito à vida do demandante e também nas responsabilidades e nos encargos dos gestores do SUS (Sistema Único de Saúde).
Tendo em vista caber ao Poder executivo e ao Poder Legislativo delinear política de medicamentos, não há dúvida que uma política de fornecimento gratuito de medicamentos requer selecionar os remédios que serão disponibilizados à população, o que, por si só, limita os direitos fundamentais à saúde e à vida.
Por se tratar de opção política, Fernando Zandoná (ZANDONÁ, 2008) sustenta que é legítima a seleção pelo Estado de medicamentos essências, considerados como mínimo existencial, diante da restrição orçamentária, haja vista terem sido eleitos pelo povo. Nesse passo, o cidadão não tem o direito subjetivo de pleitear judicialmente medicamentos não incluídos em lista e de influir na política nacional de medicamentos, pois, se assim fosse, todos teriam o direito subjetivo à efetivação de outros direitos fundamentais, tais como alimentação, educação, moradia, trabalho, segurança, salário mínimo nos moldes do art. 7º, IV, saneamento básico etc.
No caso de não se incluir medicamento essencial na lista do RENAME (Relação Nacional de Medicamentos Especiais), a solução seria o ajuizamento de ação civil pública pelo Ministério Público, garantido, assim, o fornecimento de determinado medicamento a todos os que se encontrem em situação idêntica.
Conclui o referido autor:
A discussão sobre o fornecimento de medicamento- não incluído na lista do SUS – não deve se feita em sede de ação individual, já que (a) não existe direito subjetivo em postular junto ao Estado o fornecimento de todo e qualquer medicamento disponível no mercado nacional ou internacional, não incluído em lista, mesmo que necessário à efetiva tutela dos direitos fundamentais à vida e à saúde; (b) ao atender a um pedido individual, o Poder judiciário intervém de forma ilegítima na Política Nacional de Medicamentos, pois direciona os recursos públicos para quem ingressou em juízo, em detrimento dos milhares de cidadãos que sequer sabem da existência de tal possibilidade; e (c) parte dos recursos públicos que seriam gastos em benefício de todos é direcionada/desviada para o atendimento de um interesse individual (ZANDONÁ, 2008, p. 14).
Por outro enfoque, Roger Raupp Rios (2009) sustenta que os direitos fundamentais têm dimensões objetivas e subjetivas. No primeiro caso, a norma de direito fundamental agregada ao ordenamento não depende de sua titularidade em uma relação social e jurídica específica. No segundo caso, essa norma identifica quais os direitos e deveres, prestações e encargos que determinados indivíduos ou grupos experimentam subjetivamente em relações intersubjetivas concretas. Assim, o acesso a medicamentos via judiciário diz respeito à dimensão subjetiva, relativa a direitos e deveres dos titulares à saúde, sejam eles indivíduos, sejam agrupamentos.
O referido autor aduz que na concretização das normas de direitos fundamentais é preciso atentar para que:
- eventual provimento judicial concessivo de medicamentos acabe, involuntariamente, prejudicando a saúde do cidadão cujo direito se quer proteger, em contrariedade completa com o princípio bioético da beneficiência, cujo conteúdo informa o direito à saúde;
- eventual concessão não cause danos e prejuízos relevantes para o funcionamento do serviço público de saúde, o que pode vir em detrimento do direito à saúde de outros cidadãos;
- não haja prevalência desproporcional do direito à saúde de um indivíduo sobre os princípios constitucionais da competência orçamentária do legislador e das atribuições administrativas do Poder Executivo, em contrariedade ao princípio da concordância prática na concorrência de direitos fundamentais;
- seja possível a universalização do conteúdo do provimento judicial eventualmente concessivo da medicação pleiteada, em atenção ao princípio constitucional da universalidade, que informa o direito à saúde na Constituição;
- o impacto financeiro da prestação requerida não seja de tal monta que implique ônus inviável de atendimento, dada a programação e a execução financeira do ente demandado.
O fornecimento de medicamentos não previstos pelo SUS por força de decisão judicial é hipótese de realização da eficácia direta do direito fundamental à saúde e à vida.
Dessa forma, ao Poder Judiciário cabe proporcionar a aplicação direta e imediata do direito fundamental à saúde, garantindo a todo cidadão o exercício do direito subjetivo de exigir da Administração o cumprimento dos deveres previsto na Constituição.
Em razão de sua missão constitucional de interprete e guardião da Constituição, não se pode falar em intervenção indevida do Poder Judiciário na atividade do Poder Executivo e Legislativo, uma vez que não se vislumbra a substituição do Estado-administração pelo judiciário, face a consagração da teoria da separação dos poderes e dos freios e contrapesos delineados no Texto Constitucional.
O Ministério da Saúde publica uma lista dos medicamentos essenciais para tratar as doenças mais comuns da população e que serão fornecidos amplamente pelo Sistema Único de Saúde (RENAME).
Embora seja vasta a relação de medicamentos incluídos na RENAME, diversos outros de eficácia comprovada pela vasta literatura médica internacional e em uso há mais de 10 anos na Europa e Estados Unidos ainda não foram incluídos nas relações de fornecimento.
Muitos desses medicamentos são considerados um grande avanço no tratamento de doenças quando comparados aos medicamentos até então utilizados, elevando significativamente os resultados de cura ou ainda de diminuição dos efeitos da doença. Em outras situações como única alternativa para tratamento, posto que todas as outras já fornecidas pelo Sistema Único de Saúde foram utilizadas e a doença persistiu.
É razoável que quem recebe o diagnóstico e a informação por parte de seus médicos de que há uma possibilidade de tratamento mais eficaz irá pretender sempre a que lhe garanta maiores chances de cura, em detrimento do tratamento amplamente fornecido, de resultados limitados ou ainda que acarrete muitos efeitos colaterais.
Todavia, o Sistema Único de Saúde nem sempre acompanha a evolução das pesquisas farmacêuticas. O desenvolvimento de novos fármacos tem se mostrado muito superior à recepção de tais avanços pelo referido Sistema para ampliação a toda a rede pública de saúde.
Oportuno se torna dizer que a inclusão de medicamentos novos nas listas de fornecimento do SUS deve excluir os tratamentos experimentais ou os alternativos, em privilégio dos medicamentos de eficácia comprovada, de menor custo. Da mesma forma, deve-se optar por medicamentos disponíveis no Brasil para uso e comercialização, em detrimento de medicamentos ou tratamentos disponíveis somente no plano internacional.
Essa relativa lentidão no processo de aprovação e inclusão de novos medicamentos tem desencadeado inúmeras ações judiciais para obtenção de drogas de eficácia comprovada, mas ainda não incluídos pelo Ministério da Saúde nas relações de fornecimento.
A apreciação judicial das demandas materiais em face do Estado constitui esperança àqueles que têm como única alternativa para permanecerem vivos um tratamento com medicamentos ainda não aprovados pelo referido órgão, de eficácia comprovada, porém inviável pelo alto custo.
Por força do mandamento constitucional de garantia do Direito à saúde, o Estado tem por dever de fornecer o medicamento postulado a todos os que necessitarem e não puderem por recursos próprios arcar com os altos custos do tratamento pretendido.
Dessa maneira, a ordem constitucional desloca a competência de fornecimento de medicamento do Poder Executivo para o Poder Judiciário, conferindo efetividade ao texto constitucional para o caso concreto e tornando viável às pessoas desprovidas de recursos financeiros o tratamento com medicamentos de alto custo e que se apresentam como a única possibilidade de manutenção da vida.
Ressalta-se que a busca por prestações positivas junto ao Judiciário representa também um avanço e antídoto à inércia legislativa em relação ao fornecimento de medicamentos, cabendo a este suprir a omissão do legislativo e garantido o direito constitucional pretendido.
CONCLUSÃO
A dignidade da pessoa humana é o fundamento supremo para todo o ordenamento jurídico e para a administração pública.
Assegurar o direito à saúde é uma das formas para alcançar a referida dignidade. Mas somente é possível efetivar esse direito mediante prestações materiais, efetivadas por meio de complementação legislativa e de políticas públicas pelo Estado.
O direito à saúde possui dimensão objetiva, num primeiro momento, apontando a obrigatoriedade de o legislador complementar o direito constitucional posto e, num segundo momento, atuando pelo fornecimento de prestações aos cidadãos.
O direito à saúde não pode ser subjugado à reserva do possível, sob pena de ofensa à Constituição Federal e a outros Princípios constitucionais, como a vedação de retrocesso social, a garantia do mínimo existencial e o direito à vida e à saúde.
A ausência de norma infraconstitucional regulamentadora no que diz respeito aos medicamentos não disponibilizado pelas listas oficiais ou ainda a inércia do Estado na implementação de políticas públicas não retira a força normativa da Constituição.
A omissão estatal autoriza o julgador a promover a fruição dos direitos constitucionalmente previstos, tendo em vista o princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos fundamentais, dentre eles o direito social à saúde.
O Constituinte originário não apenas consagrou os direitos sociais como também estabeleceu o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, deixando ao Poder Judiciário a tarefa de suprir as lacunas não solucionadas pelo Poder Público.
As ações judiciais não impedem que o Estado faça, concomitantemente, a revisão das listas de medicamentos ou ainda promova a inclusão destes nas listas de fornecimento. Da mesma forma, não impedem que o administrador promova a racional distribuição de recursos, preventiva ou concomitantemente.
No Brasil, a reticência por parte dos poderes públicos acerca da inclusão desses medicamentos, sob o fundamento da reserva do possível, obriga os necessitados a recorrerem ao Judiciário como único meio de garantir-lhes a vida e a dignidade.
O direito à saúde é parte integrante do mínimo existencial, razão pela qual deve receber especial proteção do sistema jurídico e do Estado. Cabe, assim, ao Poder Judiciário o dever de atuar positivamente a fim de promover e proteger os bens jurídicos fundamentais de qualquer violação sob pena de subtrair da Constituição Federal a sua força normativa e admitir o retrocesso no Direito Constitucional brasileiro.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FACHINELLO, Jackson Paulo. O direito ao fornecimento de medicamentos não disponibilizados pela Administração Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 abr 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44127/o-direito-ao-fornecimento-de-medicamentos-nao-disponibilizados-pela-administracao-publica. Acesso em: 23 dez 2024.
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