O mundo vivencia os reflexos dos excessos cometidos pós 11 de setembro, na guerra ao terror. As leis de luta ou de combate provenientes de um direito penal de emergência começam a mostrar seus resultados.
O Estado Islâmico, organização Jihadista do Oriente Médio, começou a ter maior visibilidade social quando assassinou cruelmente três jornalistas norte americanos, em janeiro de 2015, em fevereiro, 21 cristãos egípcios, em abril 28 (vinte e oito) cristãos etíopes. Os números das atrocidades e execuções quase diárias não param de crescer. O assassinato de cristãos parecem cruzadas da modernidade. Na África folders são distribuídos prometendo recompensa para quem assassinar cristãos. Essas são as facetas desse “novo” grupo terrorista.
Com o exército paralelo radical, novas formas de articulação e execução de crimes surgem. O método tecnológico com que aliciam seus novos seguidores e divulgam suas ações, contrapõe-se a forma rudimentar com que executam suas vítimas. Mas quem são os algozes? De onde surgiram? Qual a raiz de tanta violência? E o que fazer quando políticas de segurança e ações de inteligência são insuficientes para coibir a ação de desses grupos?
Essa sucinta análise empírica tem por escopo expor brevemente as conseqüências da aplicação atual do Direito Penal do Inimigo e as seqüelas deixadas pela supressão e direitos e uso da brutalidade desmedida contra os eleitos inimigos.
Insta salientar que o estudo jurídico-sociológico das mazelas deixadas pelo direito penal do inimigo moderno não significa aceitar que em prol de uma suposta liberdade religiosa terroristas usem um invólucro religioso para cometer atrocidades contra cristãos ou grupos que ousem pesquisar e divulgar a seu respeito. O Estado Islâmico foi considerado terrorista pela Organização das Nações Unidas (ONU) e como tal deve ser severamente combatido.
As barbáries cometidas revoltam. Porém o dever do operador do direito é controlar a animosidade e fazer uma análise jurídica técnica sobre o ciclo de terror contra terror que o mundo está enfrentando.
Isso porque o direito penal não pode ser entendido como um ramo do direito distante dos fatos que ocorrem no mundo, ao contrário, ele é o termômetro e válvula propulsora do contexto social. Entender as teorias que envolvem o direito de forma dialético, proporciona melhor compreensão da sociedade e articulação no sentido da prevenção de novas barbáries.
O crescimento e fortalecimento do Estado Islâmico Islâmico teve total ligação com o“resgate” da teoria do Direito Penal Bélico (ou do Inimigo)[1] por Günther Jakobs em 1985 e a aplicação prática pós 11 de setembro.
Entenda a origem:
Originários na Al-Qaeda, a organização fora declarada ilegal em 2003, com a queda do governo de Saddam Hussein, propiciando que no cenário interno do Iraque cerca de 250 mil soldados iraquianos ficaram ociosos (com o “fim” da guerra ao terror)[2]. Denúncias reportam marginalização e discriminação econômica e política contra sunitas iraquianos.
Paralelamente, prisioneiros árabes iraquianos[3] na base militar de Guantánamo sofriam tortura extrema[4], ficavam permanentemente incomunicáveis e tinham garantias mínimas afastadas pela mais “legítima” aplicação do direito penal do inimigo que, desde o seu resgate por Jákobs, o mundo já presenciou. O direito penal de terceira velocidade[5] servia como meio para arrancar informações do inimigo à qualquer preço e também como punição. Esses prisioneiros retornaram repletos de ódio.
A mistura explosiva terminou de ser formada quando no ano de 2011 a Al-Qaeda recebeu apoio financeiro para participar da Guerra Civil da Síria e os Estados Unidos retiraram suas tropas do Iraque, deixando o Iraque com um governo tanto repressor quando enfraquecido[6].
A população Iraquiana ficou fragilizada com os abusos sofridos, deixou de confiar no governo atual. Conclusão: Solo fértil para que o grupo radical exerça um braço paralelo de poder. E neste contexto nasce o Estado Islâmico, como dissidência do Al-Qaeda.
Boaventura dos Santos qualifica de Suspensão jurídica ou ajuridicidade a situação mediante a qual o governo enfraquece, a população fica carente e ocorre a privatização das normas que regem potencialmente a conduta social. O Estado Islamico obtém o apoio da população porque ocupo o vácuo deixado pelo governo que os desamparou e discriminou. Utilizam a religião para convencer e apoio financeiro às viúvas e crianças para se solidificar.
A indisponibilidade estrutural dos mecanismos oficiais de ordenação e controle social e a ausência de mecanismos não-oficiais comunitários criaram uma situação que designarei por privatização possessiva do direito. É uma situação susceptível de ocorrer, por exemplo, em sociedades muito jovens constituídas à margem de estatutos organizativos definidos, como é o caso da sociedade de fronteira, ou em sociedades em fase de ruptura (devido a revolução, guerra, etc.) e de desestruturação e reestruturação profundas. Esta situação caracteriza-se pela apropriação individual da criação e aplicação das normas que regem potencialmente a conduta social ... No momento, porém, em que os conflitos surgem, o choque não é meramente entre reivindicações fáticas ou normas jurídicas isoladas, é antes entre duas ordens jurídicas, duas pretensões globais de juridicidade ou ainda entre duas vocações contraditórias (mutuamente exclusivas) de universalização jurídica. Nestas condições, o conflito atinge rapidamente uma intensidade extrema, pois que tende a generalizar-se a todas as relações sociais entre as partes conflitantes, inclusivamente àquelas não envolvidas inicialmente no conflito.[7]
O cenário da guerra ao terror contribuiu para despertar e alimentar um gigante que estava quase morto.
O Estado Islâmico possui peculiaridades até então desconhecidas. Ele é fluído, articulado, tem alto poder financeiro, entende de tecnologia e quando agem são vorazes, chamam atenção pelas barbáries praticadas contra os prisioneiros.
Obviamente que, ante a peculiaridade do caso, é necessário a antecipação do Iter criminis em determinadas circunstâncias de tempo, modo, local como meio para prevenir o aliciamento de jovens iludidos com os supostos ideais pregados, ganhos econômicos prometidos ou que vêem na milícia um meio de extravasar a própria violência. Principalmente porque tais ações evitam que pessoas inocentes sejam assassinadas nas mãos de algozes, simplesmente por proferirem sua fé religiosa. Ante a peculiaridade do caso não soa absurdo antecipar atos executórios quando se combate um grupo terrorista pulverizado e sem face, porém uma ação no sentido de antever a ação terrorista e punir crimes formais e de mera conduta não significa a total supressão de outras garantias, à exemplo da tortura extrema e da incomunicabilidade permanente. As feridas deixadas pós 11 de setembro ainda estão abertas e exagerar na dose pode corroborar para o fortalecimento do grupo radical terrorista, proporcionando a adesão de outros grupos ao Estado Islâmico.
A intervenção militar e o uso da brutalidade desmedida, à exemplo de Guantánamo, servem ao fortalecimento do direito penal simbólico, aumento do índice de aliciamento de novos integrantes, sentimento de discriminação da população e conseqüente apoio aos carrascos.
Criar inimigos contribui para xenofobia e fortalecimento da sensação coletiva de necessidade de limpeza étnica, similares aos utilizados pelo direito penal bélico para justificar os genocídios cometido durante o nazismo.
Tendo o momento político internacional atual como premissa, a medida de proporcionalidade é o divisor de águas entre gerar novos inimigos e prevenir e punir as ações terroristas.
É preciso repensar o direito penal como meio de solução para os transtornos sociais mais severos, a observação empírica mostra que a fórmula Inimigo do Estado está gerando um resultado catastrófico.
Ainda sem levar em conta o fato posto, uma intervenção militar externa nos moldes da que ocorreu no Iraque pós 11 de setembro pode gerar a união de grupos extremistas do Oriente Médio que ainda são rivais contra um inimigo comum.
Conclusão
Discutimos neste texto muito mais indagativo do que conclusivo, algumas facetas do direito penal bélico no cenário atual.
No caso do Estado Islâmico, por exemplo, raramente há um rosto ou conduta atribuída à pessoa individualmente caracterizada. Nas ações articuladas pelo grupo, portanto, requer uma certa atuação preventiva, antevisão da prática do crime e repressão a determinados atos preparatórios e tipos formais e de mera conduta, não só para impedir novas atrocidades contra seres humanos mas frear o alto índice de alistamento de novos integrantes, iludidos com o grupo terrorista.
O jornalista do The Guardian Ghaith Abdul-Ahad, assevera que
Uma solução militar apenas tornará a situação pior, criando cada vez mais grupos armados para combater o Estado Islâmico ... sem redistribuição de riqueza, solução social, solução que mostre aos sunitas do Iraque que são parte desta entidade, gostando ou não, (…) continuaremos neste ciclo.”[8]
Aplicar o direito penal e não o direito penal do inimigo, com política de desmantelamento e prisão dos culpados, em conjunto com ações para a inclusão social e personificação da população árabe (que se encontra estigmatizada e excluída), é o caminho mais adequado para o enfraquecimento e derrota do Estado Islâmico. Punir sem despersonificar.
Ações de custódia preventiva, prisões com respeito ao direito à alimentação, saúde, sem incomunicabilidade permanente. Interrogatório utilizando métodos inteligentes de busca da verdade real, sem atos extremos de tortura. O indivíduo não fica completamente sem personalidade, mas tem seus direitos da personalidade restringidos e a sociedade não sucumbe â maldade alheia, não se torna o algoz, nem cria seus próprios monstros.
A história ensina, os fatos atuais corroboram: violência só gera violência.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Geral. Salvador: Jus Podivm, 2013.
Greco, Rogerio. Direito Penal do Inimigo. http://www.rogeriogreco.com.br/?p=1029 Acesso em 15 de abril de 2015.
Jakobs, Günter. Direito Penal do Inimido: Noções e críticas. Ponto Alegre. Livraria do Advogado, 2007.
Jeniêr, Priscila. Direito Penal do Inimigo. http://jus.com.br/artigos/38395/o-direito-penal-do-inimigo Acesso em 22 de abril de 2015.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Notas sobre a história jurídico social de Pasárgada. In:SOUTO, Cláudio e FALCÃO, Joaquim(Orgs.); Sociologia e Direito: textos básicos para a disciplina da sociologia jurídica. São Paulo: Pioneira, 1999.
Zaffaroni, Raúl. El Derecho Penal del enemigo. Dykinson, 2006.
[1] “É a vertente do direito penal máximo, que tem como missão o combate de tipos determinados de criminalidade através adoção de políticas públicas voltadas para a de antevisão do crime, supressão de garantias e endurecimento de penas e leis”. Saiba mais em: http://jus.com.br/artigos/38395/o-direito-penal-do-inimigo
[2] Foram despedidos por serem afiliados do Partido Baath.
[3] Um dos atuais líderes do Estado Islâmico, Abu-Bakr AL-Baghdadi, fora prisioneiro dos EUA em Guantânamo.
[4] Segundo relatório do Comitê de inteligência do Senado sobre a da CIA (Agência Central de Inteligência) publicado em 2014, a tortura em nível extremo foi um dos métodos utilizado para dar “eficácia” aos aprisionamentos.
[5] “Segundo a doutrina, Direito penal de primeira velocidade se caracteriza pelo cárcere com as garantias plenamente respeitadas, da forma como ocorre no direito penal tradicional, atendidos os princípios constitucionais, penais e processuais. O Direito penal de segunda velocidade, por sua vez, tem como característica a adoção de penas alternativas (penas restritivas de direitos e penas pecuniárias), com a sucessiva flexibilização de garantias (a exemplo da transação penal da Lei n. 9099/95[5]). Por fim, direito penal de terceira velocidade – integrado pelo direito penal bélico, que possui traços de modalidade híbrida: mantém o cárcere presente na primeira velocidade, porém suprime as garantias da segunda velocidade. Em outros termos, o direito penal do inimigo condensa a severidade da primeira e segunda velocidade em uma terceira categoria”. Saiba mais em: http://jus.com.br/artigos/38395/o-direito-penal-do-inimigo
[7] SANTOS, Boaventura de Sousa. Notas sobre a história jurídico social de Pasárgada. São Paulo: 1999.
[8] Ghaith Abdul-Ahad é jornalista do The Guardian e Vencedor do prêmio Orwell de jornalismo por sua cobertura da guerra da Síria passou o verão com milícias perto de Baghdad, afirma que uma solução militar apenas tornará a situação pior, criando cada vez mais grupos armados para combater o Estado Islâmico.
Advogada, Especialista em Direito e Jurisdição pela Escola da Magistratura do Espírito Santo, em Direito Público pela Universidade do Sul de Sana Cataria - UNISUL.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VELOSO, Priscila Jenier. O direito penal do inimigo ativa bombas e cria monstros Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 maio 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44276/o-direito-penal-do-inimigo-ativa-bombas-e-cria-monstros. Acesso em: 23 dez 2024.
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