RESUMO: O presente trabalho tem como escopo analisar as iniciativas probatórias do juiz a luz dos princípios constitucionais consagrados pela Constituição Federal de 1988. Será realizada uma análise histórica do processo, dos princípios constitucionais aplicáveis ao instituto, do conceito de princípio jurídico e, ao final, será feita uma sugestão quanto a ponderação de princípios na iniciativa probatória do juiz.
PALAVRAS-CHAVE: Prova – Iniciativa - Juiz - Princípio - Processo
ABSTRACT: This work is scoped to analyze evidentiary light of constitutional principles enshrined in the Federal Constitution of 1988 initiatives judge. A historical analysis of the process of constitutional principles applicable to the Office of the concept of legal principle and will be held at the end, a suggestion as to the probative weight of principles initiative of the judge will be taken.
KEY WORDS: Proof – Initiative – Judge – Principle - Process
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Evolução do processo: breve histórico. 3. Natureza jurídica do direito à prova. 3.1. Direito Estrangeiro. 3.2 Direito nacional. 3.2.1 Princípio do dispositivo. 3.2.2. Princípio da Imparcialidade. 3.2.3 Contraditório e Motivação. 3.2.4 Igualdade Processual. 4. A busca da verdade no processo. 5. Ponderação e Lei de Colizão. 6. Ônus da prova. 7. Natureza jurídica da relação material. 8. A interpretação do artigo 130 do Código de Processo Civil a luz dos princípios constitucionais que regulamentam a matéria. 9. Conclusão. 10. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal garante as partes o direito a produção probatória, direito esse que decorre da interpretação dos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa. Inquestionável que a parte interessada deve ter garantido pelo magistrado o direito de produzir as provas que entende necessárias a comprovação dos fatos controvertidos existentes no processo.
Ademais, o princípio norteador do Direito Processual é o do livre convencimento motivado, previsto no artigo 131 do Código de Processo Civil, segundo o qual o juiz apreciará livremente os fatos e circunstancias existentes no processo, ainda que não alegados pelas partes, devendo indicar na sentença os motivos que o levaram a referida conclusão.
Percebe-se que a motivação é condição para o exercício do livre convencimento pelo juiz, visto ser uma garantia constitucional do jurisdicionado. Sobre o tema leciona Nelson Nery Junior[1]:
Fundamentar significa o magistrado dar as razões, de fato e de direito, que o convenceram a decidir a questão daquela maneira. A fundamentação tem implicação substancial e não meramente formal, donde é lícito concluir que o juiz deve analisar as questões postas a seu julgamento, exteriorizando a base fundamental de sua decisão. Não se consideram “substancialmente” fundamentadas as decisões que afirmam que “segundo os documentos e testemunhas ouvidas no processo, o autor tem razão, motivo por que julgou procedente o pedido. Essa decisão é nula porque lhe falta fundamentação.
Ocorre que a legislação processual também admite a iniciativa probatória do juiz, haja vista o disposto no artigo 130 do Código de Processo Civil, “in verbis”:
Art. 130. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias.
Assim, o presente trabalho visa analisar qual a amplitude do supracitado dispositivo, diante dos princípios constitucionais que regem o direito processual.
2. EVOLUÇÃO DO PROCESSO: BREVE HISTÓRICO
No direito antigo vigoravam normas ligadas a uma visão privatista do processo que não aceitavam a iniciativa probatória do juiz, que deveria apenas assistir ao embate entre as partes. Por exemplo, nas Ordenações o magistrado deveria julgar apenas com base naquilo que foi provado pelas partes, independente de sua convicção pessoal. Cita-se um ditado da idade média, justificando o posicionamento adotado a época, no sentido de que “quem tiver um juiz acusador precisa de Deus como defensor, mas às vezes isso não é suficiente”.
A partir do Século XIX é que começou a ser feita a distinção entre direito material e direito processual, esse último admitido como ciência autônoma e com princípios próprios. Logo, o processo adquiriu uma visão publicista, ou seja, passou a entender-se o processo como interesse do Estado, com o escopo de pacificação social. Assim, além do interesse privado da parte em obter êxito na demanda, tem-se o interesse público em promover a pacificação social.
Nesse sentido é a lição de Cândido Rangel Dinamarco[2]:
“Ser de direito público significa que as normas processuais não disciplinam negócios ou interesses conflitantes entre o Estado e as partes, mas o modo como o poder é exercido. O Estado-juiz não persegue concretos interesses seus em confronto com os dos litigantes nem se põe no mesmo plano que eles no processo. Exerce imperativamente o poder, tendo por contraposição o estado de sujeição dos litigantes (sujeição é a impossibilidade de impedir o exercício do poder de outrem). Falando de poder e de sujeição ao seu exercício, estamos falando de direito público”.
Destarte, o direito de ação se separou do direito material, sendo certo que o processo passou a ser visto como instrumento do direito material. Com essa nova visão do processo, passou-se a admitir em maior ou menor escala a iniciativa probatória pelo Magistrado.
3. NATUREZA JURÍDICA DO DIREITO À PROVA
No âmbito civil a matéria relacionada a prova é trazida pelo Código de Processo Civil que traz disposições referentes ao ônus e aos meios de prova. No âmbito do processo trabalhista há previsão na CLT referente ao ônus probatório. Todavia, o conteúdo dessas legislações infraconstitucionais devem amoldar-se a nova ordem trazida pela Constituição Federal de 1988.
A Constituição de 1.988 trouxe em seu artigo 5 um rol de direitos e garantias fundamentais, dentre os quais pode-se destacar, por serem importantes ao presente estudo, o devido processo legal, contraditório e ampla defesa, bem como o direito de ação. Por devido processo legal entende-se ser a “possibilidade efetiva de a parte ter acesso à justiça, deduzindo pretensão e defendendo-se de modo mais amplo possível”[3], enquanto que o contraditório está relacionado ao direito da parte de ser cientificada dos atos processuais e deles participar, com o intuito de influenciar o convencimento do magistrado.
Percebe-se que o devido processo legal também está relacionado ao valor justiça.
Assim, as disposições referentes às provas devem ser analisadas a luz dos dispositivos constitucionais, pois para que haja efetivação dos preceitos constitucionais é fundamental garantir as partes o direito a efetiva produção probatória.
3.1 DIREITO ESTRANGEIRO
As legislações estrangeiras variam quanto à conferência ou não de poderes instrutórios ao juiz. Como exemplo de ordenamento jurídico que não conferem poder instrutório ao magistrado (em que pesem haja entendimentos em sentido contrário) temos o direito espanhol, no qual a Ley de Enjuiciamiento Civil, datada de 2000, trouxe ainda mais restrições aos parcos poderes instrutórios que o Magistrado detinha. Por esse motivo, o direito espanhol é trazido como exemplo com relação a ausência de poderes instrutórios, não se esquecendo, todavia, do posicionamento mais ampliativo que o admite naquele sistema.
Por sua vez, como exemplos de países que admitem poderes instrutórios ao Magistrado com ressalvas pode-se citar o direito alemão, no qual a restrição a iniciativa do juiz refere-se apenas a prova testemunhal, bem como o direito sueco traz algumas limitações com relação tanto a prova testemunhal quanto a documental.
Outrossim, há aqueles países que admitem de modo amplo a iniciativa probatória oficial como, por exemplo, o Chile, o direito do trabalho italiano (no direito comum a questão é controvertida, havendo que admita a não excepcionalidade da intervenção e quem, a contrário senso, não a admita dessa forma tão ampla). O Código Austríaco também permite a investigação ampla pelo Magistrado.
3.2 DIREITO NACIONAL
No Direito nacional a questão sobre a admissibilidade restrita ou irrestrita dos poderes instrutórios do juiz gera controvérsias, sendo imperiosa, para resolução da questão, a análise dos princípios que regem o Direito Processual, dentre eles o princípio do dispositivo, da imparcialidade, contraditório e da igualdade processual. Todavia, antes de adentrar nos princípios expressamente, importante tecer algumas considerações sobre o conceito de princípio.
O conceito de princípio jurídico evoluiu com o passar do tempo e é definido de formas diferentes pela Ciência do Direito. Inicialmente estava relacionado a própria origem semântica da palavra, ou seja, início, começo. Em um segundo momento passou a ser visto com conteúdo normativo, na medida em que seriam vetores de interpretação das normas jurídicas do sistema, pois fundamentais a estrutura do sistema. Por fim, entendeu-se que princípios detêm a mesma estrutura das normas jurídicas[4]. Os princípios positivam um valor na ordem jurídica, que deve ser concretizado com a máxima eficácia possível, estabelecendo uma finalidade a ser atingida pelo ordenamento sem, contudo, fixar o meio para atingimento do objetivo.
Todavia, importante salientar que a terceira fase não superou a segunda, sendo certo que atualmente os princípios são concebidos tanto como vetores de interpretação, por trazerem mandamentos nucleares do sistema, quanto mandamentos de otimização.
Haja vista que os princípios positivam valores que orientam o sistema jurídico é comum que esses valores entrem frequentemente em conflito, fazendo com que o interprete analisando a situação jurídica concreta, aplique o princípio de maior peso, concretizando assim a vontade do constituinte.
3.2.1 PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
Há várias concepções sobre o Princípio do Dispositivo.
Para Rui Portanova[5] o princípio do dispositivo não se confunde com o princípio do acesso a justiça e da demanda. O princípio do dispositivo fica circunscrito a possibilidade de que detêm as partes de alegar fatos e apresentar pedidos, ou seja, referido princípio abarca apenas a liberdade conferida as partes de formular alegações e pedidos no processo.
Para José Roberto dos Santos Bedaque considera-se como princípio do dispositivo apenas a relação de direito material estabelecida pelas partes e não a relação de direito processual.
Portanto, tratando-se a relação de direito material disponível para as partes elas podem dessa livremente dispor, seja mediante renúncia, desistência ou transação, por exemplo, não havendo qualquer possibilidade de intervenção oficial nesse aspecto. Ademais, esse princípio garante as partes o direito de fixar os limites de investigação do Magistrado, visto que somente será objeto de exame aquilo que foi aduzido pelas partes em sua causa de pedir.
O referido autor também argumenta que não se confunde a disponibilidade ou indisponibilidade do direito com a iniciativa referente a relação jurídica processual, pois mesmo se tratando de direito indisponíveis não detém o magistrado poderes para dar início a relação jurídica processual.
Segundo o autor, o que a maioria de doutrina dizia sobre o princípio do dispositivo, ou seja, que a manutenção do processo deveria ficar sob o domínio das partes é rechaçada pela moderna ciência processual, pois o argumento de que o processo deve ficar na mão das partes prestigia a concepção privatista do processo, que não se coaduna com o atual estágio dessa ciência.
Isso porque é indubitável que o processo é regido com base em princípios de direito público. O pedido da parte atende a um interesse tipicamente privado, no entanto, o procedimento é regulamentado pelo Estado, que tem interesse na solução do conflito, com base nos princípios de direito público e o escopo do processo.
Destarte, sendo o processo público a busca da verdade e os escopos sociais do processo devem ser observados pelo magistrado que na visão do autor tem amplos poderes para determinar de ofício a produção probatória, desde que o faça com base na causa de pedir e pedido delimitado pelas partes na relação jurídica de direito material, não podendo interferir na vontade das partes quanto a eventual disposição desse direito.
3.2.2 PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE
Por imparcialidade entende-se que o juiz não deve ter interesse pessoal em relação às partes em litígio, nem retirar proveito econômico do mesmo. A imparcialidade é condição “sine quo non” para atuação judicial, vez que a ideia de retirar das partes o direito a justiça privada foi concebida no sentido de que um terceiro imparcial analisaria e prolataria uma decisão sobre os fatos, despido de qualquer interesse pessoal no assunto.
Encontra-se menções a imparcialidade no Código de Hammurabi e no de Manu. Ademais, os próprios gregos quando sorteavam juízes o faziam porque acreditavam na intervenção dos deuses no referido procedimento. Todavia, não se confundem os conceitos de imparcialidade com neutralidade, que é concebida como um dado subjetivo que relaciona o juiz que está inserido em um contexto social com a sua visão geral de mundo[6].
Fazendo apontamento sobre a neutralidade, importante citar Dinamarco:
“o processualista moderno sabe também que imparcialidade não se confunde com neutralidade axiológica, porque o juiz é membro da sociedade em que vive e participa do seu acervo cultural e problemas que a envolvem, advindo daí escolhas, que, através dele, a própria sociedade vem a fazer no processo. Agindo como canal de comunicação entre o universo axiológico da sociedade e o caso concreto, o juiz não infringe o dever de imparcialidade”[7].
Pelo princípio da imparcialidade entende-se que o Magistrado deve conduzir o processo de modo a não prejudicar ou beneficiar qualquer das partes. A imparcialidade está relacionada às pessoas e fatos, mas não com relação aos valores e caminhos utilizados para a realização da justiça.
Todavia, parte da doutrina afirma que a concessão de poderes instrutórios ao juiz poderia afetar a sua imparcialidade, influenciando, por conseguinte, o seu julgamento da lide.
Arruda Alvim[8] entende o fato de o processo ter um objetivo público não garante ao magistrado poderes ilimitados para alcançar a sua finalidade. Para o referido autor o princípio do dispositivo assegura a imparcialidade do magistrado, sendo certo que para a atuação judicial na iniciativa probatória deve ser subsidiaria, apenas nas hipóteses em que ocorrer nas situações em que não se opere o ônus da prova e desde que ocorra um fato incerto, sendo certo que essa incerteza emergiu após a produção da prova pela parte.
Percebe-se assim que o referido autor não admite que o juiz substitua a parte negligente na produção de prova, vez que essa seria admitida apenas se após a instrução processual ainda restasse dúvida ao magistrado, dúvida essa que poderia ser dirimida pela produção de nova prova.
Ademais, ressalta o autor que o direito a produção das provas é das partes que tem interesse processual na confirmação de sua alegação, sendo as regras de ônus da prova importantes pois estimulam as partes a se movimentarem no sentido de requerer e produzir a prova, em razão do risco de um provimento jurisdicional desfavorável.
A busca da verdade é um dos objetivos do processo, entretanto, não é o único, pois a atuação do magistrado também deve observar os princípios da imparcialidade e do dispositivo.
Michele Taruffo rebate o argumento da parcialidade do Magistrado quanto a iniciativa probatória [9] afirmando que o mesmo é mal colocado, pois a iniciativa probatória está ligada à técnica processual e não ao princípio do dispositivo. Outrossim, aduz que o fato de acreditar-se que o juiz se que aquele que busca informações sobre um fato perde, de imediato, a noção ou o parâmetro para julgar e valorar se aquele fato aconteceu ou não no mundo do ser, o que seria por demais incongruente.
O referido autor traz argumentos históricos que reforçam o seu posicionamento no sentido de que a iniciativa probatória não afeta a imparcialidade quando traz a baila o exemplo do direito francês no qual a generalização da iniciativa probatória oficial foi compatibilizada com o princípio do dispositivo, não havendo qualquer mácula a imparcialidade.
Por sua vez, José Roberto Bedaque também relaciona argumentos no sentido de que a iniciativa probatória oficial não afeta a imparcialidade. Pode-se citar, por exemplo, que a doutrina tradicional aceita a concessão de poderes instrutórios para direitos indisponíveis. Logo, questiona o autor se seria possível um juiz parcial para julgar direitos indisponíveis.
Ademais, afirma que determinar a realização de uma prova não significa antever o seu resultado, ou seja, o fato pode ser provado ou não. Sob outro ângulo de visão, poderia se admitir que se o juiz não determinasse a produção da prova estaria, ainda sim, beneficiando a outra parte.
3.2.3 CONTRADITÓRIO E MOTIVAÇÃO
Pelo princípio do contraditório entende-se “de um lado, a necessidade de dar conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, e de outro a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhes sejam desfavoráveis[10]”.
O referido princípio está relacionado com os princípios do direito de ação e da isonomia entre as partes, uma vez que quando o constituinte garante o direito do contraditório para os litigantes demonstra que tanto o direito de ação quanto ao direito de defesa são formas de expressão do princípio do contraditório.
O direito à prova também é manifestação contraditório, vez que as partes têm o direito de fazer prova de suas alegações, bem como de produzir contraprova das alegações trazidas ao processo pela parte contrária. Na percepção de Nelson Nery o destinatário da prova é o processo e não o juiz, motivo pelo qual esse não poderia indeferir o pedido de uma prova alegando que já estaria convencido do fato sobre o qual a prova recairia[11].
Por sua vez, motivar as decisões significa que o juiz deve expor as razões de fato e de direito que o convenceram a proferir a decisão no sentido que foi prolatada. A fundamentação deve ser substancial, expondo, de modo coerente, o raciocínio utilizado para chegar a conclusão, bem como o fundamento legal que amparou a referida conclusão.
Conforme leciona ChaimPerelman com a efetiva motivação da sentença há substituição de uma simples afirmação pela exposição de um raciocínio, bem como a substituição domero exercício de uma autoridade pela tentativa de persuasão que se dirige às partes, Tribunais e opinião pública. Assim, a motivação traz um equilíbrio entre o direito e a moral, uma função que a seu ver é absolutamente essencial[12].
Ademais, não se trata apenas de uma justificação racional e objetiva da decisão que será anunciada. Além do discurso retórico/persuasivo, a decisão deve demonstrar a veracidade dos fatos de acordo com as provas constantes no processo, explicando as razões que levaram o julgador a chegar a conclusão por ele preconizada[13].
Ressalta-se que tanto o princípio do contraditório, quanto o princípio da motivação decorrem do Estado Democrático de Direito.
O juiz como detentor de um poder deve prestar contas de sua atividade e o faz através da motivação. A motivação visa convencer as partes, a opinião pública e também as instâncias superiores, que exercem o controle das decisões[14].
Destarte, mesmo tendo o juiz determinado a produção de uma determinada prova, deve conferir a parte o direito a expressa manifestação sobre a prova produzida bem como deve demonstrar na sentença, de modo fundamentado, as razões que o levaram a proferir a decisão naquele sentido.
Indaga-se aqui qual seria a correlação entre os princípios do contraditório e motivação com os poderes instrutórios do juiz. Nesse aspecto, para quem defende a possibilidade de iniciativa probatória pelo magistrado os referidos princípios seriam “garantias” de que a imparcialidade ou isonomia não foram violados, na medida em que o juiz deve garantir às partes direito de manifestação sobre a prova que ele determinar, bem como deve justificar os motivos que o levaram a essa conclusão, conferindo assim um certo controle sobre sua decisão.
3.2.4 IGUALDADE PROCESSUAL
A Constituição Federal, sem seu artigo 5, I estabelece o princípio da isonomia como um direito fundamental, cujo teor se aplica as relações processuais. Nesse sentido entende-se recepcionado o disposto no artigo 125, I, do Código de Processo Civil que estabelece competir ao juiz assegurar às partes igualdade de tratamento.
O princípio da igualdade se caracteriza pelo tratamento igual das partes, na medida de sua igualdade e, a contrário sensu, de seu tratamento desigual na medida de suas desigualdades.
Assim, como o princípio da isonomia também se aplica ao processo e dentro do processo o referido princípio é visto sob a perspectiva da igualdade de partes, compete ao legislador e ao juiz atuarem para que essa igualdade seja plenamente realizada[15]. Logo, não basta a atuação do magistrado no sentido de agir igualmente, vez que com a sua conduta deve neutralizar as desigualdades porventura existentes. As desigualdades podem decorrer de fatores externos ao processo, tais como pobreza, desinformação, carências em geral.
Ocorre que a plena disponibilidade da prova, em algumas situações, pode não assegurar a igualdade real buscada pela moderna ciência processual. Logo, para compensar essa desigualdade há quem defenda ser preciso reforçar o poder instrutório do juiz.
José Roberto dos Santos Bedaque traz a afirmação de que o processo não é um jogo. A atividade probatória deve buscar se aproximar da realidade dos fatos. Deve ser orientada pelo principal objetivo do processo, qual seja, alcançar a pacificação social. O resultado do processo deve ser compatível com a vontade do direito material.
Sob essa perspectiva, poderia se questionar se a participação do juiz no processo não violaria o princípio do contraditório. No entanto, não há essa situação, pois a iniciativa oficial, por ampliar os elementos de convicção, possibilita as partes melhores condições de influir no julgamento. Garante a efetiva paridade de armas.
Sobre o tema assevera Barbosa Moreira[16]:
“o mais valioso instrumento “corretivo” para o juiz, consiste sem dúvida na possibilidade de adotar exofficio iniciativas relacionadas com a instrução do feito. Os poderes instrutórios, a bem dizer, devem reputar-se inerentes à função do órgão judicial, que, ao exercê-los, não se substitui às partes, como leva a supor uma visão distorcida do fenômeno. Mas é inquestionável que o uso hábil e diligente de tais poderes, na medida em que logre iluminar aspectos da situação fática, até então deixados na sombra por deficiência da atuação deste ou daquele litigante, contribui, do ponto de vista prático, para suprir inferioridades ligadas à carência de recursos e de informações, ou a dificuldades de obter o patrocínio de advogados mais capazes e experientes. Ressalta, com isso, a importância social do ponto”.
Por sua vez, assevera Dinamarco:
“O processo civil moderno repudia a ideia do juiz Pilatos, que em face de uma instrução mal feita, resigna-se a fazer injustiça atribuindo a falha aos litigantes. O art. 399 do Código de Processo Civil dá expressamente ao juiz esse poder-dever de suprir as deficiências probatórias. (...) No artigo 342 estabelece-se que o juiz chame as partes para serem interrogadas, a requerimento do adversário ou de ofício. Ainda existem vozes doutrinárias contra essa maneira de vez o juiz no processo, mas o compromisso de todo o juiz deve ter com o valor do justo não pode permitir solução diferente”
Todavia, deve-se ressaltar que a doutrina não é uníssona sobre o assunto, havendo quem sustente que a interferência do magistrado na iniciativa da prova poderia causar uma desigualdade entre as partes, visto que estaria beneficiando uma parte em detrimento da outra que, inerte, não requereu a produção da prova necessária a comprovação de seu direito.
5. A BUSCA DA VERDADE NO PROCESSO
Antes de adentrar no tema a busca da verdade, se faz importante tecer algumas considerações sobre o que a atual doutrina entende por verdade. Pela doutrina tradicional a verdade pode ser classificada como verdade material ou verdade formal. Por verdade material entende-se uma idêntica correspondência dos fatos existentes no processo com a realidade do mundo do ser, ao passo que por verdade formal é aquela decorrente da verdade que as partes “permitiram” ser conhecida, vez que o juiz se limita a analisar as provas trazidas pelas partes. O juiz se contenta com as provas trazidas pelas partes no processo, em razão do caráter disponível do direito que está se discutindo.
A atual doutrina já não faz essa distinção entre verdade formal e verdade material, pois, a uma, a verdade “material” é algo quase que inatingível, a duas, o caráter publicístico da ciência processual não permite que o juiz se conforme com as provas trazidas pelas partes, pois o escopo do processo é a pacificação social.
Com relação ao conceito de verdade, podemos citar as lições de MARINONI:
“E voltando os olhos para o estágio atual das demais ciências, a conclusão a que se chega é uma só: a noção de verdade hoje é algo meramente utópico e ideal (enquanto absoluto). Uma afirmação “polêmica”, como essa, exige certamente maiores esclarecimentos. Em essência o que se pretende dizer, na realidade, é que seja no processo, seja em outros campos científicos, jamais se poderá afirmar, com segurança absoluta, que o produto encontrado efetivamente corresponde a verdade. Realmente, a essência da verdade é intangível (ou ao menos o é a certeza da aquisição desta)[17]”
A busca da verdade, se é que se possa dizer ser possível trazê-la para o processo, é uma consequência lógica da visão publicística do processo, vez que embora a relação de direito material estabelecida entre as partes seja disponível, a tutela jurisdicional prestada pelo Estado por intermédio do processo é pública, sujeita-se a regras específicas que tem como um de seus escopos a pacificação social. O Estado tem interesse que a solução do processo seja no sentido de dar aquele que tem direito, o que “de fato” tem direito.
O processo não pode ser considerado um fim em si mesmo, devendo-se acautelar para que um formalismo exacerbado. Nesse sentido são as lições do professor Bedaque[18]:
“Não deve o processo ser escravo da forma. Esta tem sua importância dimensionada pelos objetivos que a determinam. A estrita obediência à técnica elaborada pelo legislador processual e às regras formais do processo é importante para garantir igualdade de tratamento aos sujeitos parciais, assegurando-lhes liberdade de intervir sempre que necessário. Tudo para possibilitar que o instrumento atinja o seu escopo final com a justiça.”
Por conseguinte, dentro do processo deve o juiz atuar de modo a buscar a maior semelhança possível entre os fatos aduzidos pelas partes no processo e os que efetivamente ocorreram no mundo do ser.
Todavia, questiona-se se esta busca pela verdade caracterizada pela iniciativa probatória do juiz sujeita o magistrado a limites e se, positivo, quais seriam esses limites.
Isso porque, como já dito anteriormente os princípios positivam valores a serem respeitados pelo sistema. Contudo, os princípios não se aplicam na regra do “tudo ou nada”, ou seja, ou existe ou não existe a situação jurídica e se existente deve-se obrigatoriamente aplicar o consequente. Não existem princípios absolutos, sendo certo que para análise da preponderância do princípio deve ser analisado o peso dos mesmos no caso concreto.
6. PONDERAÇÃO E A LEI DE COLIZÃO
Tendo em vista que os princípios elencados nos itens anteriores expressam valores consagrados pelo constituinte, bem como considerando que os valores não são absolutos, imperiosa a análise dos critérios de sopesamento dos princípios como método adequado para solução da questão sobre a iniciativa probatória do juiz e os seus limites no Direito Processual Brasileiro.
Sobre a ponderação de princípios imperiosa as lições de Robert Alexy[19] que trouxe para a ciência jurídica um método para aplicação do referido sopesamento.
Para o autor princípios são normas que ordenam que algo que seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. São mandamentos de otimização, que podem ser satisfeitos em diversos graus. Ocorrendo colisão entre eles no caso concreto, um deles terá que ceder, prevalecendo sobre o outro princípio. Todavia, isso não acarretará a invalidade do mesmo, bem como não significa que sempre esse princípio será prevalente sobre o outro, pois sempre será necessária a análise da situação concreta para o sopesamento do princípio.
Podem ocorrer conflitos de princípios constitucionais, situação na qual pode-se dizer que há uma relação de tensão entre princípios constitucionais, chamada pelo autor de colisão. Referido conflito também deve ser resolvido por meio de um sopesamento entre os princípios conflitantes.
Percebe-se que o escopo da análise da ponderação será determinar qual dos princípios terá prevalência na análise do caso concreto, posto que ambos devem ser aplicados na medida das possibilidades fáticas e jurídicas de sua realização. Logo, se analisados os princípios de forma isolada, a análise levaria a uma contradição, visto que um restringiria a possibilidade jurídica de realização do outro.
O autor sugere que a solução para essa colisão consiste no estabelecimento de uma relação de precedência condicionada entre os princípios, com base nas circunstâncias do caso concreto. Considerando-se o caso em concreto, o estabelecimento de relações de precedência condicionadas consiste na fixação de condições sob as quais um princípio tem prevalência sobre o outro. Alterando-se as condições é possível que essa relação de precedência seja resolvida de maneira contrária.
Dentre esses critérios, pode-se citar o procedimento da proporcionalidade que é aplicado em três fases: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Primeiramente verifica-se se a medida é adequada; posteriormente, analisa-se a necessidade da medida diante do caso concreto; por fim, realiza-se a ponderação de princípios mediante a apuração de seu peso, definindo-se assim aquele que será concretizado.
Salienta-se que a observância do requisito posterior somente pode ser verificada na hipótese da estar presente o requisito anterior. Explica-se: primeiramente deve-se analisar se a medida é adequada. Se positivo o juízo de valor, deve-se verificar se é necessária e, se positivo também esta resposta, deve-se fazer um juízo verificando se a medida obedece aos critérios da proporcionalidade em sentido estrito. Assim, caso a medida não seja adequada, deve-se entendê-la desproporcional, visto tratarem-se de critérios excludentes.
Diante do fato de o processo ser regido pelos princípios do dispositivo, imparcialidade, contraditório e motivação e isonomia, dentre outros, bem como tendo em vista o seu escopo de pacificação social que se alcança na maior medida com a fiel retratação aos autos dos fatos ocorridos no mundo do ser, indaga-se qual seria a medida adequada da incidência da iniciativa probatória pelo magistrado.
Qual seria o critério válido para o sopesamento dos referidos princípios de modo a garantir a integridade do ordenamento jurídico?
Antes de propormos uma resposta a difícil questão, imperiosa a análise de alguns institutos que estão estreitamente relacionados a questão da iniciativa probatória, dentre os quais o instituto do ônus da prova e a análise da relação jurídica de direito material subjacente à relação processual.
7. ÔNUS DA PROVA
Preliminarmente, importante salientar que a palavra ônus difere de obrigação, pois essa última se origina no descumprimento de um dever jurídico. Inadimplida uma obrigação pode-se exigir o seu cumprimento. Todavia, a situação é diferente quando se trata de ônus pois nesse caso não há pressuposto de existência de direito alheio. A própria parte tem interesse em se desincumbir dele, pois se não fizer ficará em situação jurídica desfavorável.
Para parte da doutrina, a iniciativa probatória “exofficio” encontra limites nas regras de ônus da prova, na medida em que o juiz não poderia diligenciar no sentido de “completar” a instrução, sendo somente admissível a sua intervenção quando houvesse real dúvida.
A doutrina tradicional apresentava-se contrária a iniciativa probatória do juiz, podendo-se trazer como exemplo as lições de Moacyr Amaral Santos[20]:
“Dá-se, assim, no processo probatório, uma perfeita interdependência de atribuições das partes e do juiz. Apenas aquelas não podem ter ingerência na função específica deste, de admitir provimentos relativos a qualquer dos atos probatórios e de avaliar e estimular as provas, porque, então, seria transformarem-se em juízes das próprias alegações. Por sua vez, o juiz não pode, a não ser dentro do critério legal e com o propósito de esclarecer a verdade, objetivo de ordem pública, assumir a função de provar fatos não alegados ou de ordenar provas quando as partes delas descuidam ou negligenciam”.
Arruda Alvin afirma que o artigo 130 do Código de Processo Civil somente se aplicaria às hipóteses em que não se opere a técnica de ônus da prova e que exista um fato “incerto”. Essa incerteza deve decorrer da prova já produzida nos autos, não podendo o juiz se sub-rogar-se no ônus subjetivo da parte que se omitiu. Justifica sua interpretação na inspiração individualista do sistema. Todavia, aceita que deve cada vez mais prevalecer o entendimento contrário a essa concepção individualista quando afirma que:
“se o magistrado verificar que a parte não provou porque não tinha direito e em cuja verificação ingressam vários fatores, e até a intuição, não terá dificuldade de resolver o quadro pelo ônus da prova. Se, todavia, a luz das mesmas motivações chegar à convicção de que pode, com grau acentuado de convicção, haver perda do direito e atribuição de bem jurídico ‘indevidamente’ a outra parte, acreditamos que, possivelmente, e cada vez mais interpretar-se-á o sistema atrofiando-se o espaço do art. 333 do CPC. Desta forma, portanto, acreditamos que, apesar da interpretação dada, dificilmente, sendo viável, o juiz deixará de ordenar a realização e prova, ainda que omisso o litigante, se se convencer de que haverá perda do direito[21]”.
Por sua vez, Bedaque critica tal posicionamento, argumentando que as regras de ônus da prova são regras de julgamento e, portanto, somente poderiam ser sopesadas naquele momento processual. O fundamento do ônus da prova é evitar o “non liquet”. Ademais, pondera que a iniciativa probatória do juiz pode acarretar uma diminuição do uso das regras de ônus da prova, porém, isso está em consonância com o escopo de pacificação do processo, vez que o objetivo é que os fatos retratados no processo sejam o mais próximos possíveis da realidade.
Destarte, o poder instrutório não se limita ao ônus da prova, pois a produção probatória ocorre em momento anterior a análise sobre as questões do ônus, que somente se aplica àquelas situações de falta de prova no processo podendo, portanto, ser considerada como exceção.Ademais, os poderes instrutórios do juiz não retira das partes o ônus de demonstrar os fatos por ela alegados.
Acrescenta-se o posicionamento de Dinamarco para quem a figura do juiz moderno traz a iniciativa probatória como mais uma faceta do exercício da jurisdição. Para o referido autor o processo civil moderno repudia a ideia do juiz Pilatos que, em face de uma instrução mal feita resigna-se em face de uma injustiça, atribuindo a falha aos litigantes[22]
8. NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO MATERIAL
O assunto aqui tratado refere-se a posição doutrinária no sentido de que há variação dos poderes instrutórios do juiz, a depender na natureza jurídica da relação de direito substancial, se disponível ou indisponível. Na primeira situação pouquíssimos seriam os poderes instrutórios do juiz, ao passo que, na segunda a orientação seria no sentido de busca da “verdade real”.
Bedaque critica o referido posicionamento, uma vez que há um interesse público no reconhecimento do direito material àquele que de fato o tinha, ou seja, há interesse na busca de uma solução justa, independentemente da natureza jurídica do direito material em questão.
Afirma ainda que a ampliação dos poderes instrutórios do juiz é uma tendência das leis processuais modernas, que demonstra uma concepção publicista do processo. Poderia se falar em interferência na relação jurídica substancial se fosse permitido ao magistrado o julgamento ultra ou extra petita, que acarretaria a publicização também das relações de direito material.
Arruda Alvim o princípio do dispositivo limita a busca da verdade pelo magistrado, não podendo ir além do conjunto probatório trazido pelas partes e, tampouco, infringir o princípio do ônus da prova. Afirma também que se é permitido ao juiz intervir na atividade probatória para a formação de sua convicção isso somente deve ocorrer de modo subsidiário as partes, não suprindo omissões daquela parte que foi negligente quanto a sua atuação processual[23].
9. A INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 130 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL A LUZ DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS QUE REGULAMENTAM A MATÉRIA.
O artigo 130 do Código de Processo Civil traz a seguinte disposição:
Art. 130. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias.
Destarte, o tema proposto no presente debate é estabelecer com base no ordenamento jurídico qual o alcance da referida disposição a luz dos princípios constitucionais, especialmente aqueles analisados no estudo aplicáveis ao sistema processual.
Parte da doutrina entende que a iniciativa probatória do juiz é livre, podendo ser realizada independentemente do conteúdo da relação jurídica de direito material subjacente, em razão do caráter público do processo que tem como principal escopo a pacificação social. Assim, para que essa paz social seja alcançada imperioso que se retrate no processo os fatos de forma mais próxima possível daqueles que efetivamente ocorreram no mundo do ser. A busca da verdade está intimamente ligada aos escopos do processo, motivo pelo qual deve ser buscada pelo juiz.
Para essa corrente doutrinária as regras de ônus da prova não seriam limitativas dos poderes instrutórios do juiz, pois são regras de julgamento, analisadas em momento processual diferente daquele referente à produção probatória.
Todavia, outra parte da doutrina se manifesta no sentido de que o princípio do dispositivo e as regras de ônus da prova são limitações para o exercício do poder instrutório pelo magistrado, que não poderia substituir a sua vontade pela das partes quanto à iniciativa probatória.
Nessas situações poderia se caracterizar violação ao princípio da imparcialidade do magistrado, visto que determinando a realização de uma prova poderia beneficiar a parte negligente no que tange ao seu resultado.
A sugestão aqui proposta é no sentido de que a iniciativa probatória do magistrado somente ocorra em caráter excepcional, nas hipóteses em que a relação jurídica de direito material seja indisponível e vise a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como nas hipóteses em que após a produção das provas requeridas pelas partes permaneça a dúvida sobre a questão de fato controvertida.
Referida conclusão tem como fundamento a ponderação dos princípios que regem as relações processuais e de direito material.
Inegável a natureza pública do processo, que tem como escopo a garantia da paz social. Todavia, o processo é instrumento para concretização do direito material, motivo pelo qual a natureza jurídica da relação de direito material pode influenciar no sopesamento dos princípios que garante a intervenção do magistrado na produção da prova.
Sobre os fundamentos da autonomia privada nas situações patrimoniais e existenciais Rose Melo Vencelau Meireles[24] afirma que o fundamento constitucional para os atos patrimoniais é a livre iniciativa, enquanto que o embasamento constitucional para atos de natureza existencial, ou seja, aqueles relacionadas com a personalidade, integridade física, relações familiares, é a dignidade da pessoa humana. Segundo a autora a ideia de conferir fundamentos diferentes a esses atos é possibilitar a ponderação entre eles, fazendo com que os atos fundados na dignidade da pessoa humana prevaleçam sobre os atos patrimoniais.
Destarte, tratando-se de direitos disponíveis referentes a relações patrimoniais o seu fundamento constitucional é a livre iniciativa, motivo pelo qual as partes poderiam livremente dispor da relação de direito material e, por conseguinte, das provas que entendem necessárias sob o ponto de vista processual, sem qualquer intervenção do juiz. Deve prevalecer as regras de ônus probatório e a igualdade de tratamento das partes e, por corolário, a não intervenção do juiz na iniciativa probatória.
O processo, por sua vez, é fundamental para a garantia do Estado Democrático e instrumento para a paz social e realização da justiça. Conforme leciona Ricardo Marcondes Martins[25]:
“para que haja justiça faz-se necessário um procedimento racional, vale dizer, um procedimento estruturado sobre regras aceitas por todos os partícipes, regras essas que garantam às partes a possibilidade de apresentarem sua opinião sobre a decisão justa e que exijam a explicitação dos argumentos em prol da decisão adotada”.
Ademais, analisando o processo como instrumento para a realização da justiça, as normas processuais que estabelecem a iniciativa da parte para início da relação jurídica processual, as regras sobre ônus da prova, o princípio da isonomia é evidente que a regra é a iniciativa da parte sobre a prova, e não a iniciativa pelo juiz. Isso porque as disposições de iniciativa do processo pela parte e ônus da prova tem por finalidade demonstrar que compete, primeiramente, a parte a comprovação dos fatos por ela articulados mediante o requerimento de produção de provas por sua iniciativa. A parte é que detém maior conhecimento sobre a relação de direito material, possuindo melhores condições de escolher o meio probatório para conveniente para a comprovação dos fatos controvertidos.
Não pode a parte fazer-se substituir pelo juiz. O sistema processual foi pensado de forma a efetivar o valor justiça, motivo pelo qual traz todo o procedimento judicial que será aplicado a uma futura relação jurídica processual. Explica-se: antes de iniciar o processo a parte sabe das “regras do jogo”. Ademais, as partes têm possibilidade de saber ou ao menos estimar qual será o seu ônus probatório no processo antes mesmo de distribuí-lo, tendo ciência de sua capacidade de provar os fatos alegados e, por conseguinte, os riscos da demanda.
Para as situações que se discute direitos patrimoniais essa é a regra, pois o princípio tutelado pelo direito material é a livre iniciativa que não se sobrepõe aos princípio tutelados pelo processo, especialmente a efetivação do valor justiça, que nesse caso satisfaz a segurança jurídica as partes, em razão de saberem do procedimento que se adotará durante o processo.
A atuação judicial quanto a iniciativa probatória nessas situações afeta o princípio da segurança jurídica e isonomia das partes que, na ponderação de princípios de sobrepõe ao valor livre iniciativa, motivo pelo qual defende-se a não intervenção do magistrado nessas situações.
Por outro lado, se a relação jurídica de direito material se referir a situações referentes a atos existenciais que concretizam o princípio da dignidade da pessoa humana, a postura do magistrado não deve ser a mesma.
Isso porque realizando a mesma ponderação de princípio o princípio da dignidade humana inerente a relação de direito material e o princípio da justiça no processo que se manifesta através da segurança jurídica e isonomia, deve-se prevalecer a dignidade da pessoa humana, motivo pelo qual é admissível a intervenção do magistrado na iniciativa probatória independentemente da atuação das partes e das regras de ônus da prova. O peso do princípio da dignidade da pessoa humana nessa situação prevalece sobre o peso da segurança jurídica.
Adotar posturas com base na relação jurídica de direito material subjacentes as relações processuais não implica no afastamento do caráter público do processo. Trata-se, na verdade, da ponderação dos princípios que embasam a elaboração das regras processuais e que no sistema atual não podem ser aplicados de modo absoluto. Afinal, não há princípios ou valores absolutos. A análise da prevalência de cada um vai depender da análise do caso concreto.
Por fim, quando após a produção probatória restar dúvida ao magistrado, é possível a sua iniciativa, pois ele é o destinatário da prova. Nessa situação as partes não foram negligentes. Requereram a produção das provas que entendiam cabíveis para a comprovação do seu direito. No entanto, as provas trazidas foram insuficientes para o convencimento do juiz, motivo pelo qual pode o magistrado determinar a produção de uma nova prova.
Aqui, ressalta-se, não haver preclusão projudicato, podendo o magistrado determinar inclusive a produção de uma prova que houvera indeferido anteriormente.
O processo é instrumento para a realização da justiça, motivo pelo qual a estrita observância dos procedimentos previstos na lei processual é necessária para efetivação do valor. O processo não pode se transformar em instrumento para realização de um valor pessoal do magistrado e tampouco transformar-se em uma situação surpresa para a parte.
Sendo assim, o mecanismo para efetivação dos princípios inerentes ao processo é a iniciativa probatória do magistrado somente de modo excepcional, nas situações em que a relação jurídica de direito material refira-se a atos que concretizem o princípio da dignidade da pessoa humana ou, atuação subsidiária, nas hipóteses em que produzida a prova a matéria fática controvertida continuar duvidosa.
10. CONCLUSÃO
A Constituição Federal garante as partes o direito a produção probatória, direito esse que decorre da interpretação dos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa. Inquestionável que a parte interessada deve ter garantido pelo magistrado o direito de produzir as provas que entende necessárias a comprovação dos fatos controvertidos existentes no processo.
Ademais, o princípio norteador do Direito Processual é o do livre convencimento motivado, previsto no artigo 131 do Código de Processo Civil, segundo o qual o juiz apreciará livremente os fatos e circunstancias existentes no processo, ainda que não alegados pelas partes, devendo indicar na sentença os motivos que o levaram a referida conclusão.
Percebe-se que a motivação é condição para o exercício do livre convencimento pelo juiz, visto ser uma garantia constitucional do jurisdicionado. Sobre o tema leciona Nelson Nery Junior[26]:
Fundamentar significa o magistrado dar as razões, de fato e de direito, que o convenceram a decidir a questão daquela maneira. A fundamentação tem implicação substancial e não meramente formal, donde é lícito concluir que o juiz deve analisar as questões postas a seu julgamento, exteriorizando a base fundamental de sua decisão. Não se consideram “substancialmente” fundamentadas as decisões que afirmam que “segundo os documentos e testemunhas ouvidas no processo, o autor tem razão, motivo por que julgou procedente o pedido. Essa decisão é nula porque lhe falta fundamentação.
Ocorre que a legislação processual também admite a iniciativa probatória do juiz, haja vista o disposto no artigo 130 do Código de Processo Civil, “in verbis”:
Art. 130. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias.
Assim, o presente trabalho visa analisar qual a amplitude do supracitado dispositivo, bem como tecer considerações a aplicação do mesmo ao processo do trabalho.
A partir do século XIX a ciência processual ganhou autonomia frente ao direito material, passando a ser concebida a natureza jurídica pública do processo.
A matéria atinente a prova está prevista na Constituição e visa efetivar nos embates jurídicos estabelecidos entre os litigantes os princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa.
No que tange as iniciativas probatórias do juiz as legislações estrangeiras variam quanto a conferência ou não desses poderes ao juiz. Como exemplo de não conferência de poder instrutório ao magistrado pode-se citar a Espanha. O direito alemão e sueco confere poderes instrutórios limitados ao juiz, enquanto que o Chile e o direito do trabalho italiano conferem livres poderes instrutórios ao magistrado.
No direito nacional há controvérsias sobre os limites de iniciativa probatória pelo juiz, haja vista o teor do artigo 130 do Código de Processo Civil.
As relações processuais são regidas, dentre outros, pelos princípios do dispositivo, imparcialidade, contraditório e motivação, igualdade processual e tem como um de seus objetivos alcançar a verdade, essa não mais entendida como a “verdade formal”, mas sim como a transcrição para o processo dos fatos de modo mais aproximado possível da forma que eles ocorreram.
Todavia, os referidos princípios, que traduzem valores positivados no ordenamento jurídico, podem se colidir na análise de uma situação concreta, sendo imperiosa a análise da ponderação e lei de colizão dos princípios. Para Alexyprincípios são mandamentos de otimização que podem ser satisfeitos em diversos graus. Destarte, havendo colisão entre eles no caso concreto, um deles terá que ceder, prevalecendo sobre o outro princípio. Todavia, isso não acarretará a invalidade do mesmo, bem como não significa que sempre esse princípio será prevalente sobre o outro, pois sempre será necessária a análise da situação concreta para o sopesamento do princípio.
Por sua vez, as regras de ônus da prova visam trazer para estabelecer quem será o responsável pela produção da prova, sendo certo que a inércia da parte a quem competia trazer a prova para o processo faz com que a parte negligente fique em uma situação processual desfavorável. Destarte, há quem entenda que as regras de ônus da prova limitam o poder do magistrado quanto a iniciativa probatória, pois não poderia substituir a atuação da parte, enquanto que outra parte. Todavia, há posicionamento em sentido oposto, argumentando que as regras de ônus da prova são regras de julgamento, apreciadas em momento diferente da produção probatória, motivo pelo qual não interferiria na iniciativa probatória do juiz.
Outra questão surge quanto a variação da iniciativa probatória do juiz sob a análise da natureza jurídica da relação de direito material. Parte da doutrina entende que o fundamento do direito material não pode influenciar a iniciativa probatória do juiz em razão da natureza pública e do escopo do processo de pacificação social. Todavia, também há posicionamento no sentido de que tratando-se de direitos indisponíveis o poder instrutório do juiz seria mais amplo que nas hipóteses de direitos disponíveis.
Destarte, no presente artigo defendeu-se a posição de que o fundamento da relação jurídica de direito material influencia a atuação do magistrado, sendo certo que nas situações jurídicas em que se discutem direitos indisponíveis o poder instrutório do juiz é maior e exercido concorrentemente às partes.
O fundamento da referida conclusão é que as relações de direito indisponíveis são fundamentadas no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o qual sopesado no processo face ao princípio da segurança jurídica decorrente do direito processual, sobre ele prevalece. Ao contrário senso, tratando-se de relação jurídica negocial de direito disponível, o princípio constitucional que a fundamenta, livre iniciativa, não é pesado o suficiente para afastar a segurança jurídica que o direito processual materializa na relação jurídica processual.
Ademais, também se admite a iniciativa probatória pelo juiz de modo subsidiário às partes quando produzidas as provas por ela requeridas continue a existir a dúvida quanto a situação jurídica fática controvertida.
O processo é meio de efetivação da justiça, na medida em que garante as partes a segurança jurídica necessária para travar uma relação processual sem surpresas. A iniciativa probatória pelo juiz em concorrência com a parte, sem qualquer critério, traz para o processo o elemento surpresa, afastando-o da segurança jurídica que tem por objetivo positivar no ordenamento e por isso somente pode ser admitida em situações excepcionais.
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[1]NERY, Nelson Junior. Princípios do Processo na Constituição Federal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 10. Edição, p. 291.
[2] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, 6 edição revista e atualizada. Editora Malheiros, São Paulo, 2009, p. 51
[3]NERY, Nelson Junior. Princípios do Processo na Constituição Federal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 10. Edição, p. 87
[4] MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso de direito e a constitucionalização do direito privado. São Paulo: Editora Malheiros, p. 15
[5] PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. Sétima Edição, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2008, p. 121-122
[6] PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. Sétima Edição, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2008, p. 77
[7] DINAMARCO, Cândido Rangel. Escopos Políticos do Processo. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; participação e processo. DINAMARCO, Cândido; WATANABE, Kasuo (org.). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 114-127, 1988.
[8] ALVIM, Arruda. Questões controvertidas sobre os poderes instrutórios do juiz, a distribuição do ônus probatório e a preclusão projudicato em matéria de prova. In: Ativismo judicial e garantismo processual. Coordenadores: Fredie Didier Jr., José Renato Nalini, Glauco Gumerato Ramos, Wilson Levi. Bahia: Editora Juspodium, 2013, p. 98-99
[9] TARUFFO, Michelle. Uma simples verdade. O juiz e a reconstrução dos fatos. São Paulo: Editora Marcial Pons, 2012, p.204-205
[10] NERY, Nelson Junior. Princípios do Processo na Constituição Federal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 10. Edição, p. 210.
[11] NERY, Nelson Junior. Princípios do Processo na Constituição Federal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 10. Edição, p. 211
[12] PERELMAM, Chaim. Lógica Jurídica. Nova retórica. Tradução Verg[omoa L. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 211
[13] GODINHO, Robson Renault. A autonomia das partes e os poderes do juiz: entre o privatismo e o publicismo do processo brasileiro. In: Ativismo judicial e garantismo processual. Coordenadores: Fredie Didier Jr., José Renato Nalini, Glauco Gumerato Ramos, Wilson Levi. Bahia: Editora Juspodium, 2013, p. 596
[14] PERELMAN, Chaim. Ética e Direito. Tradução: Maria Ermentina Galvão. São Paulo: 1999, Editora Martins Forense, p. 566
[15]Art. 125. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, competindo-lhe: I - assegurar às partes igualdade de tratamento;
[16] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A função social do processo civil moderno e o papelo do juiz e das partes na direção e na instrução do processo. In RePro n. 37. São Paulo: RT.
[17]MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 3ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 251.
[18] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. 2. Edição. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 26
[19] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 85-179
[20] SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e comercial. Vol. I. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 259-260
[21] ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil, 15. Edição, São Paulo: RT, 2012, p. 971.
[22] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, vol. 1, 2. Edição, São Paulo: Malheiros, 2002, p. 115
[23] ALVIM, Arruda. Questões controvertidas sobre os poderes instrutórios do juiz, a distribuição do ônus probatório e a preclusão projudicato em matéria de prova. In: Ativismo judicial e garantismo processual. Coordenadores: Fredie Didier Jr., José Renato Nalini, Glauco Gumerato Ramos, Wilson Levi. Bahia: Editora Juspodium, 2013, p. 103
[24]MEIRELES, Rose Melo Venceslau. Autonomia privada e dignidade humana. Editora Renovar: Rio de Janeiro, 2009, p. 98
[25] PIRES, Luis Manuel Fonseca. MARTINS, Ricardo Marcondes. A justiça arquetípica e a justiça deôntica. Editora Fórum: Belo Horizonte, 2012, p. 86.
[26]NERY, Nelson Junior. Princípios do Processo na Constituição Federal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 10. Edição, p. 291.
Mestranda em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP; especialista em Direito Civil, Processual Civil e Direito Previdenciário pela Escola Paulista de Direito. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARREIRA, Cristiane de Mattos. Iniciativas probatórias do juiz Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 jul 2015, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44744/iniciativas-probatorias-do-juiz. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: ELISA CARDOSO BATISTA
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
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