RESUMO: A partir do pressuposto de que o conceito constitucional de participação compreende a capacidade da população de intervir nas decisões de interesse da coletividade, busca-se seus contornos constitucionais na forma de governo republicana e no regime político democrático, bem como nos mecanismos e instâncias participativas, previstos na Constituição Federal de 1988.
Palavras-chave: Participação popular - Constituição Federal - República- Estado Democrático de Direito.
INTRODUÇÃO
A participação popular é um tema que está na ordem do dia, afinal nos últimos anos o Brasil tem sido cenário de diversas expressões da participação, seja de forma institucionalizada nos órgãos colegiados de políticas públicas, ou fora da estrutura estatal, em manifestações públicas organizadas pelos movimentos sociais, por exemplo.
Nessa conjuntura, torna-se relevante a compreensão acerca da participação por meio de uma análise que inclua seus contornos jurídicos, especialmente aqueles previstos na Constituição Federal de 1988.
Para tanto, busca-se dentro das diversas acepções possíveis, qual o sentido constitucional da participação. Essa adesão a uma concepção específica fica evidente quando se recorre à forma de governo e ao regime político instituídos no texto constitucional.
Assim, para operacionalizar a participação foram colocados à disposição pela Constituição diversos mecanismos e oportunidades em que a sociedade civil poderá exercer seu poder soberano para além da escolha de seus governantes.
2. UM SENTIDO CONSTITUCIONAL DE PARTICIPAÇÃO
A participação pode ter diferentes significados, dimensões e campos de atuação. É uma palavra que "dependendo da época e da conjuntura histórica, ela aparece associada a outros termos, como democracia, representação, organização, conscientização, cidadania, solidariedade, exclusão e etc". (GOHN, 2011, p. 16)
O tema da participação "pode ser observado nas práticas cotidianas da sociedade civil, quer nos sindicatos, nos movimentos, quer em outras organizações sociais, assim como nos discursos e práticas estatais, com sentidos e significados completamente distintos". (GOHN, 2011, p. 16)
A versatilidade da palavra "participação", tendo em vista seu emprego por diferentes pessoas e sua aplicação em variadas situações, faz com que seja importante estabelecer o seu conteúdo preciso e significativo para a democracia brasileira.
Vários são os teóricos que conferem centralidade à questão da participação e fundamentam o sentido que lhe atribuem. Ao sua iniciar sua análise acerca do termo “participação” Bordenave (1994) destaca seu oposto: a não participação, isto é, a marginalidade. Não participar, estar à margem, significa estar excluído de um processo sem nele intervir.
Por conseguinte, “participar” etimologicamente vem da palavra “parte”, seria portanto fazer parte, tomar parte, ter parte. Nesse ponto, o autor alerta para uma importante distinção entre estas expressões, uma vez que é possível fazer parte, sem tomar parte. “Em harmonia com esse conceito, se uma população apenas produz e não usufrui dessa produção, ou se ela produz e usufrui mas não toma parte na gestão, não se pode afirmar que ela participe verdadeiramente” (BORDENAVE, 1994, p. 25).
É preciso ter em vista também o fato que a participação é uma necessidade humana. Bordenave (1994, p. 11-16) salienta que a participação “é inerente à natureza social do homem [...] sempre tem acompanhado -com altos e baixos- as formas históricas que a vida social foi tomando”.
Nesse sentido, aponta Dallari (1999, p.16-17):
[...] o ser humano não é apenas um animal que vive, é também um animal que convive, ou seja, o ser humano sente necessidade de viver mas ao mesmo tempo sente também necessidade de viver junto com outros seres humanos. E como essa convivência cria sempre a possibilidade de conflitos é preciso encontrar uma forma de organização social que torne menos graves os conflitos e que solucione as divergências, de modo que fique assegurado o respeito à individualidade de cada um. Ao mesmo tempo, é preciso lembrar que todos os seres humanos são essencialmente iguais por natureza, em consequência, não será justa uma sociedade em que apenas uma parte possa decidir sobre a organização social e tenha respeitada a individualidade.
Diante da constatação de que há diversas formas de compreender a participação, GOHN (2011) explica que concepção de uma participação democrática envolve o exercício da soberania popular dentro e fora de espaços institucionalizados de participação.
A soberania popular é o princípio regulador da forma democrática: a participação é concebida como um fenômeno que se desenvolve tanto na sociedade civil - em especial entre os movimentos sociais e as organizações autônomas da sociedade; quanto no plano institucional- nas instituições formais políticas. (GOHN, 2011, p. 19-20)
A despeito disso, nesta vertente, a eleição de representantes ainda é a principal forma de participação, bem como uma determinada hierarquia no interior do Estado deve ser respeitada e mantida.
Mas há também há um tipo de participação revolucionária ou radical, como explica GOHN (2011), que pode se efetivar dentro dos canais estabelecidos pelo ordenamento em vigor, mas também em instituições paralelas, para questionar a divisão do poder político e as relações de dominação existentes. Assim, essa acepção é defendida por teóricos que buscam substituir a democracia representativa por outro sistema, como a democracia participativa.
Sob essa inspiração, podemos afirmar que o processo participativo é plural, coletivo, permanente e pedagógico. Nele há uma diversidade de experimentos sociais e de sujeitos envolvidos, na qual as múltiplas formas de associações e os movimentos sociais são tão relevantes no processo participativo quanto os partidos políticos. Nos processos que envolvem a participação popular, os indivíduos são considerados "cidadãos". A participação articula-se, nessa concepção, com o tema da cidadania. (GOHN, 2011, p. 22)
Tendo como norte esse ponto de vista, é possível afirmar que a participação prevista no texto constitucional vai além da “recepção passiva dos benefícios da sociedade, consistindo na intervenção ativa na sua construção, o que é feito através da tomada de decisões e das atividades sociais em todos os níveis”. A participação social corresponde à conquista da “presença ativa e decisória nos processos de produção, distribuição, consumo, vida política e criação cultural.” (BORDENAVE, 1994, p. 20).
Assim, Dallari (1999) qualifica o termo, denominando-o de participação política, pois, para ele, intervir nas decisões de interesse da coletividade é o mesmo que tratar de política, constitui ato de poder.
O entendimento dos processos de participação da sociedade civil e sua presença nas políticas públicas nos conduz ao entendimento do processo de democratização da sociedade brasileira. (GOHN, 2011, p.16)
A conquista de espaços democráticos onde fosse possível exercer a participação foi resultado de muitas lutas e a história da redemocratização brasileira e a promulgação da Constituição Federal de 1988 exprimem esse processo.
3. A FORMA DE GOVERNO REPUBLICANA E O REGIME POLÍTICO DEMOCRÁTICO
Primeiramente, é preciso esclarecer que forma de governo não se confunde com forma de Estado. "O modo de exercício do poder político em função do território dá origem ao conceito de forma de Estado" (SILVA, 2014, p. 100) , por outro lado, a forma de governo "se refere à maneira como se dá a instituição de poder na sociedade e como se dá a relação entre governantes e governados. Responde à questão de quem deve exercer o poder e como este se exerce". (SILVA, 2014, p. 104)
A República é a forma de governo assumida pelo Estado Brasileiro, declarada logo no primeiro artigo do texto constitucional. Para apurar seu significado, recorremos inicialmente ao sua origem etimológica, segundo a qual o termo res publica significa "coisa pública", opondo-se ao domínio de particulares e à restrição à interesses privados.
Ataliba (2011) destaca ainda que o princípio republicado foi prestigiado pelo povo brasileiro quando o plebiscito[1] realizado no ano de 1993 no país consagrou, por maioria esmagadora, a forma republicana de governo.
O princípio republicano não é meramente afirmado, como simples projeção retórica ou programática. É desdobrado em todas as suas consequências, ao longo do texto constitucional: inúmeras regras dando conteúdo exato e a precisa extensão da tripartição do poder; mandatos políticos e sua periodicidade, implicando alternância no poder; responsabilidades dos agentes públicos, proteção às liberdades públicas; prestação de contas; mecanismos de fiscalização e controle do povo sobre o governo, tanto na esfera federal como estadual ou municipal; a própria consagração dos princípios federal e da autonomia municipal etc. (ATALIBA, 2011, p. 27)
A tripartição de poderes, isto é, a divisão das funções executiva, legislativa e judiciária do Estado, seria a forma mais perfeita para assegurar o regime republicano, pois engendra um sistema de freios e contrapesos que tende a controlar o poder. Cada um dos poderes produz atos inerente às sua função e também interferem no atos dos demais, impedindo ou contribuindo para sua produção.
Segundo ATALIBA (2011) a previsão legal da participação dos administrados no controle e fiscalização de políticas públicas, por exemplo, é uma implicação do princípio republicano no direito positivo.
Temos, portanto, o princípio republicano como substrato da participação política dos cidadãos. Dessa forma, a República brasileira consiste numa forma de governo em que o poder pertence a todos os brasileiros, e pode ser exercido diretamente pelo povo ou por meio de seus representantes, oferecendo subsídios para ambas as formas de participação.
Quanto ao regime político, a Constituição estabelece, logo em seu primeiro artigo, que o Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Dirley da Cunha Júnior (2011, p. 525) ressalta que esta designação foi uma inovação que "sintetizou um movimento tendente a orientar o Estado de Direito a realizar os postulados da Democracia".
O elemento democrático vai limitar e legitimar do poder, como afirma CANOTILHO (1999). O exercício democrático do poder vai constituir uma liberdade positiva, em oposição à liberdade negativa liberal que implica um absenteísmo estatal.
A concepção constitucional acerca de Estado Democrático de Direito assenta na soberania popular. O princípio participativo no exercício de poder tem guarida constitucional no parágrafo único do artigo 1º que dispõe expressamente : "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".
O Estado brasileiro é constitucional e democrático, pois concretiza a soberania popular, radicada em instituições políticas básicas que garantam a participação do cidadão. Assim, temos que o regime político brasileiro oferece as garantias e instrumentos para realização da participação no plano prático.
4. A PARTICIPAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Manoel Jorge e Silva Neto (2013, p. 320) afirma que "após a Constituição de 1988, consagrou-se a 'democracia participativa', combinando-se elementos representativos com os da democracia direta".
Assim, esta previsão abre caminho para implementação de instâncias e instrumentos de participação de cunho legislativo, judicial e administrativo. São manifestações da democracia participativa na seara legislativa o plebiscito, o referendo e a iniciativa legislativa popular, previstos no art. 14, da CF:
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I - plebiscito;
II - referendo;
III - iniciativa popular
O plebiscito consiste numa consulta popular prévia, isto é, antes de ser formulada proposta legislativa sobre uma determinada questão política ou institucional, enquanto que o referendo é uma consulta posterior à aprovação legislativa com vistas à ratificá-la ou rejeitá-la. Já a iniciativa popular de lei é uma prerrogativa atribuída ao povo de apresentar projetos de lei ao legislativo diretamente, desde que atendidas determinadas exigências.
São importantes instrumentos judiciais de participação democrática a ação civil pública e a ação popular. Ação popular é um meio de defesa dos interesses coletivos e difusos, e de controle dos atos da Administração Pública pelo povo. Conforme Manoel Jorge Silva Neto (2013, p. 869) "a ação popular converte-se em instrumento de participação política, efetivando concretamente o postulado da democracia participativa". Esse direito é também uma garantia, e foi estabelecido no art.5º, LXXIII, da Constituição, senão vejamos:
Art.5º
LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;
No âmbito da Administração Pública diversos são os espaços em que é assegurada a participação popular: nos órgãos públicos colegiados nos quais sejam objeto de discussão e deliberação os interesses profissionais ou previdenciários dos trabalhadores e empregadores (art. 10), no Conselho da República cuja competência é se pronunciar sobre questões relevantes à estabilidade das instituições democráticas (art. 89, VII); do usuário no âmbito da Administração Direta e Indireta (art. 37, §3º); dos produtores e trabalhadores rurais no planejamento e execução agrícola (art. 187); dos trabalhadores, empregadores e aposentados nos órgãos colegiados da seguridade social (art. 194, VII); participação da comunidade nas ações e serviços de saúde (art. 198, III); participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação de políticas públicas e no controle das ações de assistências social (art. 204, II), entre outras.
5. CONCLUSÕES
A participação popular pode ter múltiplos significados, mas a Constituição elegeu o sentido que abarca a possibilidade de participação direta da população, além da capacidade de eleição de sua representação política. Essa escolha constitucional está diretamente ligada à previsão de que a República Federativa Brasileira é um Estado Democrático de Direito.
A dimensão do Estado Democrático de Direito vai ganhar expressão jurídico-constitucional num complexo de princípios, regras, procedimentos, ferramentas e espaços onde a soberania popular se realiza, dispersos no texto constitucional.
Assim, a forma de governo republicana e o regime político democrático oferecem o fundamento constitucional para a realização da participação por meio dos espaços e instrumentos legislativos, administrativos e judiciais.
A reunião desses elementos vai fornecer os contornos da participação popular que a Constituição Federal de 1988, depois de um longo período autoritário e de exceção no Brasil, quis consagrar.
REFERÊNCIAS
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
BORDENAVE, Juan E. Díaz. O que é participação. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. Salvador: Juspodivm, 2011.
DALLARI, Dalmo de Abreu. O que participação política. São Paulo: Brasiliense, 1999.
GOHN, Maria da Glória. Conselhos Gestores e Participação Sociopolítica. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.
SILVA NETO, Manoel Jorge. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
[1] Previsão do art. 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: " No dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no País."
Advogada. Mestranda em Direito Público pela UFBA. Especialista em Direito do Estado pelo Instituto de Ensino Jurídico e Concursos Públicos - JusPODIVM, e Pós-graduanda em Gestão Estratégica em Políticas Públicas pela Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CUNHA, Analice Nogueira Santos. Os contornos constitucionais da participação popular Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 ago 2015, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44989/os-contornos-constitucionais-da-participacao-popular. Acesso em: 23 dez 2024.
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