Resumo: Este artigo realiza uma análise crítica e histórica da Ditadura Militar Brasileira, cujo foco são a repressão e a clandestinidade presentes nas ações do Governo. Através do estudo de relatórios, depoimentos e dados objetivos, espera-se demonstrar como a tortura, os desaparecimentos e os assassinatos foram parte relevante do regime. Desta forma, defende-se que a ditadura brasileira não pode ser de forma alguma considerada branda, ainda que o governo tenha procurado revestir a atuação do Estado de certa legalidade ou de judicialização do processo. Por fim, dedicar-se-á atenção especial ao aparelho conhecido como “Casa da Morte de Petrópolis”, da qual novas e importantes informações foram fornecidas no ano de 2014, através do depoimento do Ex-Tenente-Coronel Paulo Malhães.
Palavras-chaves: ditadura, regime de exceção, clandestinidade, legitimidade, golpe militar, governo militar.
I. Introdução
Neste trabalho, pretende-se analisar principalmente a dualidade constante na ditadura brasileira, consistente na coexistência de uma suposta legalidade e de uma exceção própria deste tipo de regime, que o marcou desde os seus momentos iniciais. O foco do trabalho será demonstrar que, enquanto os governantes militares buscaram conferir uma veste de legitimidade ao regime, por detrás desta imagem se escondia uma atuação clandestina do governo, obscura, marcada por sequestros, torturas, mortes e desaparecimentos, muitos deles até hoje sem explicação.
Desta forma, será realizada uma análise das tentativas de conferir legitimidade ao sistema, empreendidas pelo governo militar principalmente durante o golpe e no início do regime, e que em grande medida contribuíram, ao contrário do que se viu na ditadura chilena, por exemplo, para disfarçar as ações ilegais do regime. E, em contraste, serão demonstrados diversos fatos que ilustram as constantes ações clandestinas do governo militar, utilizando como o principal exemplo a chamada Casa da Morte de Petrópolis, que teve mais de seus segredos recentemente relevados em depoimento do Ex-Coronel Paulo Malhães, que participou ativamente das torturas e desaparecimentos que ocorreram no local.
A partir daí, realizar-se-á uma análise para demonstrar como, em grande medida, a maioria das ações tomadas na busca por conferir legitimidade ao sistema na verdade era frágeis e falseadas desde o início, dada a ampla discricionariedade dos governantes em superá-las de acordo com as circunstâncias do momento e de seus interesses. É de suma importância o Relatório “Brasil: Nunca Mais”, cujo esforço de seus pesquisadores permitiu analisar minuciosamente a repressão política durante todo o período da ditadura.
Finalmente, ao cabo das análises anteriores, pretende-se fragilizar a suposta aparência legítima da ditadura brasileira, empreendendo a seguir esforços no sentido de demonstrar a enorme quantidade de ações clandestinas e ilegais do regime totalitário, através principalmente de seus aparatos de inteligência e repressão. Espera-se, ao fim, demonstrar como a ditadura brasileira, a despeito de instrumentos como judicialização do processo, de forma alguma pode ser considerada branda, tendo perpetuado ações tão ou mais graves como os regimes considerados duros.
II. Análise crítica e histórica do desenvolvimento da Ditadura Militar brasileira.
O estudo proposto neste artigo exige, ainda que de forma sucinta e limitada ao escopo proposto, uma contextualização daqueles fatos ocorridos entre 1964 e 1985, que caracterizaram a ditadura militar. De fato, é de suma importância que sejam apontadas algumas características que tornam o sistema adotado no Brasil único, se comparado a outros regimes militares que lhe foram contemporâneos. Principalmente, considerando que busca-se demonstrar como este sistema era dotado de brutais mecanismos de repressão e marcado pela clandestinidade, é importante demonstrar como, ainda assim, o governo procurou e muitas vezes conseguiu camuflar suas ações sob uma veste de legalidade e processo judicial.
II.1 – Os momentos iniciais e o fortalecimento da “linha dura”
Em 31 de março de 1964, um golpe militar foi deflagrado contra o governo legalmente constituído de João Goulart. Os militares envolvidos no golpe de 1964 justificaram sua ação afirmando que o objetivo era restaurar a disciplina e a hierarquia nas Forças Armadas e deter a "ameaça comunista" que, segundo eles, pairava sobre o Brasil.
O governo militar procurou se legitimar através do seu discurso: alegava uma suposta atribuição de poder ao povo, além de mudanças graduais - e não uma ruptura total. Entretanto, os problemas constitucionais se estabeleceram imediatamente a partir do golpe, norteando diversas ações do grupo militar.
O movimento que tomou o poder se intitulava revolucionário. Além disso, se investia no “poder constituinte”. Contudo, inicialmente foram adotadas medidas muito mais reformistas do que revolucionárias. Optou-se por manter em vigor a Constituição de 1946, mesmo que esta já estivesse sendo claramente desrespeitada. Isto fica evidente na atuação por meio de Atos Institucionais, fórmula que não estava prevista na constituição precedente.
Por meio do primeiro Ato Institucional, o governo militar instaurou a ordem revolucionária. O AI de 1964 possuía um período definido de vigência, de forma que ao seu final a Constituição voltaria a vigorar normalmente. Entretanto, diversas foram as contradições e duplicidades presentes neste primeiro Ato Institucional: “normalidade e exceção”, “ruptura e conservação”, “plenos poderes e poderes limitados”. A justificativa para tantos antagonismos passa pelas tentativas militares de camuflarem a característica eminentemente golpista do governo.
Inicialmente, o governo revolucionário se preocupou com a alteração das regras de reforma constitucional. Foi atribuída ao presidente da República a prerrogativa de propor emendas à constituição e facilitada a aprovação destas mesmas emendas. Robert Barros, em seu texto “Constitucionalism and Dictatorship” deixa claro que não é estranho que regimes ditatoriais tentem impor a dominação através da lei, apesar de reservarem para si a interpretação e a execução destas leis. Em grande medida, a visão errônea de que a ditadura militar brasileira pode ser considerada “branda” deriva do relativo sucesso do governo militar em demonstrar uma face legal, legítima e constitucional de suas ações, quando na verdade importantes jogos de poder ocorriam nos bastidores, a revelia de qualquer lei, por repressão, tortura, desaparecimentos e assassinatos.
Isto fica claro durante a evolução da ditadura brasileira. No período compreendido entre o AI de 64 e o Ato Institucional nº 2, o maior foco do governo foi permitir sua governabilidade. Mesmo que tentando atuar sob uma imagem legalista e legitimada, diversas foram as regras modificadas para que o poder pudesse ser exercido sem restrições: foi reduzido o quórum necessário no Congresso para aprovar as medidas propostas pelo presidente e foi reformado o sistema eleitoral visando impedir a vitória de candidatos não ligados ao regime. Assim, o governo criava inicialmente bases legais para que a adoção de suas medidas fosse mais fácil e mais rápida.
A Ditadura Militar se desenvolveu, portanto, através de uma série de transformações na estrutura jurídica do país, seja através de alterações constitucionais, nas relações entre os três poderes, na sistemática partidária ou de reforços nos aparatos de repressão. Toda a movimentação tinha por fim aumentar a rigidez do Estado. Isto “não significa afirmar que os governantes militares tenham abandonado as preocupações com uma permanente busca de disfarces, que aparentassem uma certa normalidade democrática”. De acordo com o Relatório “Brasil: Nunca Mais”, apenas com a vigência do primeiro Ato Institucional, que previa um prazo de sessenta dias para cassação de mandados legislativos e direitos políticos de qualquer cidadão, três ex-presidentes, seis governadores, mais de sessenta deputados federais e centenas de estaduais tiveram seus direitos cassados. Isto sem falar na soma magnífica de oficiais do exército reformados compulsoriamente e de funcionários públicos demitidos.
O projeto do governo, contudo, ainda enfrentou dificuldades. No Congresso, cada dispositivo enfrentava uma batalha. No judiciário, havia confronto com o Presidente do STF. A vitória da oposição nas eleições em Minas e na Guanabara, aliada a diversos problemas na política econômica, fortaleceu a chamada “linha dura”. Estava encaminhada a instauração do Ato Institucional nº 2. Com as derrotas iniciais, o governo brasileiro abria mão da judicialização em busca de maior controle.
O preâmbulo deste novo Ato Institucional inaugurou a doutrina do poder constituinte permanente, da revolução viva, dinâmica. Desta forma o governo poderia permanentemente se sobrepor às regras, se colocando acima de qualquer limitação. O novo diploma estabelecia eleições indiretas para a presidência, autorizava a imposição unilateral de estado de sítio pelo presidente, possibilitava novos expurgos nos órgãos políticos, judiciários e administrativos.
Barros destaca que a grande maioria dos filósofos, como aqueles ligados à teoria da soberania, toma o poder absoluto como algo que não pode se limitar. De fato, os autocratas nunca estariam livres da discricionariedade de superar qualquer limitação. Enquanto inicialmente o governo militar tentou assumir compromissos com a constituição vigente, buscando ser “não radical”, a partir da conveniência foram superadas as restrições pelo exercício do poder. Desta forma, os regimes ditatoriais não seriam capazes de se ater a seus compromissos. Com o AI nº 2, fragilizou-se ainda mais a aparência legítima da Ditadura.
II.2 – O fortalecimento da repressão e a clandestinidade
Apontado por muitos como o golpe derradeiro na democracia, o Ato Institucional nº 5 foi criado em um contexto de crescente oposição ao governo militar, fosse esta partidária ou através de lutas na rua, através de oposição armada ou através de greves e reinvindicações trabalhistas. Dentre as previsões do novo Ato se destacam a capacidade do presidente de decretar, a qualquer momento, o recesso do Congresso, das assembleias legislativas e das câmaras de vereadores, que só voltariam a funcionar quando convocados; a possibilidade de intervenção nos estados e municípios sem qualquer limitação constitucional; a capacidade de suspender direitos políticos de qualquer cidadão e suspender mandatos eletivos; poder decretar Estado de Sítio e prorroga-lo; além da suspensão da garantia de habeas corpus nos casos de crimes políticos contra a “segurança nacional”, ou à ordem econômica e social.
A partir deste momento a ditadura se apresentava sem disfarces. Seguiram diversos Atos Institucionais, como o nº 13, que estendia a aplicação da pena de morte – que existia, até então, apenas na hipótese de guerra externa – aos casos de guerra psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva.
A situação se agrava ainda mais após a posse de Emílio Garrastazu Médici, em 30 de outubro de 1969, e cujo mandato dura até março de 1974. Seu governo representou a fase mais violenta da repressão, culminando na criação de um verdadeiro sistema de segurança cujas principais características eram as torturas e os assassinatos. Milhares de cidadãos foram levados aos cárceres políticos, e diversos líderes importantes como Marighela e Lamarca morreram pelas mãos do Estado. Nem mesmo membros da Igreja, que inicialmente suportaram a Ditadura Militar, estavam imunes. Existem relatos de prisões, torturas e assassinatos de sacerdotes e bispos. Dados apontam para mais de duzentos prisioneiros políticos mortos ou desaparecidos no período. Toda tipo de denúncia era prontamente desmentida e censurada, quando não intimidada e punida. Ainda assim, como demonstrado será mais adiante, este foi o período em que mais foram registradas denúncias de torturas, um número muito superior ao dos mandatos de outros presidentes. Foi durante este governo que o DOI-CODI, sigla utilizada para o chamado Destacamento de Operações de Informações- ao Centro de Operações de Defesa Interna, instituição criada pelo governo com a finalidade de ser a principal responsável pela inteligência e repressão, teve maior atuação, estando envolvido em diversos casos de torturas, desaparecimentos e assassinatos.
É importante reconhecer que as ações violentas do Estado não ficaram restritas ao governo de Médici. Pelo contrário, o governo seguinte, de Ernesto Geisel, é de extrema importância para este artigo. Isto porque, se busca analisar como a ditadura buscou se dar uma veste legal ao mesmo tempo em que agia brutalmente na clandestinidade, nada melhor do que apontar a obscuridade que tomou conta da repressão neste momento. O novo governo buscava dar demonstrações de redução na repressão, de busca de um lento e gradual retorno à democracia.
O que acontecia, na verdade, é que os órgãos de repressão haviam adotado o método de não mais assumir prisões e mortes, evitando quaisquer questionamentos sobre as versões já desgastadas dos supostos “atropelamentos”; “suicídios”; “tentativas de fuga”. Toda alegação neste sentido passava a enfrentar questionamentos em um clima de maior liberdade de imprensa e jogo político.
Ao contrário de diminuir, porém, a clandestinidade das ações do governo aumentava. Nesta época tornou-se rotina o fenômeno do desaparecimento, que anteriormente acontecia apenas em escala menor. Muitos dos presos no período jamais foram localizados, embora existam provas de suas detenções pelos órgãos de segurança.
Assim, apesar de um período de ressurgimento e fortalecimento do espaço político, o governo continuou marcado pela existência de torturas, assassinatos e elevado fluxo de prisões. A comunidade de segurança foi o último instrumento da Ditadura a ser tocado. Mais que isso, os dados indicam que surgiram e se desenvolveram braços ainda mais clandestinos destes órgãos, que faziam uso de propriedades rurais, obscuridade e terrorismo. Não raras vezes foram utilizados sequestros e espancamentos, sem mencionar a opção por explosivos, que foram utilizados contra Igrejas, contra a Ordem dos Advogados do Brasil, contra a Imprensa e outros. Como não havia nenhuma apuração séria destes crimes, a impunidade dava o aval para que continuassem.
O governo de João Figueiredo, que encerrou o ciclo da Ditadura Militar, representou uma continuidade do processo de abertura política, marcado pelo desgaste do governo. Ainda existiram setores radicais dentro das Forças Armadas que buscaram agir por terrorismo, mas, de modo geral, pode-se considerar que já houve um maior controle da repressão.
O que se pode concluir desta primeira análise, histórica e ainda abstrata, é que na ditadura brasileira verificou-se um nível relativamente alto de manutenção da ordem normativa, com a continuidade dos três poderes, ainda que limitada, e da judicialização do processo. Porém, de forma alguma se pode esquecer a quantidade de ações clandestinas executadas pelo governo, com casas clandestinas de tortura e ações terroristas contra a própria população. Nesta “dualidade” do Estado, que atuava tanto por meios legais quanto ilegais, não é tarefa simples considerar o número de desaparecidos, executados e torturados. Contudo, o objetivo é demonstrar que a Ditadura Brasileira foi dura, brutal e deixou marcas irreparáveis na história do país. Por isso, passemos à análise de elementos probatórios mais objetivos e determinados.
III. Relatório “Brasil: Nunca Mais”
O projeto “Brasil: Nunca Mais” representa um instrumento valiosíssimo na análise da repressão política que assolou o Brasil, abrangendo todo o período que foi de abril de 1964 a março de 1979, quando começou o governo de Figueiredo e que levou ao exaurimento da Ditadura Militar. Diferente da maioria dos estudos feitos, tanto no passado quanto atualmente, e que se baseiam muito em depoimentos, a pesquisa realizada se baseou em documentos produzidos pelas próprias autoridades envolvidas. É evidente que este tipo de prova evita a desconfiança e a suspeição que quase sempre são levantadas contra testemunhos pessoais. Nas palavras dos pesquisadores, o depoimento não acusa tão gravemente quanto um registro nos próprios autos “da ausência de unhas em um cadáver”.
O Relatório foi elaborado durante cinco anos e teve a vantagem de começar a ser produzido ainda durante o período da Ditadura. Desta forma, muitos documentos podem ter sido obtidos e salvos antes que fossem destruídos intencionalmente. Ainda assim, é evidente que apenas uma parcela pôde ser registrada, considerando o quanto foi omitido dos registros oficiais. Em seu favor, a denúncia realizada tem caráter definitivo e irrefutável.
A primeira parte do Relatório, a que já nos serviu de referência algumas vezes anteriormente, trata de situar a evolução das instituições jurídico-políticas durante o período, demonstrando os antecedentes históricos que prepararam o golpe militar e analisando o aparelho erguido em torno da Doutrina de Segurança Nacional. Em um segundo momento são apresentados os instrumentos utilizados, a característica do material analisado e a metodologia empregada. Aqui são exibidos diversos quadros com dados quantitativos extraídos dos processos. Juntamente com a quinta seção do Relatório, que apresenta registros das práticas de torturas e dados matemáticos de sua utilização, tais seções contribuíram imensuravelmente para este trabalho. É de se destacar também as seções que caracterizam as áreas mais atingidas pela repressão e a discussão jurídica a respeito do que estava em lei e o que ocorria no processo.
Não seria possível, em um artigo de escopo limitado como este, proceder à análise de toda a imensa quantidade de dados disponibilizada no Relatório. Apresenta-se, porém, algumas tabelas que oferecem dados quantitativos importantes:
Ano |
Número de denúncias |
1964 |
203 |
1965 |
84 |
1966 |
66 |
1967 |
50 |
1968 |
85 |
1969 |
1027 |
1970 |
1206 |
1971 |
788 |
1972 |
749 |
1973 |
736 |
1974 |
67 |
1975 |
585 |
1976 |
156 |
1977 |
214 |
· Tabela 1: Demonstra a evolução do número de denúncias de tortura durante boa parte da Ditadura Militar. Salta aos olhos o enorme aumento de denúncias durante o período do governo Médici (1969 a 1974).
Tipo de Tortura |
Número de denúncias |
Choques Elétricos |
527 |
Pau de Arara |
189 |
Coação psicológica |
188 |
Ficar sem comer |
105 |
Cadeira do Dragão |
60 |
Geladeira |
52 |
· Tabela 2: Esta tabela apresenta os tipos de tortura que mais foram denunciados, dentro de uma enorme diversidade de métodos. Os choques elétricos e o “pau de arara” se tornaram símbolos da repressão militar.
Dependência onde ocorreu tortura |
Número de denúncias |
PE – Quartel da Barão de Mesquita |
735 |
DOI – CODI - SP |
382 |
OBAN – Operação Bandeirantes |
344 |
DOPS - SP |
276 |
DOI – CODI - RJ |
215 |
DOPS - RJ |
181 |
· Tabela 3: Apresenta as dependências em que mais foram apontadas ocorrências de tortura. O DOI – CODI, sigla utilizada para o chamado Destacamento de Operações de Informações- ao Centro de Operações de Defesa Interna, foi uma instituição criada pelo governo militar com a finalidade de ser a principal responsável pela inteligência e repressão do governo. Foi responsável, em diversos estados, por inúmeros sequestros, torturas e desaparecimentos.
IV. Centros clandestinos do governo militar
Após extensa investigação das ilegalidades cometidas durante a ditadura militar, muitas vezes realizada pela Comissão Nacional da Verdade, chegou-se à conclusão que o governo mantinha diversos centros clandestinos de tortura. Estima-se que eles ficaram em atividade entre 1970 a 1975, não havendo nenhum registro de atuação após este ano. A maioria destes centros se localizava em lugares de difícil acesso e faziam parte de toda uma cadeia de repressão elaborada pelo governo. O destino da grande maioria dos presos nestes locais foi inevitavelmente a morte.
Os centros clandestinos eram parte da estrutura de inteligência e repressão do regime militar e obedeciam, principalmente, às Forças Armadas. Essa estrutura desenvolveu um padrão de repressão seletivo e operante em duas diferentes direções: o dispositivo de coleta e análise de informações sobre a sociedade e suas forças políticas; e a atuação de organismos encarregados da execução e repressão.
Esses organismos possuíam diversas atribuições. Dentre elas, principalmente, o desaparecimento de corpos de opositores mortos, queimando ou eliminando quaisquer condições de identificação, a prisão e interrogatório de opositores políticos, recrutamento e monitoramento de militantes cooptados, transformando-os em agentes infiltrados.
De acordo com as investigações realizadas pela Comissão Nacional da Verdade, foi possível identificar diversos endereços que eram utilizados clandestinamente pelo governo como casas de tortura, como por exemplo, a Fazenda 31 de março, a Casa de Itapevi, a Casa no bairro Ipiranga, a Casa do Renascença, a Casa Azul e a Casa da Morte de Petrópolis.
A Casa da Morte de Petrópolis é um dos centros clandestinos de que mais se obteve informações, devido a um depoimento prestado ainda em 1979 pela única sobrevivente de que se tem notícia, Inês Etienne Romeu. Mais recentemente, novas informações foram fornecidas em depoimento do ex-tenente-coronel reformado Paulo Malhães, um dos agentes atuantes no local. Estranhamente, ambos foram vítimas de ataques em suas residências após seus depoimentos. Inês Etienne foi encontrada ferida em seu apartamento em 2003. Já Paulo Malhães, apenas meses antes da elaboração deste artigo, teve sua casa invadida e foi assassinado por asfixia, existindo fortes indícios de “queima de arquivo”.
V. A Casa da Morte de Petrópolis
Uma análise das ações repressivas do Estado que ocorreram na obscuridade, na clandestinidade, passa necessariamente por um estudo do aparelho conhecido como "Casa da Morte". Somente denunciada em 1979, pela única sobrevivente de que se teve notícia, Inês Etienne Romeu, é certo que, ao menos durante a década de 70, a casa localizada em Petrópolis/RJ serviu de centro de tortura e assassinato.
As denúncias realizadas pela militante sobrevivente revelaram algumas das ações mais bárbaras realizadas por militares durante o período da Ditadura, como a utilização de choques elétricos, torturas, estupros e o inevitável assassinato de quem quer que tivesse sido preso. Diversos casos de desaparecimentos políticos estão relacionados à passagem pela Casa da Morte.
Já em 2014, o tenente-coronel reformado Paulo Malhães prestou depoimento à comissão da verdade onde forneceu muitas informações relevantes sobre o local, conhecido como "Casa de Conveniência" pelos militares. Na ocasião explicou como se dava o desaparecimento dos corpos, que eram mutilados, desfigurados e atirados em rios nas proximidades. Além disso, por seu depoimento foi possível depreender que a tortura psicológica, o medo e as ameaças, eram utilizados como forma de induzir os guerrilheiros capturados a traírem suas próprias organizações, se tornando infiltrados. Também apontou que existia mais de um local como este na cidade. De maneira estranha, o ex-coronel foi assassinado, no dia 25 de março de 2014, pouco tempo depois de prestar o depoimento e fornecer informações valiosas, além de nomes, sobre o aparato. O que fica demonstrado é que ainda existem braços e poderes fortes da ditadura militar ainda em vigência.
O certo é que nem Paulo Malhães, nem Inês Romeu, souberam informar, e dificilmente será totalmente esclarecido, quantas pessoas passaram, sofreram e morreram por ações terríveis e obscuras dos militares no local. A Casa da Morte representa um ícone da clandestinidade da Ditadura Militar e impede, incisivamente, que se cogite apontar "uma certa brandura" na ditadura que deixou marcas profundas na história brasileira. Não fosse a sobrevivência, inesperada, da militante, ou o depoimento do ex-coronel mais de trinta anos depois, talvez nada se soubesse sobre os crimes cometidos no local. Ressalte-se que este representa apenas um dos centros, sendo de se imaginar que a real dimensão da clandestinidade é incomparavelmente maior. Por isso, devido à inestimável contribuição desta análise para este trabalho, passemos, nos tópicos seguintes, a analisar os dois depoimentos relacionados à casa da Morte, ao cabo dos quais se espera demonstrar, no mínimo, que a ditadura brasileira foi forte, foi cruel, clandestina, e de forma alguma mais branda do que outras contemporâneas, como a ditadura chilena e a argentina.
V.1 – Depoimento de Inês Etienne Romeu
Como já mencionado, a Casa da Morte foi uma estrutura criada pelo Centro de Informac?o?es do Exe?rcito (CIE) em conjunto com o Centro de Operac?o?es de Defesa Interna/Destacamento de Operac?o?es de Informac?o?es (CODI-DOI) do I Exe?rcito (Rio de Janeiro), no ini?cio do ano de 1971. O principal objetivo era atender a uma nova estrate?gia de intensificac?a?o do combate a?s organizac?o?es armadas de esquerda pela ditadura.
O aparelho repressivo intensificou as suas bases secretas e equipes especializadas para trabalhar na execução de uma poli?tica de extermi?nio e desaparecimento forc?ado das principais lideranc?as das organizac?o?es em luta aberta contra o regime. A Casa da Morte de Petro?polis foi a principal estrutura clandestina utilizada pelos servic?os de informac?o?es das forc?as armadas brasileiras para cumprir esta função.
“Mas o CIE tinha autonomia para trabalhar em qualquer lugar do Brasil. Eles tinham aparelhos especiais, na?o oficiais, fora das unidades do I Exe?rcito, para interrogato?rios (...). Como a casa de Petro?polis.” (General Adry Fiuza)
Algumas das principais informações obtidas a respeito da Casa da Morte de Petrópolis foram obtidas pela denúncia feita por Inês Etienne, presa política que ficou três meses mantida em cárcere na Casa e foi a única sobrevivente do local. Ine?s Etienne Romeu, nascida em Pouso Alegre (MG) em 1942, foi banca?ria, li?der estudantil e dirigente da Vanguarda Popular Revoluciona?ria – VPR.
O depoimento prestado por Inês demostra claramente o que acontecia dentro desta casa localizada em uma área do centro da cidade de Petrópolis, cercada por mata densa e, portanto, de difícil acesso. Inês foi capaz de reconhecer e nomear diversos torturadores que trabalhavam na casa, bem como o proprietário da residência que alugou a casa para o governo.
Inês após a sua saída da prisão, em 1979, entregou seu depoimento à Ordem dos Advogados do Brasil, relatando tudo o que viveu nos três meses que foi mantida na casa. A partir do seu depoimento, foi possível identificar a localidade da casa bem como os agentes que atuavam no local. O relato é rico em detalhes, desde seu sequestro até seus últimos momentos na casa. Inês relatou que os meses em que esteve capturada foram os piores da sua vida, tendo sido submetida a torturas psicológicas e físicas de tal grandeza que chegou a tentar suicídio três vezes durante o cárcere. Seus relatos apontam que foi brutalmente torturada, estuprada, humilhada e submetida ao soro da verdade. Quando se encontrava em um estado de fragilidade, era medicada para recuperar as suas forças, para logo em seguida ser torturada novamente.
“Fui levada a? sala de torturas, onde me colocaram no ‘pau de arara’ e me espancaram barbaramente. Foram aplicados choques ele?tricos na cabec?a, pe?s e ma?os.” (Inês Etienne Romeu).
Ine?s teve acesso a informações sobre o destino de vários desaparecidos políticos. Em seu depoimento foi capaz de listar nomes de nove desaparecidos poli?ticos sobre os quais ela teve noti?cias durante os tre?s meses em que resistiu na Casa da Morte. Destes, seis teriam sido assassinados em Petro?polis. Inês relatou diversos atos de tortura que presenciou dentro da casa e, através dos seus relatos, foi possível esclarecer as circunstâncias, até então incertas, do desaparecimento de algumas pessoas das quais havia indícios de terem sido levadas até a Casa.
“A pedido, confirmo integralmente meu depoimento de pro?prio punho, sobre fatos ocorridos na Casa de Petro?polis, RJ, onde fiquei presa de 08 de maio a 11 de agosto de 1971. Esse depoimento e? parte integrante do Processo no MJ-7252/81 do CDDPH do Ministe?rio da Justic?a. Nesse depoimento esta? registrado que ‘Dr. Pepe’ contou ainda que Marilena Villas Boas Pinto estivera naquela casa e que fora, como Carlos Alberto Soares de Freitas, condenada a? morte e executada. Declaro ainda que estive internada no HCE no Rio de Janeiro de 06 a 08 de maio, que Marilena Villas Boas Pinto havia chegado morta ao HCE; que no dia 08 de maio, na casa de Petro?polis, o ‘Dr. Pepe’ disse que Marilena havia morrido exatamente na mesma cama de campanha onde eu me encontrava, afirmando tambe?m que, embora baleada, Marilena tinha sido dura”
“Em seguida, foi levado para aquele local, onde foi interrogado durante quatro dias ininterruptamente, sem dormir, sem comer e sem beber. Permaneceu na casa ate? o dia trinta de maio, fazendo todo o servic?o dome?stico, inclusive cortando lenha para a lareira. Dr. Teixeira disse-me em princi?pio de julho que Mariano fora executado porque pertencia ao Comando da VAR-Palmares, sendo considerado irrecupera?vel pelos agentes do governo.” (Inês Etienne.)
Estranhamente, em 2003, Inês Etinne foi encontrada caída e ensanguentada em seu apartamento, tendo sofrido diversos golpes na cabeça que a deixaram com traumatismo cranioencefálico, com afundamento de crânio, e por pouco não lhe tiraram a vida. Desde então, passou a ter dificuldades de se expressar, andar e se relacionar.
V.2 – Depoimento do Ex-Coronel Paulo Malhães
De acordo com Malhães, um dos principais objetivos da Casa de Petrópolis era tornar os presos infiltrados em suas próprias organizações, criando informantes, agentes duplos. Em sua opinião esta foi uma arma valiosíssima durante o período da Ditadura. Indagado sobre como os agentes conseguiam que o capturado se tornasse um infiltrado, inicialmente tentou se esquivar: “conversando normalmente”; mas, durante o restante do interrogatório, admitiu a prática da tortura, inclusive praticada por ele mesmo. Mais especificamente, informou que era comum a tortura psicológica.
A tortura psicológica pode ocorrer de diversas maneiras, dentre aquelas que não agridem fisicamente o indivíduo. Muitas vezes consiste em deixar o indivíduo amedrontado, acuado ao extremo. Ao passo que o interrogador da Comissão Nacional da Verdade perguntou se o Coronel utilizava de ameaças a parentes próximos, como de prisão ou morte, Malhães informou que um exemplo clássico era tornar claro ao preso que, se estivessem em uma situação normal, ele deveria estar em uma unidade militar, seguro. Mas não quando era encaminhado a uma casa clandestina, como aquela de Petrópolis: ali já deveria temer pelo seu futuro.
Mais tarde, ao ser indagado sobre a quantidade de mortos na Casa, informou que seria muito difícil precisar quantos indivíduos e porque morreram. É importante ressaltar que estamos tratando de apenas uma, dentre as diversas casas clandestinas de que o Estado se utilizava, muitas das quais provavelmente permanecem desconhecidas ao restante da população. A repressão tomou dimensões que jamais serão reveladas em toda a sua extensão, e ainda assim se apresentam claramente brutais.
O depoimento de Paulo Malhães teve grande repercussão no que se refere aos métodos utilizados para a destinação dos corpos. Informou, em detalhes, a técnica que fora estudada e calculada para impedir que fossem localizados ou reconhecidos. Após descaracterizado, como pela remoção de dedos das mãos e das arcadas dentárias, o corpo era jogado no rio amarrado a pedras de peso específico, visando evitar que o corpo afundasse ou flutuasse. O ventre da vítima era cortado para impedir que o corpo acumulasse gases e emergisse.
Por fim, dentre outras informações valiosas, Paulo Malhães confirmou que eram comuns espancamentos no local, que várias vezes resultavam em morte. Também afirmou que o CIE (Centro de Informações do Exército) tinha total controle do que ocorria na casa, assim como o Ministro do Exército que era constantemente informado. Inegavelmente, o Estado trabalhava por meio de ações clandestinas, mesmo que buscasse se revestir de outra aparência.
VI. Conclusão
Ao cabo deste artigo, pretendeu-se demonstrar que a Ditadura Militar no Brasil, ainda que diferenciada desde sua formação, esteve revestida das mesmas características repressivas de outras que lhe foram contemporâneas e consideradas unanimemente como duras.
Ainda que o Governo tenha procurado legitimar as diversas ações e atitudes tomadas, sempre se ocultando por um véu de suposta legalidade e divisão dos poderes, o que verdadeiramente o definiu foram as ações clandestinas, as torturas, desaparecimentos e assassinatos. Sua intensidade variou ao longo das décadas de repressão, mas, em maior ou menor medida, esteve sempre presente.
É impossível registrar em tão pouco espaço a imensidão da repressão e as marcas que deixou não só na história do país como em indivíduos, companheiros, colegas e famílias. Ainda assim, os dados fornecidos contribuem para que seja reconhecido que jamais existiu uma “Ditabranda” no Brasil. Pelo contrário, as ações repressivas foram brutais e jamais devem ser esquecidas.
Bibliografia
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Atos Institucionais nº 1, 2 e 5.
4º Relatório Preliminar de Pesquisa (07/04/2014) Tema: Centros Clandestinos de Violação de Direitos Humanos. Disponível em <http://www.cnv.gov.br/index.php/relatorios-parciais-de-pesquisa >
3º Relatório Preliminar de Pesquisa (25/03/2014) Tema: A Casa de Morte de Petrópolis. Disponível em <http://www.cnv.gov.br/index.php/relatorios-parciais-de-pesquisa >
Depoimento do coronel Paulo Malhães, ex-agente do CIE. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=e2SnsSYG7O0&index=6&list=PL9n0M0Ixl2jeKLaSbfZSrE-594O6Ey5iL >
Estudante de Direito da Universidade de Brasília.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROSA, Mariana Fontoura da. Análise da Ditadura Militar no Brasil através dos conceitos de legalidade e clandestinidade: porque não tivemos uma "Ditabranda" Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 set 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45099/analise-da-ditadura-militar-no-brasil-atraves-dos-conceitos-de-legalidade-e-clandestinidade-porque-nao-tivemos-uma-quot-ditabranda-quot. Acesso em: 23 dez 2024.
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