Resumo: O presente ensaio cuida de relevantes questões referentes à relação entre as inovações promovidas pela Medida Provisória 685, de 21 de julho de 2015, e os direitos fundamentais do contribuinte no Estado Constitucional de Direito Brasileiro. Tem por objetivo, demais disso, fomentar o debate sobre os limites existentes ao Estado arrecadador no que se refere à restrição do direito do cidadão de organizar-se com vistas à redução de sua carga tributária.
Introdução
A medida provisória nº 685, de 21 de julho de 2015, nos seus arts. 7º a 12, criou a obrigação do sujeito passivo informar à administração tributária federal as operações e atos ou negócios jurídicos que acarretem a (i) supressão, (ii) redução ou (iii) diferimento de tributo. A iniciativa, alegadamente, almeja convergir a lida do planejamento tributário no Brasil com as recomendações da OCDE exaradas no plano de ações BEPS (Action plan on Base Erosion and Profit Shifting), mais precisamente com a recomendação nº 12 que abriga a determinação de revelação obrigatória (mandatory disclosure rule) de planejamentos tributários agressivos ou abusivos[1].
Declaração obrigatória de planejamento tributário (mandatory disclosure)
O art. 7º da citada MP determina a peremptoriedade da informação pelo sujeito passivo – contribuinte e responsável tributário – ao Fisco Federal do conjunto de operações realizadas no ano-calendário anterior que redundem em economia tributária. A obrigatoriedade de tal declaração tem seus pressupostos revelados nos três incisos seguintes, a saber: (i) a ausência de razões extratributárias relevantes à operação perpetrada; (ii) a adoção de forma não usual, utilização de negócio jurídico indireto ou utilização de cláusula que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico, por fim, (iii) outros atos ou negócios especificados em ato a cargo da Secretaria de Receita Federal.
A toda evidência, os pressupostos envolvidos no mandatory disclosure são quatro argumentos sabidamente utilizados para desconsideração de planejamento tributário, já conhecidos pelos que estudam e militam na área. Resumidamente, no inciso I, emerge o (a) propósito extratributário, versão sutilmente mais branda do controverso propósito negocial. No inciso II, exsurge o (b) abuso de forma, (c) negócio jurídico indireto e (d) técnica de dissimulação. Conclui-se, em vista disso, que, na prática, toda ou quase toda declaração de planejamento tributário não será reconhecida pela Receita Federal do Brasil, de molde que a medida provisória aludida surgiu para facilitar o mister fiscalizatório do órgão fazendário. O único ponto positivo que, talvez, se pode extrair disso tudo é a incidência de apenas juros de mora nos tributos objetos de declaração obrigatória (art. 8º, da MP 685/15), dispensada a incidência das multas confiscatórias do art. 44, da Lei 9.430/96, hoje amplamente praticadas na fiscalização do planejamento tributário.
Serendipidade do planejamento tributário
Há de se observar, ademais, a consagração pelo art. 7º, I, da MP, daquilo que se pode denominar de serendipidade, colateralidade ou acidentalidade do planejamento tributário, entendimento que, conquanto não revelado às claras e em som audível, impera entre os representantes das Fazendas Públicas quando instados a se manifestar sobre planejamentos tributários. O vocábulo serendipidade designa o fenômeno da descoberta de coisas por acaso. Nessa quadra, a serendipidade do planejamento tributário traduz-se justamente no entendimento segundo o qual a economia tributária só pode ser oponível ao Fisco caso essa não seja a motivação precípua da operação, ato ou negócio jurídico realizado pelo contribuinte. Ora, dizer que um planejamento deve ter razões extratributárias relevantes é o mesmo que dizer que ninguém pode intencionalmente perseguir economia tributária. É dizer que será válida a economia apenas quando for um efeito acidental do comportamento do sujeito passivo da relação jurídico-tributária. Verdadeiro disparate.
Com efeito, caso prospere a medida provisória nesse particular, consagrar-se-á, definitivamente, o teratológico princípio da serendipidade do planejamento tributário que, além de contemplar uma contradição lógica, pois falar em planejamento acidental é um inequívoco oximoro, apresenta incontornável inconstitucionalidade, consubstanciada na subversão da liberdade e livre iniciativa do contribuinte por meio da positivação de uma autêntica legalidade invertida, na qual o Estado pode tudo e o cidadão só pode aquilo que lhe for expressamente permitido.
Entretanto, não se propõe, aqui, delinear os limites semânticos de cada um dos pressupostos para apresentação da declaração obrigatória de planejamento. Feitos esses lacônicos apontamentos, impende chamar a atenção ao elevado grau de imprecisão, fluidez e vagueza de cada um desses conceitos, exaustivamente debatidos na doutrina, mas nem próximo de se chegar a um consenso conceitual. Certo é que, se nem na academia logrou-se definir o âmbito de significação de cada um desses pressupostos, o será impossível ao cidadão contribuinte ou responsável tributário destinatário da novel obrigação de revelação obrigatória de planejamento tributário.
Void-for-vagueness doctrine
É neste cenário caótico que sobressai a importância da void-for-vagueness doctrine como parâmetro de validade das normas produzidas. Referida teoria, de ascendência do direito criminal norte-americano, exige que os atos normativos que limitem direitos fundamentais, para serem válidos, devem oportunizar ao cidadão-médio a compreensão dos seus elementos essenciais, tais como o que está permitido, o que está proibido, qual comportamento deve-se adotar e diante de que situações esse ou aquele comportamento deve ser adotado, quais as consequência do seu descumprimento etc. Dito de outro modo, a mensagem legislativa deve ser transmitida ao seu destinatário, o que só ocorre quando o legislador se vale de termos ou expressões precisos, unívocos, claros e determinados. Caso isso seja inobservado, hipótese em que o legislador regula condutas por meio de expressões nebulosas, plurissignificativas, ambíguas e indeterminadas, isto é, de conteúdo semântico quase indecifrável pelo cidadão-médio, a capacidade reguladora da norma resta prejudicada.
Nessa situação, quando há consideráveis dificuldades para captar a situação legislada, cabe ao judiciário declará-la nula por vaguidez – void-for-vagueness. O fundamento de tal doutrina reside, na ciência jurídica norte-americano, no direito due process of law[2]. No ordenamento constitucional brasileiro, teoria idêntica pode ser extraída dos direitos fundamentais à segurança jurídica e ao devido processo legal (art. 5º, XXXVI e LIV, da Constituição da República), os quais, aqui também, condicionam a repercussão das normas na liberdade e nos bens do cidadão a sua compreensibilidade e precisão.
No caso específico da MP 685/15, a vagueza e imprecisão dos termos utilizados para definir as hipóteses em que é obrigatória a declaração de planejamento tributário são tamanhos a ponto de se chegar à absurda situação de que, ou o sujeito passivo declara tudo que fez e que acarretou redução do seu custo tributário no ano-calendário anterior, ou simplesmente fica à mercê da imposição das gravosas penalidades previstas no art. 12 da norma. Situação de insegurança absolutamente incompatível com o Estado Democrático de Direito.
Conclusão
Pelo exposto, à luz dos direitos e garantias fundamentais do cidadão contribuinte, o único destino certo à MP 685/15 deve ser a rejeição pelo Congresso Nacional, sob pena de se agravar, ainda mais, o cenário caótico de insegurança jurídica no país e de institucionalização do desrespeito dos direitos dos contribuintes. É questão imune a controvérsias a necessidade do combate ao planejamento agressivo e abusivo tal qual recomendado no plano de ação BEPS da OCDE, mas tal combate deve harmonizar-se com as limitações ao poder de tributar e consectários direitos e garantias do contribuinte. Uma medida quejanda deveria, para começar, ser veiculada por veículo normativo próprio, qual seja, lei em sentido formal emanada pelo Congresso Nacional. Demais disso, deveria contemplar taxativamente as hipóteses consideradas como ensejadoras do mandatory disclosure, de sorte a dirimir quaisquer subjetivismos e arbitrariedades na interpretação e aplicação da lei.
Referências bibliográficas
OCDE. Action plan on Base Erosion and Profit shifting. Disponível em : http://www.oecd.org/ctp/BEPSActionPlan.pdf
SCOTUS. Connally v. General Constitution. 1926. Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/269/385/case.html
[1] Disponível para consulta em http://www.oecd.org/ctp/BEPSActionPlan.pdf
[2] Nesse sentido, colaciona-se pronunciamento do Justice Sutherland no caso Connally v. General Construction Co 269 U.S. 385, 391 (1926), julgado pela Suprema Corta Norte-Americana: The terms of a penal statute [...] must be sufficiently explicit to inform those who are subject to it what conduct on their part will render them liable to its penalties… and a statute which either forbids or requires the doing of an act in terms so vague that men of common intelligence must necessarily guess at its meaning and differ as to its application violates the first essential of due process of law. Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/269/385/case.html
Advogado especialista em Direito Tributário e Direito Público, sócio-fundador do escritório Costa Ferreira & Hayashi - Advocacia e Consultoria.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Gustavo Costa. MP 685, serendipidade do planejamento tributário e void-for-vagueness Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 out 2015, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45266/mp-685-serendipidade-do-planejamento-tributario-e-void-for-vagueness. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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