RESUMO: O presente artigo pretende analisar a evolução do sistema processual civil a partir do surgimento das ações coletivas. Para tanto, serão abordados aspectos histórico relativo ao surgimento da tutela coletiva. Após, será retratada a experiência brasileira, ressaltando a preponderância do processo individual até o surgimento do processo coletivo. A partir disso, serão tratadas as fases do processo coletivo na experiência brasileira, mencionando-se seus marcos iniciais. Por fim, serão ressaltados os objetivos do processo coletivo.
Palavras-chaves: Processo Coletivo. Processo Individual. Relações.
INTRODUÇÃO
Inegável que as ações coletivas tornaram-se uma realidade na experiência judiciária brasileira. Mais do que apenas um procedimento envolvendo pluralidade de sujeitos, o processo coletivo é verdadeiro instrumento assecuratório de direitos coletivos, incapazes de serem tutelados pelos tradicionais mecanismos processuais.
Diante da importância da tutela dos direitos difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneo, o processo coletivo constitui-se como importante instrumento de pacificação social, de modo a merecer cada vez mais atenção dos estudiosos do direito.
Não há melhor maneira de entender as particularidades da tutela coletiva, senão por uma análise de sua origem.
1. O SURGIMENTO DAS AÇÕES COLETIVAS
O surgimento das ações coletivas remonta à Idade Romana e ao processo romano. Naquela época, havia as chamadas actiones popularis, ou ações populares, que ultrapassavam os interesses particulares e possibilitavam a discussão de direitos transindividuais. Segundo Donizetti (2010, p. 1), as actiones popularis representaram a “primeira forma de tutela judicial de direitos metaindividuais”.
Entretanto, foi apenas no século XVII, com o modelo inglês da Common Law, que o processo coletivo ganhou forma. As chamadas class actions foram a primeira regulamentação das ações coletivas e permitiram que representantes de determinados grupos demandassem em nome próprio em prol dos interesses destes grupos representados, bem como que fossem demandados pelos mesmos interesses. Tal modelo de ação rompeu com o dogma de que todos os interessados deveriam participar do processo obrigatoriamente.
Como lembra Zavascki (2008, p. 25-26), o aprimoramento das class actions se deu progressivamente. Inicialmente, o direito inglês previa a Bill of Peace, que possibilitava a substituição processual dos interessados por um representante do grupo. A aplicação deste instituto, contudo, foi reduzida, em razão de uma série dificuldades práticas sobre seu alcance, bem como de limitações jurisprudenciais:
Desde o século XVII, os tribunais de equidade (Courts of Chancery) admitiam, no direito inglês, o Bill of Peace, um modelo de demanda que rompia com o princípio segundo o qual todos os sujeitos interessados devem, necessariamente, participar do processo, com o que se passou a permitir, já então, que representantes de determinados grupos de indivíduos atuassem, em nome próprio, demandado por interesses dos representados ou, também, sendo demandados por conta dos mesmos interesses. (ZAVASCKI, 2008, p. 25-26)
Com o aprimoramento das Bill of Peace, provenientes do direito inglês, no direito norte-americano, as class actions surgiram de forma inovadora a partir da Rule 23 das Federal Rules of Civil Procedure.
Como destaca Zavascki (2008, p. 27-28), as class actions norte-americanas permitiam que um representante de classe propusesse uma ação coletiva em defesa dos interesses de toda a classe e em nome de todos os seus membros. Os requisitos para o ingresso de uma class action eram a inviabilidade do litisconsórcio ativo dos interessados, a situação de fato comum a todos os membros da classe, o caráter coletivo do interesse defendido pela classe e a competência do representante na tarefa de defender os interesses da classe.
Zavascki (2008, p. 29) aponta ainda as espécies de demandas possíveis de serem feitas por meio das class actions. As primeiras, injuctions class actions, eram aquelas de natureza declaratória que possuíam obrigações de fazer ou não fazer. As segundas, class actions for damages, eram as demandas que envolviam danos materiais.
Como as class actions tiveram origem em países de Common Law, é necessário destacar que os juízes de tais ordenamentos jurídicos historicamente sempre possuíram uma maior independência e atribuições diversas em relação aos juízes de países com origem na Civil Law.
É importante ressaltar o contexto histórico que possibilitou o surgimento das class actions. A Europa vivia a Revolução Industrial, período de grandes modificações sociais, de intensos choques de interesses entre burguesia e proletariado, de ascensão das massas e de marginalização de diversos segmentos sociais.
Em síntese, portanto, pode-se dizer que na Europa e nos Estados Unidos ocorreram de modo mais acentuado, nas primeiras décadas do século XX, reivindicações sociais pela proteção de interesses de massa, as quais evidenciaram a insuficiência do modelo processual clássico, marcadamente individualista. A regulamentação do processo coletivo insere-se, pois, nesse contexto, como forma de permitir a adequada tutela de bens jurídicos de natureza transindividual, que até então eram quase que desconsiderados pelas ordens jurídicas. (DONIZETTI, 2010, p. 2)
Assim, o processo coletivo teve início em um momento de turbulências sociais, em que o sistema processual vigente, de caráter eminentemente individualista, já não se adaptava ao modelo social existente. Conforme ressaltado por Donizetti (2010, 6-9), o processo coletivo surgiu em um momento em que a sociedade clamava por maior acesso à justiça, maior economia processual e efetivação do direito material.
2. A ORIGEM INDIVIDUALISTA DO PROCESSO BRASILEIRO
O Código Civil de 1916, o Código de Processo Civil de 1939 e o Código de Processo Civil de 1973 tinham como caráter essencial o individualismo, caracterizado pelas ações baseadas em conflitos individuais e proteção do patrimônio particular de cada indivíduo, de modo que o processo coletivo demorou a se desenvolver no ordenamento jurídico brasileiro.
Donizetti (2010, p. 3) ressalta que o Código Civil de Clóvis Beviláqua “teve a intenção deliberada de fechar as portas às tutelas coletivas”. Da mesma maneira os Códigos de Processo Civil de 1939 e o de 1973 também tiveram a ideologia individualista.
Na seara processual, também foi marcado por um ideário liberal-individualista o Código de Processo Civil de 1939, cuja diretriz foi seguida, com técnica mais apurada, pelo Código de Processo Civil de 1973, ainda em vigor.
Em tais Códigos de Processo Civil foi dado enfoque quase que exclusivo aos conflitos individuais do tipo “Tício versus Caio”, não se tratando de conflitos de massa relativos a direitos metaindividuais, tais como o meio ambiente, o patrimônio público e a probidade administrativa. (DONIZETTI, 2010, p. 3)
Desse modo, mostra-se patente que o Código de Processo Civil de 1973 teve como características marcantes o caráter individual de provimento das ações e de tutela jurisdicional, o sistema tripartido de ações, a legitimação ordinária e a disposição para solucionar conflitos concretos.
Conforme a tradicional classificação de Enrico Tulio Liebman, as espécies de provimento de pedidos podem ser classificadas em ações de conhecimento, ações executivas e ações cautelares. Tal classificação, considerada a mais importante e legítima pelo doutrinador italiano, foi utilizada para sustentar o sistema processual civil brasileiro. Entretanto, tais espécies de provimento jurisdicional eram usadas basicamente para os provimentos individuais promovidos pelo próprio interessado.
Além da caracterização do sistema processual civil em um sistema tripartido de ações, pode-se caracterizá-lo como um sistema processual civil de legitimação ordinária, na medida em que a titularidade da ação é do próprio titular. O Código de Processo Civil, em seu artigo 6°, prevê que “ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei”. Tal norma demonstra que a regra no sistema processual civil brasileiro é legitimação ordinária. Assim, é excepcional a legitimação extraordinária, consistente na titularidade da ação para a defesa de direito alheio, apenas nas hipóteses expressamente previstas em lei, também denominada de substituição processual.
Conforme Zavascki (2008, p. 13), tal sistema “foi moldado para atender à prestação da tutela jurisdicional em casos de lesões a direitos subjetivos individuais, mediante demandas promovidas pelo próprio lesado”.
Donizetti (2010, p. 3) aponta como exceções garantidas no Código de Processo Civil de 1973, ainda em vigor, o litisconsórcio, a intervenção de terceiros e a reunião de ações por conexão e continência como a máxima ampliação nos elementos da causa.
Zavascki (2008, p. 14) ressalta outra característica do sistema processual civil de 1973: a sua destinação para sanar conflitos de interesses concretizados. Assim, o sistema processual civil era como “um específico fenômeno de incidência da norma abstrata sobre um suporte fático, já ocorrido ou em vias de ocorrer”. Uma consequência negativa dessa característica reside justamente na falta de previsão de instrumentos para sanar conflitos no plano abstrato.
Assim, o Código de Processo Civil de 1973 é uma norma de essência individualista e concreta, pois se destina basicamente para a resolução de conflitos individualizados e concretizados.
3. AS FASES DO PROCESSO COLETIVO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Com a evolução social e a adequação do sistema jurídico, diversas modificações legislativas foram promovidas no campo do processo civil.
Em virtude disso, essas modificações e adaptações legislativas foram divididas em fases.
A primeira fase foi marcada pela lei da ação civil pública (Lei n° 7.347/1985).
A segunda fase foi marcada pelas normas que buscavam a efetividade do processo, tais como as normas modificadoras do Código de Processo Civil de 1973 que entraram em vigor entre 1994 e 2002.
A terceira fase se caracteriza pelas recentes modificações legislativas em nome da celeridade processual, que afetaram a Constituição Federal e o Código de Processo Civil de 1973, bem como que atingiram o anteprojeto do novo código de processo civil, após a reforma do judiciário e emenda constitucional n°45/2005.
A primeira fase teve como objetivo a introdução da tutela coletiva dos direitos individuais e da tutela dos direitos transindividuais no ordenamento jurídico brasileiro. A Lei da Ação Pública – Lei n°7.347/1985 – trouxe a tutela dos direitos e interesses transindividuais, cuja titularidade é indeterminada. Tal tutela se dá por meio da legitimação extraordinária ou dos substitutos processuais.
Donizetti aponta a Lei da Ação Civil Pública como a revolução processual do ordenamento jurídico:
Mas a revolução processual ocorreu verdadeiramente em 1985, quando um projeto elaborado pelo Ministério Público de São Paulo, com base em projeto anterior dos doutrinadores mencionados acima (Projeto Bierrenbach) e sob a influência indireta do modelo das ações coletivas norte-americanas (class acitons), deu origem à Lei 7.347, que é conhecida Lei da Ação Civil Pública (LACP). Esse diploma legal finalmente trouxe normas processuais diferenciadas, aptas a instrumentalizar a tutela dos direitos transindividuais, o que não era alcançado antes pelo CPC, de caráter exclusivamente individualista, nem pela ação popular, que, como visto, era insatisfatória perante a diversidade de conflitos de massa existentes à época da sua criação. (DONIZETTI, 2010, p. 5)
Quanto à tutela coletiva dos direitos individuais, Zavascki ressalta a importância do Código de Defesa do Consumidor:
O Código de Proteção e Defesa do Consumidor – CDC (Lei n°8.078, de 1990) trouxe, nesse sentido, como contribuição expressiva, a disciplina específica da tutela, nas relações de consumo, dos ‘direito individuais homogêneos’, assim entendidos o conjunto de diversos direitos subjetivos individuais que, embora pertencendo a distintas pessoas, têm a assemelhá-los uma origem comum, o que lhes dá um grau de homogeneidade suficiente para ensejar sua defesa coletiva. Diferentemente do sistema codificado, que prevê tutela conjunta apenas mediante litisconsórcio ativo, a ação civil coletiva permite que tais direitos sejam tutelados em conjunto mediante a técnica da substituição processual. (ZAVASCKI, 2008, p. 16)
A segunda fase teve como marco a preocupação social com a efetividade do processo e marcou profundamente o Código de Processo Civil de 1973 com diversas normas modificadoras do código, tais modificações recursais (Lei n° 8.950/1994), modificações nos procedimentos especiais para ações de consignação em pagamento e de usucapião (Lei n° 8.951/1994), alterações nos procedimentos de conhecimento e cautelar (Lei n° 8.952/1994), modificações na execução (Lei n° 8.953/1994), alterações no recurso de agravo (Lei n° 9.139/1995), alterações na ação monitória (Lei n° 9.079/1995), modificações nos recursos e reexame necessário (Lei n° 10.352/2001) e, novas modificações nos processos de conhecimento e cautelar (Lei n°10.358/2001 e Lei n°10.444/2002).
A terceira e mais recente fase tem como marco a Reforma do Judiciário operada pela Emenda Constitucional n° 45/2005, que teve como emblema o princípio da celeridade processual. Após anos de questionamentos da sociedade quando a demora estatal na resolução dos conflitos e na efetividade do processo, novas mudanças foram feitas com o objetivo de melhorar a qualidade da prestação jurisdicional.
Após breve passagem sobre as principais características do sistema processual civil brasileiro e nas suas mudanças gradativas, fica clara a possibilidade de se alcançar a efetiva prestação jurisdicional por meio dos instrumentos processuais de dimensões coletivas. Entretanto, um sistema de prestação jurisdicional coletivo deve se adaptar de maneira mais perfeita possível ao sistema já existente, de caráter basicamente individual.
Zavascki defende a consolidação do processo coletivo no ordenamento jurídico brasileiro:
O certo é que o subsistema do processo coletivo tem, inegavelmente, um lugar nitidamente destacado no processo civil brasileiro. Trata-se de subsistema com objetivos próprios (a tutela dos direitos coletivos e a tutela coletiva dos direitos), que são alcançados à base de instrumentos próprios (ações civis públicas, ações civis coletivas, ações de controle de constitucionalidade, em suas várias modalidades), fundados em princípios e regras próprios, o que confere ao processo coletivo uma identidade bem definida no cenário processual. (ZAVASCKI, 2008, p. 24)
4. PRINCIPAIS OBJETIVOS DAS AÇÕES COLETIVAS
Dentre os principais objetivos das ações coletivas apontados pela doutrina, Donizetti (2010, p. 6-9) aponta três: o acesso à justiça, a economia processual e a efetivação do direito material.
O acesso à justiça se dá em virtude de que o provimento da tutela jurisdicional coletiva atinge uma determinada massa de forma justa e sem discrepâncias. Além disso, as ações coletivas viabilizam a propositura de ações judiciais que nunca seriam propostas por indivíduos isoladamente.
Já a economia processual é atingida nas ações coletivas a partir do momento em que uma ação coletiva substitui uma infinidade de ações individuais com o mesmo objeto. Assim, há a redução significativa de ações ajuizadas individualmente. Uma consequência da economia processual na propositura de ações coletivas é a redução de decisões contraditórias.
Kazuo Watanabe (2006, p. 29-35) definiu a substituição de múltiplas ações individuais por uma única ação coletiva com uma metáfora interessante. Segundo o processualista, passa-se de um tratamento atomizado dos litígios para uma estrutura molecular, que resulta em economia processual.
A coexistência da ação coletiva, em que uma pretensão de direito material é veiculada molecularmente, com as ações individuais, que processualizam pretensões materiais atomizadas, pertinentes a cada indivíduo, exige, como requisito básico, a determinação da natureza destas últimas e a verificação da compatibilidade entre as distintas pretensões materiais, coletivas e individuais, veiculadas nessas duas espécies de demandas. (WATANABE, 2006, p. 29)
Por fim, as ações coletivas têm como objetivo a efetivação do direito material, que consiste na aplicação do direito tanto em casos concretos, quanto de maneira preventiva e abstrata.
CONCLUSÃO
Embora as ações coletivas nem sempre alcancem os três objetos concomitantemente, é expressiva a importância deste instituto para a modernização da justiça, da celeridade processual e da efetividade no provimento jurisdicional. O processo coletivo já está instituído no ordenamento jurídico brasileiro. O que se busca, no momento, é a sua adaptação e convivência com o processo individual, que possui marcas mais profundas na sociedade e no sistema jurídico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVIM, Eduardo Arruda. Coisa Julgada e Litispendência no Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. In: Direito Processo Coletivo e o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007.
ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000.
DONIZETTI, Elpídio; CERQUEIRA, Marcelo Malheiros. Curso de Processo Coletivo. 1. Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2010. 557 p.
WATANABE, Kazuo. Relação entre demanda coletiva e demandas individuais. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 31, n. 139, p. 28-35, set. 2006.
ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo. 3. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. 319 p.
Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília. Especialista em Processo Civil pelo Instituto Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro. Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PINTO, Esdras Silva. A evolução do sistema processual civil: da predominância das ações individuais ao processo coletivo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 dez 2015, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45643/a-evolucao-do-sistema-processual-civil-da-predominancia-das-acoes-individuais-ao-processo-coletivo. Acesso em: 23 dez 2024.
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