RESUMO: O presente artigo faz um estudo histórico sobre o passado, o presente e o futuro das medidas provisórias ao longo da experiência política e constitucional brasileira, a fim de demonstrar serem elas um importante instrumento de aferição das relações entre Executivo e Legislativo.
PALAVRAS-CHAVE: Estado de Direito; Legalidade; Normas jurídicas primárias, Poder Legislativo; Poder Executivo; Medida provisória; Constituições Federais; Proposta de Emenda à Constituição n. 70/2011.
INTRODUÇÃO
Na repartição das funções estatais, conferiu-se ao Poder Legislativo a responsabilidade pelo processo legislativo de elaboração de normas no ordenamento jurídico brasileiro.
No entanto, na experiência política e constitucional brasileira, foram vários os momentos em que o Poder Executivo lançou-se a elaborar atos normativos primários, dotados de capacidade de inovação normativa, tais como decretos-leis ou medidas provisórias.
A partir da análise das medidas provisórias e de seus antecessores, os decretos-leis ao longo da experiência política e constitucional brasileira, é possível aferir as relações entre o Legislativo e o Executivo.
1. CONSTITUIÇÃO IMPERIAL DE 1824
O Legislativo brasileiro já nasceu fraco em relação ao Executivo. O imperador, além do poder executivo, detinha também o poder moderador, no exercício do qual controlava a então Assembleia Geral, convocando-a ordinária e extraordinariamente, prorrogando e adiando suas sessões, podendo inclusive dissolver a Câmara dos Deputados (Constituição de 1824, art. 101).
Concorrentemente com os deputados e senadores, os ministros de Estado tinham iniciativa de lei, podendo inclusive participar de sua discussão e votação na Casa de que eram membros (Constituição de 1824, arts. 53 e 54).
2. CONSTITUIÇÃO REPUBLICANA DE 1891
Com a proclamação da República e a adoção do sistema de governo presidencialista, especialmente a partir da posse do primeiro presidente eleito em 1894, a relação entre o Legislativo e o Executivo alcançou relativo equilíbrio.
Além das competências legislativas e não legislativas que o então Congresso Nacional detinha no regime anterior, outras lhes foram acrescidas, tais como: reunir-se independente de convocação e deliberar com exclusividade sobre a prorrogação e o adiamento de suas sessões (Constituição de 1891, art. 17); aprovar as nomeações presidenciais aos cargos de membro do Supremo Tribunal Federal, de membro do Tribunal de Contas e de ministro diplomático (Constituição de 1891, arts. 48 e 89); receber denúncia contra o presidente da República e julgá-lo, juntamente com os ministros de Estado, por crime de responsabilidade (Constituição de 1891, arts. 52 e 53), bem assim os membros do Supremo Tribunal Federal (Constituição de 1891, art. 57); resolver definitivamente sobre os tratados e autorizar o Executivo a declarar guerra e a fazer a paz (Constituição de 1891, art. 34).
Em compensação, o chefe do Executivo continuava a convocar extraordinariamente o Congresso (Constituição de 1891, art. 48), a apresentar projetos de lei (Constituição de 1891, art. 29)[1] e a sancionar os projetos de lei aprovados pelo Congresso. O veto do Executivo aos projetos de lei aprovados pelo Legislativo, porém, passou a ser somente expresso (Constituição de 1891, art. 37).
3. CONSTITUIÇÃO DE 1934
Com a revolução encabeçada por Getúlio Vargas em 1930, menos de quarenta anos depois, a balança voltou a pender para o lado do Executivo.
Até a promulgação da Constituição de 1934, Vargas governou por decretos-leis (PINTO, 2009). Esta última Constituição, por sua vez, elaborada sob os auspícios de Vargas, manteve a ascendência do Executivo sobre o Legislativo.
O presidente da República passou a deter a exclusividade na iniciativa de certas leis, inclusive orçamentárias (Constituição de 1934, arts. 41 e 50).
Ademais, o Senado perdeu a competência para julgar o presidente da República, os ministros de Estado e os ministros do Supremo Tribunal Federal. Essa atribuição foi transferida para um tribunal especial, constituído de três ministros do Supremo Tribunal Federal, três membros da Câmara dos Deputados e três membros do Senado. Até mesmo a decisão de receber a denúncia contra o presidente da República podia ser transferida para esse tribunal especial, caso a Câmara dos Deputados sobre isso não deliberasse no prazo de trinta dias (Constituição de 1934, arts. 58, 61 e 75). A Câmara dos Deputados e o Senado sequer podiam mais decretar a perda do mandato de seus membros. Tal atribuição foi transferida para o recém-criado Superior Tribunal Eleitoral, então denominado “Tribunal Superior da Justiça Eleitoral” (Constituição de 1934, arts. 33 e 39).
Em contrapartida, o Legislativo ganhou a competência para julgar as contas e fixar os subsídios do presidente da República (Constituição de 1934, art. 40), criar comissões de inquérito e convocar ministros de Estado (Constituição de 1934, arts. 36 e 37).
4. CONSTITUIÇÃO DE 1937
Finalmente, a Constituição de 1937, outorgada por Vargas, dissolveu a Câmara dos Deputados e o Senado Federal e autorizou o presidente da República a governar por decretos-leis, o que Vargas voltou a fazer até ser destituído por seus ministros militares em 29 de outubro de 1945.
Essa Constituição, apelidada de “polaca”, permitia ainda a Vargas editar decretos-leis sobre as matérias de competência da União, com as exceções previstas em seu art. 13, entre as quais se incluíam as reformas constitucionais, a legislação eleitoral, os impostos e o orçamento.
Em todo caso, o presidente da República podia livremente editar decretos-leis sobre a organização do governo, da administração pública e das Forças Armadas (Constituição de 1937, art. 14).
5. CONSTITUIÇÃO DE 1946
Com a promulgação da Constituição de 1946, a relação entre o Legislativo e o Executivo foi reequilibrada.
O presidente da República não mais podia legislar por decretos-leis, sua competência regulamentar voltou a circunscrever-se aos limites da lei e seu poder de diretamente interferir no processo legislativo foi suprimido, assim como perdeu a prerrogativa de propor emendas à Constituição a ele atribuída pela Constituição de 1937 (Constituição de 1946, art. 217).
O chefe do executivo, entretanto, manteve a exclusividade da iniciativa de certas leis, inclusive orçamentárias (Constituição de 1946, arts. 67 e 87).
No que concerne às demais funções, o Congresso recuperou a prerrogativa de julgar as contas do presidente da República, então em votação secreta, e de fixar seus subsídios (Constituição de 1946, art. 66, c.c. art. 43), bem como de criar comissões de inquérito (Constituição de 1946, art. 53).
6. CONSTITUIÇÕES DE 1967 E 1969
Com o golpe militar de 1964 e a edição de sucessivos Atos Institucionais que alteraram substancialmente a Constituição de 1946, alterações mais tarde incorporadas às Constituições de 1967 e 1969, a balança voltou a pender para o lado do Executivo.
Por força do Ato Institucional n. 5/1968, decretado o recesso do Congresso Nacional, o presidente da República assumia o poder de legislar sobre toda e qualquer matéria.
Além disso, foram reintroduzidos, com nova roupagem, os decretos-leis. O presidente da República, teoricamente em casos de urgência ou de interesse público relevante, desde que mão resultasse em aumento de despesa, podia editar decretos com força de lei, inicialmente apenas sobre segurança nacional e finanças públicas; mais tarde, a Constituição de 1969 adicionou a criação de cargos públicos e a fixação de vencimentos. Uma vez publicado, o decreto tinha vigência imediata. A partir daí o Congresso dispunha de sessenta dias para aprova-lo ou rejeitá-lo, esgotados os quais, sem deliberação, operava-se uma espécie de aprovação tácita (Constituição de 1967, art. 58; Constituição de 1969, art. 55).
Posteriormente, visando a atenuar o caráter autoritário da medida, a Emenda Constitucional n. 22/1982 estabeleceu que, na falta de deliberação no prazo fixado, o decreto-lei fosse incluído automaticamente na ordem do dia, em regime de urgência, nas dez sessões subsequentes, em dias sucessivos. Somente após isso, se ainda não tivesse sido apreciado, era que o decreto-lei estava definitivamente aprovado. Afora isso, o presidente da República podia enviar ao Congresso Nacional projetos de lei sobre qualquer matéria, podendo determinar que fossem apreciados no prazo máximo de 45 dias pela Câmara dos Deputados e em igual prazo pelo Senado, esgotados os quais, sem deliberação, eram tidos por aprovados.
O presidente da República podia igualmente atribuir urgência aos projetos de lei de sua autoria, caso em que eles tinham de ser apreciados em apenas quarenta dias em sessões conjuntas do Congresso (Constituição de 1967, art. 54; Constituição de 1969, art. 51).
Mais adiante, de novo visando a mitigar o caráter autoritário da medida, a Emenda Constitucional n. 22/1982 estabeleceu, para a apreciação congressual desses projetos de lei, o mesmo procedimento que determinou para o exame dos decretos-leis: esgotados os prazos, os projetos eram incluídos automaticamente na ordem do dia, em regime de urgência, nas dez sessões subsequentes, em dias sucessivos; somente após isso, se ainda não tivessem sido apreciados, os projetos eram havidos por definitivamente aprovados.
Ademais, a competência do presidente da República de iniciar com exclusividade as leis foi ampliada consideravelmente,[2] recuperando o chefe do Executivo a prerrogativa de propor emendas à Constituição (Constituição de 1967, arts. 50, 60 e 67; Constituição de 1969, arts. 50, 57 e 65).
7. CONSTITUIÇÃO DE 1988
Finalmente, com a redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988, a relação entre o Legislativo e Executivo foi outra vez reequilibrada.
Os constituintes do período 1987-1988, ao mesmo tempo em que procuraram fortalecer a representação política por meio do Congresso Nacional, buscaram assegurar a governabilidade, evitando assim a instabilidade política que caracterizou o período democrático de 1946 a 1964. Os poderes legislativos do presidente da República foram, portanto, conservados basicamente intactos.
O presidente da República continua legislando por decreto, ainda que com maiores limitações.
Em caso de relevância e urgência, pode editar medida provisória com força de lei. Inicialmente, não havia qualquer restrição material à adoção dessas medidas, que perdiam a eficácia se não fossem aprovadas pelo Congresso Nacional no prazo de trinta dias contado de sua publicação (Constituição de 1988, art. 62, na redação original). Foi suprimida, destarte, a possibilidade de aprovação tácita. O presidente, todavia, podia infindavelmente reeditar a medida provisória que perdesse a eficácia por decurso de prazo. Mais tarde, entretanto, a Emenda Constitucional n. 32/2001 impôs várias limitações materiais ao poder do chefe do Executivo de adotar medidas provisórias e ampliou para 120 dias o prazo dentro do qual o Congresso deve apreciá-las,[3] além de vedar expressamente a reedição de medidas rejeitadas ou que tenham perdido a eficácia por decurso de prazo. Em compensação, estabeleceu que, não examinadas no prazo de 45 dias, as medidas provisórias entram em regime de urgência, sobrestando as demais deliberações legislativas. A decisão do então presidente da Câmara Michel Temer na Questão de Ordem n. 411/2009, referendada pelo ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal no Mandado de Segurança n. 27.931-1, no entanto, praticamente suprimiu o instituto do sobrestamento no âmbito da Câmara dos Deputados. Por força daquela decisão, a não apreciação de medidas provisórias no prazo constitucional somente sobrestam as deliberações sobre matéria que possam ser objeto de tais medidas. O sobrestamento, portanto, não alcança propostas de emendas à Constituição, projetos de lei complementar, projetos de decreto legislativo, projetos de resolução e até mesmo projetos de lei ordinária que disponham sobre matérias que não possam ser objeto de medidas provisórias (PINTO, 2011).
Afora isso, a competência exclusiva do presidente da República de iniciar leis, sensivelmente ampliada no regime anterior, foi mantida basicamente com a mesma amplitude no atual regime, assim como foi conservada a prerrogativa do chefe do Executivo de iniciar reformas da Constituição (Constituição de 1988, arts. 60 e 61, § 1º).
De igual modo, foi mantida a competência do presidente da República de atribuir urgência aos projetos de lei de sua autoria. Esgotado o prazo constitucional, opera-se o trancamento da pauta na Casa em que se encontrar tramitando a matéria, não sendo mais tais proposições aprovadas por decurso de prazo (Constituição de 1988, art. 64, §§ 1º ao 4º).
Por derradeiro, o presidente da República segue abrindo créditos extraordinários por meio de medidas provisórias. A simples leitura das ementas das inúmeras medidas provisórias editadas com esse fim é bastante para levar à conclusão de que o chefe do Executivo não vem observando o disposto no art. 167, § 3º, da Constituição de 1988, nos termos do qual “a abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade”. O Supremo Tribunal Federal, sem embargo, tem suspendido, por meio de cautelar em ação direta de inconstitucionalidade, a eficácia de tais medidas provisórias, a exemplo do que ocorreu com a Medida Provisória n. 405/2007 (ADI n. 4.048).[4]
8. PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 70/2011
Encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados, pronta para inclusão na ordem do dia do Plenário, a Proposta de Emenda à Constituição n. 70/2011, que altera o procedimento de apreciação das medidas provisórias pelo Congresso Nacional.
Uma das principais alterações propostas cria um juízo de admissibilidade das medidas provisórias, que passaria a ser exercida pela Comissão de Constituição e Justiça de cada Casa do Congresso.
Nos termos da Proposta de Emenda à Constituição n. 70/2011, inadmitida a medida provisória pela Comissão, ela é transformada em projeto de lei em regime de urgência, caso em que as relações jurídicas decorrentes devem ser disciplinadas por decreto legislativo.
Difere, portanto, da Proposta de Emenda à Constituição n. 511/2006, aprovada em primeiro turno pela Câmara dos Deputados, na forma da qual as medidas provisórias somente ganhariam força de lei depois de admitidas pela Comissão de Constituição e Justiça da Casa do Congresso em que iniciasse sua apreciação.
Priorizada pelo atual presidente da Câmara, a Proposta de Emenda à Constituição n. 70/2011, se aprovada, causaria maior instabilidade jurídica, inclusive em relação ao regime atual. Isso porque uma medida provisória, ao ser editada, ganharia força de lei, alterando o status quo. Contudo, em seguida, poderia perder essa condição caso fosse inadmitida pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, o que resultaria em nova alteração no status quo. O status quo, por sua vez, estaria sujeito a uma nova alteração posteriormente, na hipótese de o projeto de lei, no qual se convertera a medida provisória, venha a ser aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pelo presidente da República.
CONCLUSÃO
Observa-se, a par de todo o exposto, que as medidas provisórias constituem em importante instrumento de aferição da relação entre Legislativo e Executivo, as quais só podem ser adequadamente entendidas no arcabouço dessa relação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PINTO, Julio R. S. Poder Legislativo brasileiro: institutos e processos. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
__________. Sistema político e comportamento parlamentar. Brasília: Consulex, 2011.
[1] Na verdade, como já se viu, no regime anterior eram os ministros de Estado que tinham inciativa legislativa.
[2] A Emenda Constitucional 11/1978 possibilitou que o orçamento fosse aprovado por decreto-lei, que não permitia ser emendado.
[3] Na verdade, a Emenda Constitucional n. 32/2001 fixa o prazo de sessenta dias, prorrogável por igual período. Porém, como essa prorrogação é automática, o prazo efetivamente é de 120 dias.
[4] De acordo como ministro Celso de Mello, entre 1º de janeiro de 2007 e 17 de abril de 2008, o governo editou 23 medidas provisórias abrindo créditos extraordinários que somaram cerca de R$ 62,5 bilhões ou mais de dez por cento do orçamento da União de 2007, desconsiderada a dívida pública (ADI n. 4.048).
Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília. Especialista em Processo Civil pelo Instituto Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro. Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PINTO, Esdras Silva. Medidas provisórias ao longo da experiência política e constitucional brasileira como importante instrumento de aferição das relações entre executivo e legislativo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 dez 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45671/medidas-provisorias-ao-longo-da-experiencia-politica-e-constitucional-brasileira-como-importante-instrumento-de-afericao-das-relacoes-entre-executivo-e-legislativo. Acesso em: 23 dez 2024.
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