Resumo: Embora não seja possível aos cidadãos influenciar de maneira direta e determinante nas decisões judiciais, parte delas também se destina ao povo, já que podem ser entendidas como verdadeiras prestações de contas dos atos judiciais. Ocorre que, possuindo o Brasil sistema jurídico amparado principalmente na Civil Law, a existência de decisões conflitantes acerca de temas idênticos minimiza a função extraprocessual das decisões. O novo Código de Processo Civil, ao adotar sistema de precedentes com características próximas ao Common Law, poderá influenciar positivamente na melhoria do problema apontado.
Palavras-chave: Função extraprocessual das decisões judiciais. Precedentes judiciais. Novo Código de Processo Civil.
Abstract: Although it is not possible for citizens to influence direct and decisive way in judicial decisions , some of which also is for people , as can be understood as true checks and balances of judicial acts . That is , possessing the Brazil supported legal system mainly in Civil Law , the existence of conflicting decisions on the same themes minimizes extraprocessual basis of the decisions . The new Civil Procedure Code , by adopting previous system with similar characteristics to the common law , can positively influence the improvement of the problem mentioned .
Keywords: extraprocessual function of judgments. Judicial precedents . New Civil Procedure Code .
Sumário: 1. O Poder Judiciário como parte da administração pública. 2. A fundamentação das decisões e o sistema de precedentes do novo Código de Processo Civil. Considerações finais. Referências.
Introdução
O estudo aqui apresentado foi desenvolvido por meio de pesquisa bibliográfica. Ele se dirige aos operadores do Direito de modo geral, contudo, traz uma reflexão que beneficia diretamente a sociedade como um todo, na medida em que considera que a decisão judicial, mesmo dirigindo-se de forma direta somente às partes que litigam no processo, se destina em parte à toda sociedade, e esta parte será reforçada com o sistema de precedentes adotado no novo Código de Processo Civil.
A reflexão se desenvolve em dois tópicos, primeiramente, fala do Poder Judiciário como sendo parte da administração pública, cujo cliente é o cidadão brasileiro, logo, deve tratá-lo como tal. A reflexão tem continuidade no tópico dois tratando da fundamentação das decisões e o sistema de precedentes do novo Código de Processo Civil, mostrando que a existência de posicionamentos judiciais divergentes acerca do mesmo tema acaba por refletir negativamente pois gera insegurança no cidadão, dificulta a fiscalização da atividade jurisdicional, contrariando os princípios administrativos constitucionalmente previstos.
1. O Poder Judiciário como parte da administração pública
O modelo de administração pública burocrática previsto inicialmente na Constituição Federal de 1988 – CF, marcado principalmente pela rigidez de procedimentos, embora eficaz no controle de abusos se mostrou ineficiente e incapaz de servir cidadãos como verdadeiros clientes, o que se fazia necessário com o aumento de atribuições do Estado, resultando na alteração para o modelo gerencial, conceito próximo ao aplicado no setor privado.
A reforma no modelo administrativo brasileiro ocorreu principalmente com a edição da Emenda Constitucional n. 19, de 4 de junho de 1998, que inaugurou uma série de medidas a serem tomadas, tendo como meta a criação de uma administração pública gerencial baseada em eficiência, voltada para o controle de resultados e descentralizada.
Alterado pela Emenda Constitucional n. 19, o caput do artigo 37 da CF prevê que “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.
O Poder Judiciário, integrante da administração pública, também se submete aos princípios previstos no artigo 37 da CF, o que fez surgir a necessidade de produção e publicação de dados sobre sua atuação, a fim de possibilitar a medida de sua eficiência, bem como o planejamento e controle de metas, ações necessárias em se tratando de modelo gerencial de gestão.
Avanços significativos foram alcançados após a criação do Conselho Nacional de Justiça – CNJ que reúne e divulga dados sobre orçamento, recursos humanos, litigiosidade, congestionamento, produtividade, dentre outros que, embora necessários, se referem à área administrativa e não ao teor das decisões judiciais proferidas.
2. A fundamentação das decisões e o sistema de precedentes do novo Código de Processo Civil
Atualmente, a possibilidade de assuntos idênticos serem tratados de forma diversa, ou até mesmo antagônica, não é rara quando se observa a fundamentação de julgados, algumas vezes provenientes do mesmo Tribunal.
Toda decisão judicial deve ser fundamentada e esta fundamentação tem dupla função, a endoprocessual, que atinge as partes de um processo e a exoprocessual, destinada à sociedade.
Primeiramente, fala-se numa função endoprocessual, segundo a qual a fundamentação permite que as partes, conhecendo as razões que formara o convencimento do magistrado, possam saber se foi feita uma análise apurada da causa, a fim de controlar a decisão por meio dos recursos cabíveis, bem como para que os juízes de hierarquia superior tenham subsídios para reformar ou manter essa decisão.
Fala-se ainda numa função exoprocessual ou extraprocessual, pelas qual a fundamentação viabiliza o controle da decisão do magistrado pela via difusa da democracia participativa, exercida pelo povo em cujo nome a sentença é pronunciada. Não se pode esquecer que o magistrado exerce parte do poder que lhe é atribuído (o poder jurisdicional), mas que pertence, por força do parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal, ao povo (Didier, 2015).
A existência de posicionamentos judiciais divergentes acerca do mesmo tema acaba por refletir negativamente já que, além de gerar insegurança no cidadão, diminui o efeito exoprocessual da decisão judicial, contrariando os princípios administrativos constitucionalmente previstos ao dificultar a fiscalização da atividade jurisdicional.
O novo Código de Processo Civil – CPC, que entrará em vigor em março de 2016, determina no caput de seu artigo 926 que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.
É certo que a fundamentação é um dos elementos essenciais da decisão judicial e sua ausência acarreta a nulidade de toda a decisão, conforme impõe o inciso IX do artigo 93 da CF.
Com a vigência do novo Código de Processo Civil, será considerada não fundamentada e, portanto, nula, a decisão que se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos ou deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento (art. 489, §1º, incisos V e VI, CPC).
Depreende-se dos artigos legais mencionados a relevância que assume o precedente judicial. Mas o que pode ser considerado um precedente?
O “precedente é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos” (Didier, 2015).
A decisão judicial deve conter, além do relatório, os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito e um dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeteram (art. 489 do CPC).
O dispositivo destina-se às partes, a resolver o problema concreto, já a fundamentação, além de justificar a decisão apresentada no dispositivo, destina-se também a todos os cidadãos ao expor a posição judicial acerca de fatos e direitos, gerando o precedente.
A fundamentação de uma decisão tem por função resolver o conflito concreto existente entre as partes que litigam. Mas tem também a função de ordem institucional, dirigida à sociedade, necessariamente com eficácia erga omnes, para apresentar um modelo de solução para outros casos semelhantes ao analisado (Mitidiero, 2012).
O precedente pode ser entendido como a razão de uma determinada decisão, a ratio deciendi – ou, para os norte-americanos, a holding. O enunciado n. 168 do Fórum Permanente de Processualistas Civis esclarece que são os fundamentos determinantes de um julgamento que produzem o efeito vinculante de precedente.
Trata-se de norma geral, ainda que construída a partir de um caso concreto, isto porque a tese jurídica (ratio deciendi) se depreende do caso específico e pode ser aplicada em outras situações concretas que se assemelhem àquela onde foi construída. Ou seja, da solução de um caso particular concreto se extrai uma norma que pode ser generalizada. São efeitos ex lege, anexos da decisão judicial (Didier, 2015).
O artigo 927 do CPC apresenta o rol de precedentes que são obrigatórios e como tal devem ser aplicados pelo juiz independente de qualquer provocação da parte, e são eles: as decisões do STF em controle concentrado de constitucionalidade, os enunciados de súmula vinculante, os acórdãos em incidente de assunção de competência ou resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recurso extraordinário e especial repetitivos, os enunciados das súmulas do STF em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça – STJ em matéria infraconstitucional e, por fim, a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
Assim como os Tribunais devem seguir os precedentes das cortes superiores, além de seus próprios precedentes, impõe-se ao juiz a obrigação de observar a orientação do plenário ou do órgão especial do Tribunal ao qual estiver vinculado sob pena de, não o fazendo, ser considerada nula a decisão por ausência de fundamentação (art. 489, §1º, VI, CPC, c/c art. 93, IX, CF).
Além dos precedentes vinculantes há também os persuasivos que, embora não obrigue nenhum magistrado a segui-los, constituem indício de solução racional e socialmente adequada para o caso. De igual modo, será considerada não fundamentada a decisão que deixar de seguir o precedente invocado sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou superação do entendimento (art. 489, §1º, VI, CPC).
Embora possa afastar a aplicação do precedente apresentado pela parte, o julgador deverá, para tanto, demonstrar de forma clara a distinção do caso sob julgamento em relação àquele invocado.
Quando ocorrer diferença entre o caso concreto analisado e o paradigma invocado pela parte, seja por ausência de coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base ao precedente, ou mesmo por haver alguma peculiaridade que diferencie o caso sob julgamento, fala-se em distinguishing (ou distinguish), que possibilita ao julgador afastar o precedente apresentado (Souza, 2007).
Importa observar que os precedentes não são imutáveis e a superação pode se dar por meio de duas técnicas, a overruling e a overriding.
Overruling é a técnica através da qual um precedente perde a sua força vinculante e é substituído (overruled) por outro precedente. O próprio tribunal, que firmou o precedente pode abandoná-lo em julgamento futuro, caracterizando o overruling.
(...)
Há overriding quando o tribunal apenas limita o âmbito de incidência de um precedente, em função da superveniência de uma regra ou princípio legal. No overriding, portanto, não há superação total do precedente, mas apenas uma superação parcial. É uma espécie de revogação parcial (Didier, 2015).
Tem-se, assim, que o respeito ao precedente envolve o ato de segui-los, distingui-los ou revogá-los, jamais ignorá-los (Barboza, 2014).
Quanto mais uniformizada a jurisprudência mais forte a segurança jurídica, garantindo ao jurisdicionado um modelo seguro de conduta, induzindo confiança, possibilitando uma expectativa legítima acerca da atuação judicial. A orientação jurisprudencial predominante em um determinado momento presta-se a que o jurisdicionado decida se vale ou não a pena recorrer ao Poder Judiciário em busca do reconhecimento de determinado direito (Madeira, 2011).
Não é razoável admitir-se que o mesmo caso concreto receba decisões diferentes ao ser submetido ao Poder Judiciário. A vinculatividade dos precedentes é justificada pela necessidade de igualdade e a igualdade é atingida através da seleção de aspectos do caso que deve ser julgado, que devem se considerados relevantes, para que esse caso seja considerado semelhante a outro, e decidido da mesma forma (Wambier, 2009).
Considerações finais
Como parte da administração pública também se aplica ao Poder Judiciário o princípio da não surpresa, que possibilita aos jurisdicionados não serem surpreendidos com decisões inesperadas, ideia que ganha relevante reforço com a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil.
Ao impor o dever de estabilidade, coerência e integridade às decisões judiciais, além de fortalecer a segurança jurídica, o que poderá aumentar a confiança no Poder Judiciário, o Código de Processo Civil prestigia também a função extraprocessual da decisão judicial, possibilitando o acompanhamento das decisões judiciais pelo povo, de quem o poder emana.
Além de que, a jurisprudência estável, íntegra e coerente apresenta-se como verdadeira accountability, como prestação de contas pelo Poder Judiciário acerca de suas ações, alinhando-se ao modelo gerencial administrativo e o Estado democrático de direito.
Referências:
Barboza, Estefânia Maria de Queiroz. Precedentes judiciais e segurança jurídica – fundamentos e possibilidades para a jurisdição constitucional brasileira. São Paulo: Saraiva, 2014.
Didier Jr, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: teoria de prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Alexandre de Oliveira – 10 ed. Salvador: Ed. Jus Podivim, 2015.
Madeira, Daniela Pereira. A força da jurisprudência. O novo processo civil brasileiro (direito em expectativa): (reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil. Coord.: Luiz Fux. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
Mitidiero, Daniel. Fundamentação e precedente – dois discursos a partir da decisão judicial. São Paulo: RT, 2012.
Souza, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Curitiba: Juruá, 2007.
Wambier, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do direito: civil law e common law. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, v. 172, ano 34, p. 129, jun. 2009.
Servidora do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia. Graduada em Direito pela Avec. Pós-graduada em Processo Civil pela FAP e em Gestão Pública com ênfase em administração judiciária pela Emeron.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AZEVEDO, Vanessa Cristina Ramos de. A função extraprocessual da decisão judicial e o novo Código de Processo Civil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 dez 2015, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45718/a-funcao-extraprocessual-da-decisao-judicial-e-o-novo-codigo-de-processo-civil. Acesso em: 22 dez 2024.
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