Resumo: O foco principal desse artigo é a abordagem das denominadas “Fugas Heterônomas de Jurisdição ou Fugas Negativas de Atuação Jurisdicional" como consequência da apatia, tecnicismo sem objetivos práticos e conveniência que vem tomando o nosso judiciário. Já sabemos que, existem situações em que os próprios destinatários da prestação jurisdicional, resolvem que não querem a atuação judicante a seu favor, e buscam meios de fugir do alcance dessa tutela judicial, através dos chamados meios de ‘fuga autônomos da atuação judicante’, como por exemplo, a mediação, arbitragem e a conciliação. Há, porém, de outro lado, uma conduta negativa/omissiva do próprio judiciário em se esquivar de cumprir o seu papel de concretizador da paz social, e é este o ponto que abordaremos com maior ênfase aqui.
Palavras Chave: Fugas. Tecnicismo. Judiciário. Reserva. Pré-questionamento.
De longa data, muito se tem estudado a respeito de um fenômeno social e jurídico, denominado de ‘fuga dos tribunais ou fuga do judiciário’. Esse fenômeno, basicamente, se desencadeia na trilogia ‘arbitragem, mediação e conciliação’, que se tratam de mecanismos de solução de conflitos, onde os maiores interessados na causa, os próprios envolvidos, ali mesmo, entre si, resolvem que não levarão aquela questão jurídico-social ou jurídico-política às estranhas da Jurisdição Institucionalizada, mas sim, buscarão solucioná-la, como pessoas seguras que sabem o que querem e sabem o porque querem isso, mais ainda, sabem os benefícios desta escolha. Desse modo, seja diretamente – sem interferência de mais ninguém – ou mesmo que com a participação de um terceiro, um árbitro, de preferência que seja ‘expert’ na temática envolvida, em suma, o que essas pessoas buscam é: ‘afastar-se do judiciário, um escape frente à atuação da Instituição Justiça nas suas relações e negócios, uma verdadeira fuga dos jurisdicionados’.
Isso, logicamente, é muito bom para os nossos agentes judicantes, principalmente sob o aspecto organizatório e estrutural, pois ajuda a desafogar o sistema. Por outro lado, é preocupante, pois demonstra que a confiança e credibilidade das pessoas em nossa Instituição Justiça está diminuindo, e diminuindo ao ponto de provocar o referido fenômeno privatizatório das soluções de conflitos, diminuindo ao ponto de confiarem mais num indivíduo que, a priori, não se preparou tão quanto um agente da justiça para uma tarefa que, substancialmente, deveria ser este especialista, todavia, ao invés disso, optam por colocar as cartas na mesa, sem tecnicismos ou manobras burocraticistas – sem capa nem toga, mas com sede e gana de ‘pacificação social’, desejo de restabelecer a ordem, para que vidas continuem, não parem anos e anos a fio por conta de um conflito.
Como se nota nesses casos, os agentes aqui são os próprios interessados buscando fomentar essa pacificação entre si, os próprios destinatários da pacificação social, utilizando mecanismos como o da ‘arbitragem, mediação ou conciliação’, não por outro motivo, entendemos por denominá-los de ‘trilogia jurídica de fuga autônoma’, vez que os verdadeiros envolvidos, legítimos destinatários da tutela jurisdicional e titulares da pretensão resistida resolvem que querem a resolução sem a atuação do judiciário em suas vidas, fogem com suas pretensões jurídicas para longe do alcance dessas mãos escorregadias da ‘moça de olhos vendados’.
Mas porque isso? Porque alguém se esquivaria de entregar os seus infortúnios jurídico-sociais àquele que deveria ser o nosso maior símbolo institucionalizado de proteção e restauração de conflitos? Ora, não é tão simples assim, e as questões são muitas, sendo uma delas a morosidade do sistema judiciário, o excesso de vicissitudes e o burocrativismo exacerbado das demandas judiciais. Para muitos, o Judiciário tem mais se aproximado de um Jogo de tabuleiro, onde se buscam derrubar peões estrategicamente, onde se preocupa mais com as minuciosidades formais e procedimentais do que mesmo com o dever de se fazer justiça, com a obrigação de amparar a pretensão do ser humano, de pacificar as paixões sociais, e de restaurar não só a paz social, mas emocional, psíquica, financeira e até física, pois não há quem discorde que um processo judicial é em muito desgastante para o cidadão lesado em seu direito e vilipendiado em sua dignidade.
O autor Silvio de Salvo Venosa (2005, p. 01), juiz aposentado e advogado, destaca que “a argumentação das decisões judiciárias não tem sido convincente e adequada. Para essa situação indesejada concorrem a pletora de feitos, o despreparo do magistrado, seu noviciado, inexperiência e insuficiente vivência das questões sociais, sua postura burocrática e por vezes excessivamente conservadora ou sua apatia perante as rápidas transformações sociais e políticas”. O referido autor, ainda fala que a demora dos processos judiciais assusta as grandes marcas empresariais, que acabam tendo uma exposição midiática exacerbada dado o longo tempo em que vêem seus patrimônios, muitas vezes, totalmente restringidos, os danos à reputação empresarial no meio empreendedor, a evacuação de investidores, queda nas ações financeiras, pois, segundo o próprio Venosa “qualquer processo judicial entre empresas desse nível expõe sua marca, deprecia seus produtos e serviços e prejudica a atuação mercadológica de cada uma delas”. Ou seja, acaba por trazer prejuízos imensuráveis.
Mas o ponto principal do presente artigo não é este, é que temos vislumbrado, por outro lado, uma segunda vertente desse fenômeno, a qual classificamos de “Fuga Heterônoma de Jurisdição ou Fuga Negativa de Atuação Jurisdicional”.
Como já dito acima, há situações em que os próprios destinatários da prestação jurisdicional, resolvem que não querem a atuação judicante a seu favor, e buscam meios de fugir do alcance da tutela judicial, através dos chamados meios de ‘fuga autônomos da atuação judicante’. Há, porém, de outro lado, uma conduta negativa ou omissiva do próprio judiciário em se esquivar de cumprir o seu papel de concretizador da paz social, seja através de mecanismos restritivos como o do ‘prequestionamento’, os institutos da ‘repercussão geral’ e dos ‘recursos repetitivos’, ou mesmo através das supostas ‘irregularidades processuais’, que de maneira tosca, às vezes se sobrepõem ao próprio ser humano, quando poderiam, tranquilamente, serem saneadas, sem frustrar a expectativa dos vitimados.
Recentemente, vimos, por exemplo, muito veiculado na mídia, o caso de uma condenação criminal sendo anulada, pelo fato de que, quando o réu prestou o depoimento, estava a fazer uso de algemas. Ora, não me parece razoável imaginar que, o uso de algemas, por si só, possa prejudicar o depoimento de um preso, poderíamos até questionar sim, se isso não seria desnecessário ou mesmo se violaria a dignidade do preso. Todavia, até mesmo os direitos fundamentais sofrem restrições em situações excepcionais, e um processo criminal é uma situação excepcional, portanto se de um lado há a dignidade do preso, por outro há a segurança dos presentes à audiência, dos agentes penitenciários que o transportam, e até mesmo de defensores, jurados, advogados, promotores e do próprio magistrado e seus escrivães: o direito à preservação á vida e integridade destes. Lembro-me, por exemplo, de um caso em que, um acusado, usando de oportunismo surrupiou uma caneta na mesa da delegada, a feriu e conseguiu fugir. Portanto, são situações excepcionais. Pensamos que, seria mais alinhado aos princípios basilares do direito e do processo, punir os infratores do abuso, e sendo claramente um ato que não macula o depoimento, fosse este sanado, inclusive face o cotejo com as demais evidências dos autos.
O que queremos demonstrar é que esse tipo de conduta inequivocadamente se caracteriza com um dos tipos de “fuga heterônoma de jurisdição”, uma vez que, não mais os destinatários da prestação judicial fogem da tutela judicante, mas agora é o próprio magistrado investido da judicatura, dando fuga ao seu papel de concretizar a justiça, e trazer paz social, segurança jurídica, atendendo ao sentimento da coletividade de que ali, efetivamente, estar-se-á a produzir decisões justas e coerentes, ao invés de monstros jurídicos, que mais parecem quimeras jurisprudenciais.
Outro caso que podemos citar é o uso indiscriminado e desinteressado da chamada ‘clausula de reserva administrativa’, ou mesmo do ‘princípio da soberania das bancas examinadoras’, onde os magistrados sequer buscam realmente entender o que, na prática, ocorrera e já tão logo e de plano, indeferem impiedosamente praticamente a maioria dos pleitos judiciais versando sobre concursos públicos pela via do writ, entendendo da maneira mais abrangente, conveniente e irresponsável possível que tudo passou a integrar o conceito de mérito, e, quanto à análise dos aspectos de legalidade, as abusividades ou arbitrariedades cometidas por essas instituições praticamente desapareceram desde então.
Portanto, as “fugas heterônomas de jurisdição” são atos ou práticas reincidentes, oriundos do próprio judiciário, que dão ensejo a uma cultura omissiva ou negativista de atuação, visando justamente criar uma ‘descrença processual’ nos interessados, de modo a gerar um desestímulo quanto a determinadas demandas ou atitudes dos cidadãos, sejam estes partes, advogados, procuradores, e outros que participem de um processo.
Os argumentos mais esdrúxulos vão desde fundamentações mal aplicadas da tese da “inadequação da via eleita”, “ausência de direito líquido e certo”, “indicação errônea da autoridade coatora” em Mandado de Segurança, muitas vezes inclusive atropelando a “Teoria da Encampação” aplicada a essas ações mandamentais, na qual há um permissivo razoável para que, mesmo com a indicação equivocada da autoridade coatora, havendo vínculo hierárquico entre elas, que não sujeite alteração da competência, e essa pessoa tenha condições de prestar as informações sobre o ato coator, não há motivo para o indeferimento do Mandamus, devendo o juiz sanar a irregularidade, e dar seguimento ao processo com o conseqüente julgamento.
Todavia, não vemos isso ocorrendo com muita freqüência, e na prática, o que ocorre é que, os magistrados, quase sempre preferem extinguir a demanda, ferindo a economia processual, a eficiência e efetividade da tutela jurisdicional, frustrando o direito dos mais humildes, que já despenderam com um advogado, dinheiro e tempo, e desestimulando a vítima a ingressar novamente com outro feito, na medida que gera descrença em sua mente, pois sua postura denota descaso e indiferença com o ser humano, uma vez que olha mais para um erro estrutural, totalmente sanável e que em nada prejudicaria o processo, do que para a angústia do indivíduo, que vê naqueles que, pensava serem os seus heróis da justiça social, os seus próprios vilipendiadores.
Por fim, o que vemos é que, a liga da Justiça, tem fraquejado, adquirido vicissitudes e se pautado por conveniência, não mais tem posto a salvo o cidadão humilde, ao contrário, aqueles que poderiam ser os heróis da cidadania, tem olhado mais para os seus próprios umbigos, focando em apenas resolver os seus problemas organizatórios e estruturais, e esquecendo-se de produzir o mais importante, qual seja, o sentimento coletivo de efetividade da justiça àqueles que, vitimados, buscam ali, a tutela dos seus direitos.
A paz social, portanto, a dignidade e a realização da justiça podem esperar, só não sabemos até quando.
Referências
MORAES, A.D. Direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005.
VENOSA, Silvio de Salvo. O desajuste da sentença e a fuga ao Judiciário. 9 de agosto de 2005. Disponível em: < http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI14869,61044-O+desajuste+da+sentenca+e+a+fuga+ao+Judiciario>.
PAULO, Tuani Ayres. Teoria da encampação. 1 de março de 2014. Disponível em: < https://jus.com.br/artigos/27287/teoria-da-encampacao>.
SOUZA, Giselle. Condenação é anulada pelo STF porque réu estava algemado no interrogatório. 23 de dezembro de 2015 em Consultor Jurídico. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2015-dez-23/condenacao-anulada-porque-reu-estava-algemado-interrogatorio>.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FELIPE, Maykell. O Judiciário e as "fugas heterônomas de Jurisdição": o descrédito de uma instituição apática e desinteressada pela busca da justiça real Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 jan 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45811/o-judiciario-e-as-quot-fugas-heteronomas-de-jurisdicao-quot-o-descredito-de-uma-instituicao-apatica-e-desinteressada-pela-busca-da-justica-real. Acesso em: 23 dez 2024.
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