1. Introdução
É notória a influência da conjuntura histórica, cultural, política, econômica e social na seara jurídica, a qual se amolda a depender da realidade fática em que se encontra, estando em constante mutação. Reale, majestosamente, traz importantes considerações a respeito da questão, asseverando que:
“O direito que hoje estudamos não é, por certo, o direito que existia no mundo romano, ou o seguido pelos babilônicos, no tempo do rei Hamurabi. Por outro lado, o que hoje está em vigor no Brasil não é o mesmo do tempo do império, nem tampouco existe identidade entre a vida jurídico-brasileira e aquela que podemos examinar em outros países, como a Itália, a Espanha ou a China. O direito é um fenômeno histórico-social sempre sujeito a variações e intercorrências, fluxos e refluxos no espaço e no tempo.”[1]
Nesse ínterim, cumpre registrar o momento atual em que se vive, em que a globalização já é uma realidade e não opera efeitos tão somente na esfera econômica, mas sobretudo na jurídica. Some-se a isso o fenômeno das privatizações e a abertura do capital internacional no Brasil, ambos ocorridos na década de 90, os quais despertaram um legítimo e genuíno interesse, por parte dos advogados estrangeiros, de exercer seu jus postulandi em território nacional.
Ocorre que, até o ano de 2000, não havia regulamentação a respeito dessa matéria, e o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) - Lei nº 8.906/94 - previa, em seu art. 3º, que: “O exercício da atividade de advocacia no território brasileiro e a denominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil – OAB.” Estar-se-ia, portanto, diante de um impasse, pois não havia uma regulamentação a respeito do patrocínio de causas no Brasil por advogados estrangeiros.
Destarte, com vistas a uma melhor adequação às necessidades advindas com os imperativos ocorridos nos últimos anos e a ausência de regulamentação da matéria pelo Estatuto da Advocacia, foi editado o Provimento nº 91, no dia 13 de março de 2000, pelo Conselho Federal da OAB, o qual pormenorizou a matéria.
2. O provimento 91/2000 - CFOAB e o exercício da advocacia por causídico estrangeiro no Brasil
O Provimento 91/2000 - CFOAB, logo em seu art. 1º, ensina que o estrangeiro profissional em direito, regularmente admitido em seu país para exercer a advocacia, apenas poderá prestar tais serviços no Brasil após autorização pela OAB. Ademais, prossegue o § 1º e incisos do mesmo dispositivo que a aludida autorização, sempre concedida a título precário, ensejará unicamente a prática de consultoria no direito estrangeiro correspondente ao país ou estado de origem do profissional interessado, vedados expressamente, ainda que em concurso de advogados ou sociedades de advogados nacionais regularmente inscritos e registrados na OAB o exercício do procuratório judicial e a consultoria ou assessoria em direito brasileiro.
Nessa toada, não há que se falar, pois, em advogado estrangeiro atuando no Brasil. Conforme relatoria de Marcelo Cintra Zarif, Conselheiro Federal da OAB, “A denominação ‘advogado’ somente será permitida aos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil na forma do art. 3º do Estatuto da Advocacia e, a partir do Provimento 91/2000 do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, ficou definido que o profissional estrangeiro somente poderá atuar no Brasil como ‘consultor em direito estrangeiro’, devendo estar autorizado pela OAB através da respectiva seccional, sendo-lhe vedado o procuratório judicial e a consultoria ou assessoria em direito brasileiro.”[2]
Trata-se de uma limitação condizente com o que preconiza o Estatuto da OAB, que reza, em seu art. 8º, § 2º, que o estrangeiro ou brasileiro, quando não graduado em direito no Brasil, deve fazer prova do título de graduação, obtido em instituição estrangeira, devidamente revalidado, além de atender aos demais requisitos previstos neste artigo. Nota-se, pois, que o ordenamento jurídico pátrio exclui as atividades supramencionadas por entender que deve o profissional estrangeiro ter um contato mais íntimo com o direito brasileiro, só reconhecendo o texto normativo duas hipóteses para tanto: quando a graduação ocorre em âmbito nacional ou quando o alienígena aqui revalida seu diploma.
O provimento nº 91/2000 - CFOAB apresenta dois pilares fundamentais ao regulamentar a atuação permitida do advogado estrangeiro. O primeiro deles consiste em uma questão cultural entre a advocacia nacional e forasteira. No Brasil, a advocacia apresenta caráter eminentemente humanista, sendo mister para fortalecimento da cidadania e da justiça. Em muitos países, entretanto, a advocacia é vista a partir de um prisma mercantilista, ideia esta que não floresce em território pátrio. O conselheiro e professor Sérgio Ferraz, com muita categoria, afirma que:
No Brasil, a advocacia não é, precipuamente, uma simples modalidade de prestação de serviço. Ela é, nuclearmente, um desempenho de caráter público, indispensável à administração da justiça (CF, art. 133). Qualquer norma de direito interno ou internacional, que degrade essa natureza, pretendendo ver na advocacia mera modalidade de comércio de serviços, é inconstitucional.[3]
Frise-se, ademais, que tratar o advogado como um agente comercial é uma transgressão direta ao art. 5º do Código de Ética da OAB, o qual aduz que “O exercício da advocacia é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização.” Resta, pois, escancarada a diferença existente no trato da atividade advocatícia no Brasil e no exterior.
O segundo pilar em que se pauta o provimento em voga consiste no princípio da reciprocidade, o qual defende uma igualdade de tratamento entre nações. Preceitua o art. 2º, inciso IV do aludido ato normativo que a autorização para o desempenho da atividade de consultor em direito estrangeiro será requerida ao Conselho Seccional da OAB do local onde for exercer sua atividade profissional, observado no que couber o disposto nos arts. 8º, incisos I, V, VI e VII e 10, da Lei nº 8.906 de 1994, exigindo-se do requerente, dentre outros, a prova de reciprocidade no tratamento dos advogados brasileiros no país ou estado de origem do candidato.
Ora, tal previsão encontra respaldo constitucionalmente, mais precisamente no art. 5º, inciso XIII da Magna Carta, a qual aduz, ipsis litteris: “É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.” Desta forma, a conhecida e muitas vezes criticada ‘Reserva de Mercado da Advocacia Brasileira’, além de estar revestida pelo manto da legalidade, consiste em uma prática amplamente utilizada no exterior.
Muito embora a reciprocidade não seja a regra, como visto, o Brasil firmou um convênio com Portugal, admitindo que advogados desse país adquiram a OAB nacional e os brasileiros também tenham direito ao documento lusitano equivalente. Trata-se do provimento nº 129, editado pelo Conselho Federal da OAB em 8 de dezembro de 2008. Alfredo Assis Gonçalves Neto, conselheiro da OAB no Paraná, explica que essa convenção foi firmada devido a facilidades, como a mesma língua, cultura semelhante e, principalmente, a reciprocidade. Os advogados portugueses não precisam fazer o Exame de Ordem, nem os brasileiros têm de fazer prova similar em Portugal, mas devem ter sido aprovados nos exames de seus próprios países, que seriam reconhecidos pelos dois órgãos de classe.[4]
Contudo, insta destacar que um acordo como este com outros países encontraria os mais variados óbices. Nos Estados Unidos, por exemplo, a atuação de advogados estrangeiros se subordina à legislação de cada estado, posto que se está diante de uma nação de cunho eminentemente federativo. Na Argentina, por seu turno, não existe um órgão central que regule a profissão. Já no Paraguai, a atuação do advogado depende da autorização de uma instituição que nesse país corresponde ao Supremo Tribunal Federal. Com efeito, mostra-se indubitável a dificuldade de se invocar por reciprocidade no tocante à advocacia estrangeira.
Uma das maiores polêmicas envolvendo o provimento nº 91/2000 diz respeito às transformações ocorridas desde a edição desse ato normativo até os dias atuais, posto que transcorreu mais de uma década e se está diante de uma nova conjuntura mundial. O cerne da questão se encontra na possibilidade de associação entre sociedades de consultores estrangeiros com sociedades nacionais.
Em virtude do imbróglio instaurado, a Comissão Nacional de Relações Humanas da OAB resolveu submeter à apreciação da matéria ao Plenário, designando o Conselheiro Federal Carlos Roberto Siqueira Castro como relator da proposta de um novo provimento a respeito dos consultores em direito estrangeiro, o qual não foi acolhido em decisão, exarada em 14 de novembro de 2012.
Na referida decisão, o Conselho Federal da OAB firmou entendimento no sentido de que o provimento nº 91/2000 regulamenta de maneira exemplar as fronteiras entre sociedades de consultores estrangeiros e sociedades brasileiras de advogados, sendo dispensável a edição de um novo provimento para tratar da questão. A decisão, sancionada por unanimidade, teve por relator o Conselheiro Federal Marcelo Zarif, o qual, em seu voto, entendeu que a associação entre ambos apenas deve se dar eventualmente, estando vedada qualquer matéria jurídica brasileira. Segue a ementa do processo:
PROPOSIÇÃO N. 49.0000.2011.002723-1/COP. Origem: Processo n. SC-11580/10 - Conselho Seccional da OAB/São Paulo. Comissão Nacional de Relações Internacionais. Assunto: Limites éticos da cooperação e associação entre sociedades de consultores estrangeiros e sociedades brasileiras de advogados. Relator: Conselheiro Federal Marcelo Cintra Zarif (BA). EMENTA N. 049/2012/COP: A associação entre sociedades de consultores em direito estrangeiro e sociedades de advogados nacionais somente pode acontecer se houver respeito ao Provimento 91/2000. Por isso, só pode acontecer em caráter eventual e não pode alcançar matéria de direito brasileiro, seja em consultoria, seja em procuratório judicial. Todas as associações que contrariarem esse limite estão sujeitas à regência do Estatuto da Advocacia e da OAB, de seu Regulamento Geral, do Código de Ética e Disciplina, dos Regimentos Internos das Seccionais, das Resoluções e dos Provimentos, que atingirão tanto os advogados regularmente inscritos na OAB, individualmente ou através de sociedades de advogados, como os consultores estrangeiros ou sociedades de consultores estrangeiros inscritos na OAB. Aqueles que não estiverem registrados na OAB serão objeto de ações específicas pelo exercício indevido da profissão. Toda a publicidade dos consultores e sociedades de consultores estrangeiros, bem assim de eventuais associações entre eles e sociedades de advogados, está sujeita a todas as regras gerais que disciplinam a matéria, mais especificamente o Provimento 94/2000. Não se pode, por vias transversas, facultar às firmas estrangeiras exercer a advocacia no território nacional em matéria de direito brasileiro, especialmente através de simuladas associações, competindo à OAB adotar as medidas necessárias a coibir tais situações. Acórdão: Vistos, relatados e discutidos os autos do processo em referência, acordam os membros do Conselho Pleno do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, por unanimidade, em acolher o voto do Relator, parte integrante deste, com a delegação, à Diretoria do Conselho Federal, da iniciativa do encaminhamento de recomendação dirigida aos Conselhos Seccionais no sentido da concessão de prazo às sociedades de advogados, oportunizando-lhes, se entenderem conveniente, na via administrativa, a correção de situações e as adequações devidas. Brasília, 22 de outubro de 2012. Ophir Cavalcante Junior, Presidente. Marcelo Cintra Zarif, Relator.[5]
3. Conclusão
É fato que a modernidade representa o equivalente a um certo grau de complexidade que a organização do direito adquiriu em algumas civilizações.[6] Nessa complexidade, portanto, é que surgem as maiores problemáticas jurídicas, especialmente àquelas que envolvem mais de uma nação, in casu, o exercício da advocacia, no Brasil, por causídico estrangeiro.
Consoante já reiterado, essa questão é tratada pelo provimento nº 91/2000 do Conselho Federal da OAB, o qual teve sua legalidade reafirmada pelo plenário da entidade, por unanimidade. Trata-se de um diploma que assegura, de certa forma, uma ‘proteção’ aos advogados nacionais, posto que impõe algumas vedações e restrições aos advogados ou sociedades de advogados estrangeiros que procuram atuar no Brasil, podendo estes, como se observou, apenas serem consultores jurídicos da legislação de seu país.
A postura adotada pela Ordem dos Advogados do Brasil se mostra coerente, pois assim contempla não apenas os interesses nacionais, mas também o estrangeiro, sem com isso acarretar uma controvérsia sobre a regulamentação dessa atividade no país. Trata-se, então, de uma medida protetiva à advocacia nacional, a qual já dispõe de um aparato de profissionais perfeitamente aptos a propiciar um suporte jurídico àqueles que assim requererem. Ademais, ao não se impor restrições, além de se estar desvalorizando o profissional brasileiro, também se estaria depreciando todos os preceitos éticos preconizados na deontologia forense, já que a advocacia, dada sua importância como profissão no Brasil, jamais poderá ser tratada como forma de mercantilização, como muitos o fazem alhures.
Nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello, sabiamente, ratifica a importância da profissão em epígrafe e dos advogados nacionais, finalizando o debate: “Deveras, por força da Lei Magna do País, a profissão de advogado é marcada por características absolutamente singulares que lhe atribuem, uma fisionomia ímpar, não compartilhada pela generalidade das profissões. Com efeito, o advogado foi alçado em profissional indispensável ao exercício da função jurisdicional, por força do art. 133, de acordo com o qual o advogado é indispensável à administração da justiça. Ou seja, uma das funções do Estado, componente da tripartição dos Poderes, reclama expressamente a presença do profissional advogado para que possa se expressar”.[7]
4. Bibliografia
ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4 ed. São Paulos: Atlas, 2003.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
4.1 Sites consultados:
http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-direito/oab-tenta-conter-atuacao-deadvogados-de-outros-paises-2oqc0xk3bhiztmk8fnwy6hrgu . Acesso em: 3 de janeiro de 2016.
http://s.conjur.com.br/dl/oab-sociedades-estrangeiras.pdf. Acesso em: 30 dez. 2015.
http://docplayer.com.br/5702673-Parecer-do-conselheiro-sergio-ferraz-exercicio-da-advocacia-no-brasil-por-profissional-estrangeiro-sumario.html. Acesso em: 2 de janeiro de 2016.
http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20121015-09.pdf. Acesso em: 3 de janeiro de 2016.
[1] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 14.
[2] Disponível em: < http://s.conjur.com.br/dl/oab-sociedades-estrangeiras.pdf. >. Acesso em: 30 dez. 2015.
[3] Disponível em: < http://docplayer.com.br/5702673-Parecer-do-conselheiro-sergio-ferraz-exercicio-da-advocacia-no-brasil-por-profissional-estrangeiro-sumario.html >. Acesso em: 2 de janeiro de 2016.
[4] Disponível em:< http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-direito/oab-tenta-conter-atuacao-deadvogados-de-outros-paises-2oqc0xk3bhiztmk8fnwy6hrgu .> Acesso em: 3 de janeiro de 2016.
[5] Disponível em:< http://www.oab.org.br/arquivos/acordao-proposicao-n-4900002011002723-1cop.pdf.> Acesso em: 3 de janeiro de 2016.
[6] ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 165-175. Nessa passagem, o renomado autor, no que toca à delimitação da modernidade jurídica, opta por um conceito qualitativo e não apenas temporal. Portanto, o direito moderno é aquele que atende a determinadas características, tais como o monopólio do Estado na produção de normas jurídicas, a prevalência das fontes estatais e a auto-referibilidade. Caso se leve em consideração o aspecto histórico, foi aproximadamente a partir do séc. XVII que o pensamento jurídico ingressou na fase de tecnicização, sistematização e racionalização. (FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4 ed. São Paulos: Atlas, 2003, p. 65-72.)
[7] Disponível em: < http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20121015-09.pdf >. Acesso em: 3 de janeiro de 2016.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, pós-graduado em Direito Constitucional e pós-graduando em Direito Material e Processual do Trabalho pelo Instituto Elpídio Donizetti, além de técnico judiciário do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco - TJPE desde o ano de 2012. Autor dos livros Arbitragem: método alternativo de resolução de conflitos (Livro rápido, 2015) e Controle de ato administrativo discricionário (Livro rápido, 2016), além de artigos publicados nas áreas do direito trabalhista (A aplicação da arbitragem ao dissídio trabalhista - Conteúdo Jurídico, 2015), internacional, administrativo, consumidor e processual civil.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALBUQUERQUE, André de Farias. O exercício da advocacia por causídico estrangeiro no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 jan 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45820/o-exercicio-da-advocacia-por-causidico-estrangeiro-no-brasil. Acesso em: 23 dez 2024.
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