Coautores:
Mariane Silva Paródia[1]
Malu Maria de Lourdes Mendes Pereira[2]
RESUMO: O trabalho discute a diferenciação entre cidade e município. Posteriormente correlaciona essa discussão com o ordenamento federativo brasileiro de modo a abordar como cada ente federativo deve se relacionar com a urbe, quais suas competências e possibilidades. O método aplicado é o analítico dedutivo e por pesquisa bibliográfica. Como resultado logrou-se apontar a possibilidade e necessidade de ações mais integradas para o desenvolvimento do ambiente urbano.
Palavras chaves: Cidade, Federação, Direito
INTRODUÇÃO
O Sistema constitucional brasileiro instituiu repartição de competências de forma ímpar, apresentado uma série de desafios hermenêuticos e práticos. O tratamento das cidades não difere desta regra.
O modo tripartido de administração fez com que inconscientemente surgisse uma identificação forte entre os conceitos de Município e cidade. Analogia essa traiçoeira, uma vez que o Município trata de vários interesses que não os urbanos e a cidade é ainda tratada pelos Estados Federados e pela União.
O presente estudo demonstra como ocorre a interação entre o meio urbano e os entes federados sob a perspectiva da Constituição de 1988.
2. DIFERENCIAÇÃO ENTRE CIDADE E MUNICÍPIO
Inicialmente deve-se enfatizar a diferença existente entre os vocábulos ‘cidade’ e ‘município’.
O Município, seguindo a tradição ibérica, sempre teve papel central na vida do brasileiro[3], sendo a existência de um governo local intimamente ligado à ideia de cidade.
Normalmente os municípios possuem somente um núcleo urbano relevante cercado por uma região rural, que é pontilhada por pequenos bairros rurais.
De fato as relações entre campo e cidade sede do município criam a constante similitude hermenêutica entre os referidos termos, fazendo com que o termo cidade se confunda com ‘sede municipal’[4].
Porém é possível estabelecer importantes diferenças.
Partindo-se da ideia de distinção[5] podem-se encontrar as formas [1] cidade/campo e [2] Município/Estado.
Sob o enfoque da primeira distinção percebe-se que somente se pode compreender o termo cidade caso ele seja oposto à ideia de campo. A urbe é antagônica ao campo, de modo que ao se escolher características e interações que norteiam o ambiente urbano se está excluindo todas as interações que não se amoldem a esse entendimento, ou seja, se está também definindo o campo.
Percebe-se que não é necessário que haja uma divisão administrativa umbilicalmente ligada à cidade. O conceito de cidade sobre-existe à dicotomia municipal.
Nesse sentido, podem-se citar os artigos 32 e 33, § 1º da Constituição[6] [7].
Por óbvio que existem mais de um centro urbano no Distrito Federal e de que existiriam, muito provavelmente, mais de uma cidade em um eventual território. Percebe-se, portanto, que a figura do Município como unidade de representação local é dispensável, mesmo no caso da federação brasileira.
Por outro lado também existe a forma Município/Estado. Compreendendo-se Estado como qualquer ente administrativo que englobe territorialmente um governo local.
Percebe-se que essa dicotomia não envolve o conceito de cidade, assim um governo local pode englobar um ou mais centros urbanos, ou mesmo nenhum como frequentemente se verificava durante a época medieval.
Na organização federal brasileira, duas ou mais urbes podem ser administradas por um mesmo Município o qual, com base no artigo 30, V, Constituição da República Federativa do Brasil, poderá subdividir seu território em distritos para sua melhor gestão.
Tal distinção é vital para o presente trabalho, pois através dessa diferenciação a cidade se adequa à visão de meio ambiente artificial e é possível tratar dela como um local sobre o qual diferentes entes federados e vários agentes particulares poderão agir, ao passo que o Município, por ser ente federado próprio não sofreria tais ingerências.
3. CIDADE NA FEDERAÇÃO BRASILEIRA
Sendo a cidade um fenômeno pungente em todo território brasileiro e que define o modo de vida e governo do país como um todo, urge vê-lo em face da diversidade federal pós 1988.
O Brasil adotou a forma federal de gestão, organizando-se territorialmente, administrativamente e politicamente em diversos entes (União, Distrito Federal, Estados, e Municípios), divisão essa constitucionalmente garantida[8].
Esse federalismo se apresenta de forma simétrica na qual todos os entes de mesmo nível possuem competências iguais[9]. Fato esse corroborado com as Constituições dos Estados Membros que são simplesmente repetições da federal, sendo que as poucas tentativas de real inovação foram julgadas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal[10].
Ocorre que essa simetria não coaduna com a realidade assimétrica gerada pela enorme extensão territorial brasileira[11].
Marcelo Figueredo escreve: “a simetria formal de nosso modelo de federação não condiz com a assimetria real de nossas unidades federativas. Nossos Estados-Membros são muito diferentes entre si” [12].
Percebe-se assim que do ponto de vista legal a administração de todos os municípios do país são análogas entre si.
Essa condição, por um lado, possibilitaria a adoção de políticas públicas de forma integrada por todos os entes federativos, uma vez que legalmente seria viável um plano nacional abarcando todas as cidades brasileiras, independentemente das peculiaridades regionais, do mesmo modo que um estado federal poderia fazê-lo à margem das desigualdades do seu território.
Por outro lado, ocorre uma massificação que distancia o Estado da sociedade civil que não se vê culturalmente representada.
O problema é que existem várias ordens de descompasso muito sérias na ordem constitucional brasileira. Em primeiro lugar, deve-se destacar a distância que existe entre a ordem jurídica institucional e a ordem urbana territorial: a ordem consagrada na Constituição, que divide o território e a ordem política em União, Estados e Municípios, não “cai como uma luva” na ordem construída no país pelo processo de urbanização. Isso se dá por várias razões, uma das quais sendo o processo de “municipalismo a todo custo”, na medida em que não leva em conta a dinâmica efetiva da produção do espaço; o municipalismo formal trata igualmente municípios fundamentalmente diferentes[13].
Existe assim a necessidade de que todas as esferas estatais tratem com atenção o fenômeno urbano. Para possibilitar tal objetivo firmou-se a repartição de competência entre os diferentes órgãos da administração pública, os quais recebem o poder/dever de decidir sobre determinado assunto. Essa distribuição, entretanto, é feita de forma complexa[14].
Segundo Luiz Otávio Rodrigues Coelho, elegeram-se três meios de se legislar sobre um mesmo território, meios esses conhecidos como o sistema de competências. Nesse sentido firmaram-se a competência exclusiva, concorrente e suplementar[15] [16].
Certas matérias e serviços somente podem ser executados por um ente federado, sendo presente a competência exclusiva, cujo exemplo emblemático é a defesa nacional exercida exclusivamente pela União.
Outros temas podem ser tratados por Estados ou pela União, sendo que, entretanto, uma vez que a União edite comando sobre a situação, a norma estadual perde sua validade.
Por fim, várias matérias podem ser tratadas suplementarmente pela União, Estados e Municípios. Nessas matérias a União edita normas gerais que são posteriormente complementadas por Estados e Municípios.
A questão se mostra ainda mais complexa, se tratada do ponto de vista ambiental.
O artigo 225 da Constituição[17], encerra o ápice das normas constitucionais de cunho ambiental.
Claramente a Constituição põe todos os entes federados como detentores de poder para lidar e defender o meio ambiente. Desse modo se se considerar a cidade como um meio ambiente artificial, fácil será a conclusão de que a todos os entes federados cabe a sua guarda.
Entretanto, como salienta Paulo de Bessa Antunes, as competências em matéria ambiental, principalmente no que se refere à edição de leis é bastante complexa e, por vezes contraditóra[18]; “[h]a uma verdadeira balconização de competências”[19].
Ocorre portanto uma fusão de competências privativas, concorrentes e comuns, sendo que a matéria ambiental se dispersa por toda a Constituição.
Com efeito, ainda não se logrou uma clara demarcação do campo de atividade dos diversos órgãos ambientais, visto que as competências não estão claramente definidas, visto que a repartição de competências é muito vaga[20].
Paulo de Bessa Antunes salienta que a matéria tem sido tratada com relevância à esfera federal que passa a editar normas de caráter geral, como princípios gerais[21]. Assim, no que se refere ao meio ambiente artificial tomado de uma visão geral, pode-se dizer que a União edita normas gerais, ou mais ou menos generalizadas, as quais são complementadas por Estados e Municípios.
O ponto é nevrálgico.
“A melhor doutrina converge no sentido de que normas gerais são normas que conferem uma diretriz, estabelecendo critérios básicos conformadores de normas que irão sucedê-las, sem se imiscuir no âmbito de competência específica dos outros entes federado. [22]
[A] instituição de diretrizes gerais por parte da União dar-se-á [então] de forma abstrata e genérica, em relação à aplicação e ao conteúdo, sob pena de adentrar em situações particulares e concretas, havendo, assim, invasão de competência atribuída aos outros entes federados, situação na qual, as normas gerais são inconstitucionais. [23]
Entretanto, no que pese tais assertivas, que se proliferam pela doutrina nacional, são nebulosas as fronteiras do que se entende por diretrizes e generalidades dessas normas.
Essa situação que se agrava com a inexistência da lei complementar para cooperação entre os entes federados prevista no art. 23 da Constituição[24].
De fato a concepção de geral e específico muda constantemente e é fruto das interações intersistêmica constantes no seio da sociedade que a define. Assim, para se pensar em normas gerais, faz-se então necessário pensar o que é específico.
Em termos urbanísticos isso pode ser feito através de uma visão atenta do tratamento do assunto na Constituição.
3.1. Normas gerais
José Afonso da Silva aponta, além das competências anteriormente listadas, que a união pode legislar, de forma não exclusiva, sobre patrimônio cultural e histórico, paisagens naturais e meio ambiente como um todo[25].
Esse autor ainda salienta que, muito embora o artigo 24 da Constituição não tenha incluído os Municípios no rol das competências concorrentes, foi-lhes conferida a faculdade de complementar a lei estadual ou federal no que lhe couber[26].
Tais afirmações suscitam dois desdobramentos. O primeiro será tratado nesse tópico e se refere ao caráter geral da norma da União e o segundo, que será abordado posteriormente, toca a expressão interesse local.
Em diversas matérias a União deve editar normas a serem complementadas pelos demais entes federados. Essas normas devem somente orientar a atuação de Estados e Municípios, sem adentrar a pormenores, sendo, portanto, chamadas de normas gerais.
Existe assim um grande interesse sobre o que é ou não norma geral, uma vez que a edição de normas não gerais pela União em tais assuntos desnaturaria a própria federação.[27]
Luiz Otávio Rodrigues Coelho alerta que se deve tomar cuidado para que as regras gerais não transformem Estados e Municípios em meros administradores das normas federais[28].
O alerta é válido. A ordem jurídica instaurada pela Constituição estabeleceu que a gestão do ambiente urbano se dê pela cooperação e a divisão de deveres entre todos os entes federados, como se pode ver anteriormente.
Quanto ao assunto ainda é relevante notar que as questões urbanas são intimamente ligadas à vida do Município, que é seu maior gestor. Permitir que as ditas regras gerais, sejam elas federais ou estaduais, reduzam o Município a mero agente administrativo é equivalente a usurpar-lhe a qualidade de ente federado e transformá-lo em algo semelhante aos territórios previstos na Constituição.
Assim qualquer entendimento jurídico sobre o conteúdo possível das normas gerais deve realmente garantir a atuação efetiva dos poderes Executivo e Legislativo municipais.
Nesse viés muitos juristas já divagaram sobre o sentido da expressão ‘geral’ na legislação pátria, sendo que, entretanto, muito pouco se caminhou nesse sentido.
A expressão a coaduna com a metodologia fuzzy descrita pelo jurista português José Joaquim Gomes Canotilho[29] [30]. No que pese o seu uso frequente por toda a comunidade jurídica nacional e de muito se escrever sobre o tema, escapa a qualquer análise concreta o seu conteúdo, o qual permanece vago.
Partindo-se das duas principais leis de organização do meio ambiente urbano de âmbito nacional a Política Nacional de Mobilidade Urbana e o Estatuto da Cidade, percebe-se o reiterado uso de vocábulos como “objetivos”, “diretrizes”. “princípios”.
Nota-se ainda que o conteúdo disposto varia realmente muito pouco, se assemelhando-se às normas chamadas por José Joaquim Gomes Canotilho como dirigentes[31].
Ocorre uma programação para as ações e legislações dos entes federados, sejam eles quais forem, pois tal legislação deve orientar os atos da União, dos Estados e dos Municípios.
Entretanto pensar que normas gerais seriam meros mandamentos para o futuro e teriam sua eficácia restrita; seria uma inconsistência vista a possibilidade real de o Judiciário efetivá-las em um caso concreto, assim como tem atualmente ocorrido no caso da saúde.
Portanto urge uma resposta que mantenha esse intuito dirigente e mesmo assim possibilite sua contínua aplicação, sem, entretanto, travar a atividade legisladora local.
Rafael Lazzaroto Simioni, ao estudar as interações intersistêmicas alude à existência de uma função interna ao sistema jurídico expressa através de normas gerais[32], pela qual o jurista poderia estabelecer um nexo com demais sistemas através de uma orientação funcional. Desse modo haveria uma retroadaptação, uma retrocorreção, pela qual o direito poderia, valendo-se de seus próprios pressupostos, gerar soluções a situações concretas, sem, dessa forma, ocorrer a desnaturação do sistema[33].
Interessante transladar tal entendimento para a decisão legislativa, uma vez que possibilita a especificação do direito sem que, entretanto, perca-se a função original, a orientação geral.
Tal situação torna-se clara segundo o exemplo dado pelo próprio autor[34], que sita o artigo 1º, § 2º, inciso II do antigo Código Florestal Brasileiro[35].
Percebe-se claramente que, no que pese a definição já estar completa, inseriu-se também um porquê, um objetivo para a existência das áreas de preservação permanente. Situação essa mantida na nova redação do citado código.
Esse mandamento possibilita, além da adequação aos casos fáticos, também a criação de normas suplementares pelos demais entes federados, uma vez que não é possível a criação de normas específicas ou complementares que não atendam a função supradescrita.
Nota-se que o estabelecimento de funções atende a ambos os requisitos antagônicos de uma norma geral: possibilitar certa uniformidade de ações e ainda assim não debelar a atividade legislativa.
Dessa feita, pode-se entender que a instituição normas gerais urbanísticas devem reter conteúdos que versem somente sobre suas funções, como é o caso, por exemplo, do artigo 2º, incisos I e II, do Estatuto da Cidade[36].
3.2. Competências dos artigos 23 e 24 da Constituição
Antes que se adentre especificadamente nas competências urbanísticas propriamente ditas de cada uma das esferas federais, urge salientar as normas contidas nos artigos 23 e 24 da Constituição, já que essas refletem na atuação de cata um dos referidos entes.
Inicialmente vale ressaltar a diferença entre os mandamentos supracitados. A primeira diferenciação se refere ao tipo de competência, sendo que no artigo 23 tem-se a comum e no artigo 24 a concorrente. Já a segunda diferenciação a ser traçada se refere ao conteúdo de atuação, pois o artigo 23 parece se dirigir mais especificamente à atuação de gestão exercida pelo executivo e o artigo 24 pela atividade legislativa.
Anteriormente se viu que o meio ambiente artificial pode ser tido, para fins deste estudo, como tendo duas ramificações: meio ambiente cultural e meio ambiente urbano.
A conjuntura dos dois artigos supracitados garante muito bem o arcabouço cultural, pois estabelece o tratamento legislativo centrado em normas gerais da União e articulado por todos os entes federados, de modo que prédios, livros, monumentos que contam a história de determinada urbe podem e devem ser defendidos pela União e Estados.
Quanto às municipalidades, entretanto, deve-se fazer um parênteses, pois pela redação fria do artigo 24 não caberia aos Municípios legislar sobre os assuntos lá contidos, todavia, segundo ao artigo 30, II, do mesmo diploma cabe aos entes municipais suplementar a legislação federal e estadual. Assim em uma visão expandida do artigo 24 da Constituição, pode-se afirmar que também os Municípios são legitimados para tratar do assunto, principalmente se relacionado o caso concreto a questões municipais.[37]
Vale ainda acrescentar que, pela redação do artigo 225 da Constituição essa proteção é incumbida ainda à sociedade civil, que dentro de suas atribuições, deve zelar pelo meio ambiente cultural das cidades.
No que se refere ao meio ambiente urbano, a questão se torna um pouco mais complexa, já que para sua exata compreensão deve-se recorrer a vários artigos que estabelecem a fração de responsabilidade de cada ente federado. Desse modo passa-se a analisar a questão mais detidamente nos próximos itens deste trabalho.
4. A COMPETÊNCIA DA UNIÃO
No que pese o federalismo latino ser centralista, a gestão das cidades fora distribuída pelos três níveis federais.
No Brasil, à União compete “elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social, compreendendo aí a questão urbanística”[38], inclusive com a delimitação de diretrizes para o desenvolvimento urbano[39].
Esses planos podem ter caráter nacional, regional ou setorial.
Segundo Raphael Almeida Basílio de Brito:
O Plano Urbanístico Nacional, hoje, tem base no art. 21, IX, da CF/88, culminado esse com os artigos 174, da mesma norma, e 4º, I, do Estatuto da Cidade (posteriormente estudado). Tal plano engloba as diretrizes gerais que visam instrumentalizar a política nacional do desenvolvimento urbano, bem como a somatória das medidas destinadas a estabelecer a orientação geral da ordenação territorial nacional, objetivando o bem- estar da população, podendo ser um plano próprio para fins urbanísticos, ou mesmo fazendo parte de um plano maior, que abrange, dentre outras metas, a ordenação do território, a exemplo dos Planos Nacionais de Desenvolvimento II e III – PNDs[40].
De acordo com o mesmo autor, os planos regionais, com base no artigo 21, IX, da Constituição, diferentemente do plano nacional, são focados em uma macrorregião brasileira[41], cuja abrangência seja maior do que o território de um Estado Federado ou cubra partes de vários estados.
Por outro lado os planos setoriais apresentam relação não com um determinado território, senão com uma atividade específica, como a habitação ou circulação[42].
Diferentemente dos planos que têm o intuito de fomento, a União tem ainda a capacidade de legislar, segundo o artigo 24, I, da Constituição, sobre assuntos urbanísticos, sendo que tal legislação deve-se amoldar dentro do caráter geral anteriormente falado.
Estabelecem-se dessa forma políticas nacionais, como é o caso da Política Nacional de Mobilidade Urbana e a Política de Desenvolvimento Urbano, as quais traçam diretrizes que norteiam todo o crescimento e gestão urbana.
Ambas as facetas estão intimamente ligadas ao princípio do desenvolvimento sustentável, que visa ao desenvolvimento socioeconômico em equilíbrio com o meio ambiente (como um todo)[43]. O elo entre desenvolvimento e os planos aqui apresentados é mais facilmente vislumbrado se se debruçar sobre o segundo elemento do princípio, o termo sustentável, pois esse, como se verá mais à frente pressupõe a coordenação de ações no sentido de garantir a perpetuidade de um meio ambiente saudável[44].
Por ora basta que se atente para o fato de que o planejamento de ações, principalmente em médio e longo prazo, permeia toda a lógica ambiental e é de fundamental importância, pois garante os meios para que os direitos (sejam eles individuais, sociais, difusos e assim por diante) possam ser satisfeitos no presente e no futuro[45].
Deste modo os planos nacionais e regionais são de grande valia abarcando macro regiões geográficas e possibilitando a sustentabilidade devido à preservação de uma área geográfica, enquanto os planos setoriais garantem a continuidade da atividade econômica em si.
Outra faceta importante é a edição do Estatuto da Cidade.
4.1. Estatuto da Cidade
“O Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001), também denominado de Lei do Meio Ambiente Artificial, tem como objetivo formular diretrizes gerais de administração do ambiente urbano”. [46]
A lei tem como intuito a regulamentação dos artigos 182 e 183, os quais fazem menção à norma federal que possibilitaria aos Municípios a tomada de ações no intuito de efetivar os direitos fundamentais inclusos na Constituição.
As cidades neste século, marcadas pelo crescimento rápido e sem planejamento, expõem cada vez mais seus habitantes a condições subumanas, criando uma situação de desequilíbrio, em detrimento da dignidade da pessoa humana.[47]
Nesse sentido, o Estatuto da Cidade tem mostrado um grande avanço para a gestão e efetivação dos direitos fundamentais nas cidades[48].
Por meio de seus dispositivos, tornam-se aplicáveis diversos instrumentos de planejamento e gestão das urbes, possibilitando aos poderes públicos locais, regionais e federais uma efetiva intervenção no processo urbanístico.
Interessante notar a interatividade causada entre as esferas pública e privada, pelas quais o planejador, principalmente municipal, tem a seu alcance meios administrativos, econômicos e legais, de intervir de modo a gerar um desenvolvimento sustentável da cidade.
Janaína Rigo Santin e Elizete Gonçalves Maragon aclaram que o estatuto tem um caráter eminentemente ambiental e conjuga, holísticamente, diversas formas de planejamento e gestão das cidades.
Nesta feita, as diretrizes gerais e os instrumentos de política urbana previstos no Estatuto da Cidade formam um plexo de normas que permitem o racional aproveitamento do solo urbano, planificando a vida em comunidade, dando à propriedade sua função social, com o objetivo de melhoria da qualidade do meio ambiente urbano, em todas suas dimensões[49].
As autoras salientam ainda o mais aclamado de todos os institutos do Estatuto: a gestão democrática.
Janaína Rigo Santin ressalta a existência de diversos tipos de cidadania, desde as que se refletem em um governo direto às que se consubstanciam em uma democracia puramente representativa[50].
Nesse sentido pode-se dizer que com o intuito de incluir o povo na gestão da cidade, o que, em última instância reergue sua cidadania, o estatuto da cidade possibilita o diálogo constante entre os entes públicos, em especial a administração municipal com os diversos setores da sociedade, de modo que esses efetivamente façam parte do dia a dia do seu centro urbano.
Para tal, são célebres medidas como o orçamento participativo, que possibilitam a intervenção da sociedade civil na gestão e as consultas públicas para a criação e renovação do plano diretor, sendo esse meio de participação legislativa e autogestão.
A ideia da gestão democrática inserida nos artigos 43 a 45 do Estatuto da Cidade prevê a participação direta do povo por meio de “diversos instrumentos para esse fim, tais como órgãos colegiados de política urbana, debates audiências, consultas públicas [...][e previu ainda] a instituição da gestão orçamentária participativa”[51].
Interessante notar que esses meios de gestão democrática estabelecem a cooperação entre os órgãos públicos e a comunidade uma vez que essa opina e vota e aqueles dão o suporte físico e técnico[52]; ocorre uma verdadeira correção mútua entre os agentes envolvidos.
No que pese o avanço representado por esses institutos, o Estatuto da Cidade ainda carece de eficácia real, pois seus institutos urbanísticos são raramente aplicados[53], sendo somente apontável alguns poucos sucessos, principalmente no campo do orçamento participativo.
4.2. Normas paraurbanísticas de ordenação das cidades
Além do conjunto de regras urbanísticas propriamente ditas, existe uma série de regras pertencentes a outros ramos do Direito que, entretanto, guardam íntima relação com a ordenação de centros urbanos.
Dentre tais regras destacam-se, para o presente estudo, os direitos de vizinhança e algumas normas que regulam áreas do meio ambiente natural como as áreas de preservação permanente.
4.2.1. Direitos de vizinhança
No que pese o direito de propriedade no contexto civilista ser o mais amplo entre os direitos subjetivos do campo patrimonial, esse sofre várias limitações, dentro mesmo da esfera civil, as quais têm como intuito principal possibilitar a convivência em sociedade.[54]
Tais limitações se dão, seja perante o proprietário e sua comunidade, ou entre dois proprietários de imóveis vizinhos entre si, sendo essa última situação regulada pelo direito civil com o fito de impedir e resolver problemas que surjam entre o domínio de tais propriedades limítrofes.[55]
Dessa forma surgem os direitos de vizinhança, os quais podem representar a tolerância do proprietário a certas interferências em seu domínio ou a abstenção de certas ações que normalmente seriam legítimas. Gerando as duas classes de direitos de vizinhança.[56]
Dentre os exemplos que poderiam ser dados relativos à segunda classe de direitos de vizinhança encontram-se a abstenção de uso nocivo da propriedade em detrimento da saúde e do sossego alheio e o de não construir sacadas ou abrir janelas a menos de um metro e meio da propriedade do vizinho[57].
Já no que se refere ao dever de suportar ingerências, pode-se citar a obrigação de recebimento de águas que naturalmente fluam do imóvel vizinho e o de permitir a passagem para acesso à propriedade encravada.[58]
Silvio Rodrigues salienta que, apesar de tais direitos apresentarem um caráter dúplice ao imporem ao proprietário o dever negativo, assemelhando-se a obrigações, mas também representam verdadeiros direitos, uma vez que podem ser exigidos dos demais vizinhos.[59]
Tais normas são aplicáveis a todas as propriedades, sejam elas urbanas ou rurais e são de especial interesse para a organização das cidades, uma vez que representam limitações que ocorrem entre direitos páreos.
Se a maioria das normas urbanísticas se pautam na transcendência da dicotomia civilista, incorporando o bem coletivo, os direitos de vizinhança sustentam normas que regulam relações entre e para dois lados com igualdade de deveres e direitos, proprietários vizinhos, sendo entretanto que as suas restrições podem gerar, até certa medida, um direito do meio ambiente das cidades.
Nesse sentido vale lembrar que os direitos de vizinhança já impunham modos de convivência harmônicos e minimamente salubres muito antes do advento de todas as modernas normas urbanísticas, uma vez que já no código de 1916 se podia encontrá-los.
Embora as modernas normas urbanísticas ponham em desuso parcial alguns direitos de vizinhança[60], esses ainda devem ser observados como parte vital das interações citadinas, podendo, portanto, ser usados para fins urbanísticos.
4.2.2. Normas de direito ambiental natural
Muito embora a maioria das normas do direito ambiental natural não sejam corriqueiramente observadas no meio urbano, devido ao seu elevado índice de antropização, existem algumas normas que podem ser usadas para possibilitar a melhor gestão da máquina citadina.
Nesse sentido a preservação e alocação de áreas verdes apresenta especial interesse, por possibilitar a ordenação espacial[61].
Surge então o interesse pelas áreas de preservação permanentes e pelas unidades de conservação.
O Código florestal, em seus primeiros artigos define uma série de zonas nas quais o uso do solo e a supressão de vegetação é vedada, salvo autorização especial do órgão ambiental competente, pautada na especial necessidade da intervenção[62]; tais áreas são conhecidas por áreas de preservação permanente.
Dentre as zonas resguardadas pelo Código Florestal sobre esse título, são altamente relevantes para a gestão de cidades as áreas localizadas às margens de cursos d’água e as encostas.
São comuns, durante os meses de chuvas, ocorrerem deslizamentos e pequenas cheias que corriqueiramente, se não causam mortes, pelo menos desabrigam famílias inteiras em grandes e pequenos centros urbanos.
A questão ganha vulto uma vez que as favelas tendem a se formar em áreas de “alto grau de fragilidade ambiental, quer sejam encostas quer sejam planícies de inundação”[63] e por possuírem frágeis construções se mostram ainda mais propensas às intempéries naturais.
Tais infortúnios, talvez não possam ser totalmente eliminados, mas podem, entretanto, ser controlados por meio do respeito a áreas de preservação permanente, já que com isso se previne que sejam construídas habitações em zonas inundáveis ou sujeitas a deslizamentos, fazendo com que tais episódios deixem de ser corriqueiros e se apresente tão somente como fatos isolados.
Outra contribuição possível à gestão das cidades pode ser vislumbrada na capacidade organizacional das unidades de conservação.
A alocação de tais espaços especialmente protegidos por atos próprios do poder público para conservação de características sócio-ambientais[64] pode evitar, por exemplo, a conurbação e seus efeitos negativos na gestão de serviços públicos.
Também a instituição de parâmetros de poluição, seja ela visual, sonora, do ar e assim por diante, pode ser usada para o estabelecimento de um ambiente citadino mais saudável.
Portanto através da obediência às normas ambientais é possível evitar catástrofes urbanas, como enchentes e soterramentos, as quais estão ligadas ao desrespeito a tal legislação.[65]
Vale por fim ressaltar que, muito embora a questão seja largamente legislada no âmbito federal, em se tratando de matéria concorrente, estados federados e municípios podem complementar tais normas[66], a pesar disso não ser tomado do modo que se desejasse[67].
5. O PAPEL DOS ESTADOS FEDERADOS
Como anteriormente visto, as cidades brasileiras, cada vez mais extrapolam os limites de seus municípios formando uma só urbe com uma ou mais outras cidades, dando origem às grandes cidades hodiernas.
Nesse contexto, de especial interesse são as regiões metropolitanas. Espaços densamente urbanizados, formados por vários municípios em torno de um município sede, os quais estão ligados por vínculos sociais e econômicos, agindo como se somente uma cidade fossem[68].
A incorporação desse conceito pelo direito pátrio se deu inicialmente através da lei complementar nº 14/73 que criou as primeiras 8 regiões metropolitanas brasileiras, que vieram a falhar em seus objetivos devido às dificuldades de interação intergovernamental.[69]
Com o advento da Constituição, a competência para criação de regiões metropolitanas passa aos Estados.
Quanto a isso vale ressaltar que apesar da competência ser estadual, essa é fortemente limitada pelo próprio texto constitucional que majorou as atribuições municipais[70], forçando a cooperação entre Estados e Municípios e entre esses.
Edésio Fernandes ainda salienta que a Constituição poderia ter ido mais além, pois fora apresentada proposta para a transformação das regiões metropolitanas em entes federados com força política, proposta essa que se quer fora votada. [71]
Noutro diapasão, visando a uma melhor gestão desses espaços, aos Estados foram fornecidos, além do poder de criação de regiões metropolitanas, o de criar aglomerados urbanos e microrregiões[72].
Os aglomerados urbanos teoricamente ocorreriam quando vários municípios de tamanho semelhante se aglutinassem sem que, entretanto, um deles se sobressaísse aos demais como polo. Situação essa hipotética e de difícil consecução fática, devido à natural polarização das cidades[73].
Já as microrregiões não se relacionam diretamente com o fenômeno urbano, sendo mais um meio de gestão territorial que abrange largas parcelas rurais de cidades, embora com semelhanças e interações, não são umbilicalmente dependentes e não são conurbadas.
Percebe-se então que a criação de tais áreas não suprime os municípios nelas contidas, mas visa tão somente unificar ações no seu interior.
Trata-se de uma verdadeira medida de gestão ambiental, pois coordena as ações no meio ambiente urbano fundido, possibilitando a formação de um instrumento jurídico que consubstancia uma realidade fática. Traz-se assim o fato para o Direito e com isso alcança-se maior efetividade nos direitos que se pretende abordar. Um bom exemplo pode ser dado com a coordenação da criação de habitações em um município para atender o déficit de moradias em outro da mesma aglomeração urbana. Não se pode, quando se está em regiões conturbadas, pensar que os problemas sociais de um município não refletirão nos demais. Assim derruba-se parcialmente a visão municipalista e se insere a visão de meio ambiente artificial pelo qual os agentes governamentais e civis devem cooperar para a resolução do problema, que no caso seria a construção de habitações fora do município com escassez, mas dentro da área urbana, a qual é a real carecedora de tal equipamento.
Entretanto, tal instituto tem sido muito pouco utilizado, sendo o Estado de São Paulo o que mais apresenta avanços na real instituição de uma zona metropolitana[74].
6. OS MUNICÍPIOS E AS CIDADES
Com a crescente urbanização a maioria dos problemas do dia a dia dos brasileiros aparece e poderia ser resolvida localmente, até mesmo os que envolvem mais de um Município podem ser resolvidos pela cooperação entre eles[75], pois o ambiente urbano atual aparece como uma síntese das questões globais manifesta em um contexto local[76].
Desta forma Município aparece como o espaço territorial mais significativo para o exercício da cidadania[77]. Nessa esteira a Constituição preconiza o Município como principal executor da politica urbana em seu artigo 182.
Muitos dos institutos do Estatuto da Cidade são igualmente voltados ao gestor local e efetivamente servem como suporte para os Municípios, ampliando suas competências frente aos governos estaduais e federal[78].
Entretanto alguns juristas alertam para possíveis inconstitucionalidades da legislação federal, em especial por ditar conteúdo material de normas municipais o que tornariam sem efeito artigos como 5º, 25 § 1º, 29, 30, 32, 36, dentre outros[79].
A questão é controversa e apresenta o mesmo problema vislumbrado anteriormente quanto ao limite do termo ‘normas gerais’. Se há inconstitucionalidade, ela residiria exatamente no caráter específico dos mandamentos contidos no Estatuto da Cidade, sendo necessário então que se conheça o outro lado da forma geral/local, o interesse local.
6.1. Interesse local
No que pese sua importância o significado da expressão ‘interesse local’ é extremamente vago no mundo jurídico.
Diz a Constituição em seu artigo 30[80] que compete aos Municípios legislar sobre seus assuntos de interesse local:
A locução veio a ocupar o lugar onde outrora se lia ‘peculiar interesse’.
A Constituição anterior, ao tratar da competência municipal para legislar, utilizava a expressão ‘peculiar interesse’, tendo a doutrina e a jurisprudência pacificado que ‘peculiar interesse’ seria aquele identificado como preponderantemente do Município quando confrontado com o interesse de seu estado ou da União[81].
Na esteira de tal construção, doutrinadores existem que entendem por sustentar a permanência da interpretação, em face de considerar que são peculiar interesse e interesse local expressões “idênticas” (...) ou ainda por afirmar que o interesse local seria fruto de uma “negociação política” quando da elaboração da constituição Estadual, diante da condição de “visão mais ou menos centralizadora que se tenha de federação”[82]
Outros entendem que interesse local seria fórmula diferenciada pela qual o interesse não precisaria ser exclusivo, mas sim preponderante à localidade[83].
Ambos os entendimentos são na verdade insuficientes para o novo paradigma constitucional.
Por certo ao se alterarem os signos linguísticos, não se pode admitir que seus significados permaneçam os mesmos. De fato, o vocábulo peculiar induz a uma noção de anormalidade, de que o interesse não seria o comumente enfrentado.
Também faltosa é a interpretação de que ‘peculiar interesse’ é o que prepondera o Município frente aos demais entes federados, pois isso leva a uma ponderação de valores e de interesses entre os mesmos, abrindo-se amplo leque de valorações subjetivistas.
Como anteriormente ventilado, a União, os Estados e os Municípios possuem competências predefinidas, sendo que a harmonia entre esses é vital para o desenvolvimento da sociedade pátria.
Permitir que fosse feita uma ponderação em matéria de competência legislativa pode levar a diversas conclusões frágeis, uma vez que o método e os pesos utilizados para se chegar à resposta podem variar enormemente[84].
Também não se pode negar a diferenciação anteriormente feita entre cidade e município.
Ao se dizer ser de competência municipal as matérias de ‘interesse local’ e não as de seu ‘peculiar interesse’ se está deslocando o foco para fora da esfera da municipalidade e pondo-o em um referencial espacial. Se anteriormente dever-se-ia olhar para qual era o interesse da administração municipal, o que induzia a uma visão focada na supremacia do interesse público[85], agora se deve mirar não no bem-estar do ente federado, mas sim na efetivação da mais valia local, ela coadunando ou não aos interesses públicos ou privados, podendo-se, inclusive, sustentar que pode haver a criação de leis que vão de encontro com os interesses da administração pública, desde que atendam os asseios locais.
Entretanto mais uma vez cai-se no que seriam interesses locais.
Esse questionamento fica ainda mais difícil em um mundo que cada vez mais se globaliza, inclusive criando instituições administrativas e judiciais em nível planetário. Ações anteriormente tratadas localmente agora repercutem muito além das fronteiras dos próprios estados nacionais[86].
Um ponto definitivo talvez não possa ser de fato encontrado, porém dentro do âmbito aqui estudado, levando-se em conta a cidade como função do direito urbanístico inserido no contexto federativo brasileiro, alguns apontamentos são possíveis.
Embora não se possa concordar com a ideia de Luiz Otávio Rodrigues Coelho, pela qual seria competência municipal toda a matéria que não fosse taxativamente da competência da União, uma vez que inexiste competência concorrente entre tais entes, e frente ao estado o que fosse de interesse local[87], pois novamente não se responde a indagação do que seria interesse local em matéria urbanística. Pode-se extrair a possibilidade de exclusão como parâmetro.
Sendo interesse local uma forma[88] que necessariamente exclui o interesse geral[89], compreendido como regional ou nacional, encontrar o que compete à legislação municipal pode ser possível.
Como se verificou anteriormente à União compete editar planos nacionais, regionais e setoriais, todos atendendo à necessária generalidade descrita anteriormente. Assim conclui-se que, em matéria urbanística, o Município deve efetivar as diretrizes federais, o que indubitavelmente reflete em uma grande liberdade nas questões de gerenciamento e planejamento do espaço urbano.
De forma semelhante aos estados federados cabe a coordenação de agrupamentos urbanos no intuito de possibilitar sua maior integração.
Nesse sentido é possível [1] que sejam delimitados objetivos e diretrizes específicas para determinada aglomeração urbana, ou [2] que se estabeleçam diferenciações legislativas (vantagens na isenção de impostos, condições especiais de concessão de licenças e assim por diante), dentro de suas competências, para essas regiões.
Dessa forma percebe-se que o Estado atuará dentro dos seus limites legislativos não interferindo no interesse local urbanístico. Delimitando-se desse modo o interesse local em matéria urbanística.
6.2. Plano diretor
O plano diretor é previsto no artigo 182 da Constituição[90]; sendo essa completada pelo Estatuto da Cidade em seu capítulo III.
Especial atenção deve ser dada à disposição do artigo 39 quando esse diz que “[a] propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano direto”.
O plano diretor aparece como figura central do planejamento urbano, sendo que, muito embora não exclua outros tipos de planejamentos, representa ponto focal da política urbana.[91]
Tal plano deve atender ao escopo municipal visando à adequação às peculiaridades locais em sua organização, não havendo justo motivo para a uniformização frente às diversidades brasileiras.[92]
Portanto urge que o plano diretor seja dinâmico, abarcando cada vez mais as novas tendências e anseios da sociedade. [93] Ainda nesse sentido de acordo com os dizeres do estatuto da cidade, o plano diretor deve ser pautado na integração dos vários sistemas sociais para que se atinja o bem-estar coletivo e o ideal de uma cidade sustentável.[94]
Vale ressaltar uma pequena, porém relevante discrepância entre as normas constitucional e do EC, já que essa institui que os planos diretores devem abranger todo o território municipal e aquela somente diz sobre sua área urbana.
Muito embora a discussão a respeito da constitucionalidade da norma possa ser levantada, há de se destacar as vantagens advindas dessa ampliação.
No que pese gerarem-se maiores gastos ao erário municipal, a inclusão da zona rural no planejamento urbano pode trazer grande impacto positivo, uma vez que frente à dinamicidade entre campo e cidade, a população urbana necessita de uma extensa rede de bens e serviços para manutenção de suas vidas, ao passo que a rural, mesmo nas regiões mais centrais do globo precisa de um número muito menor desses. [95]
Nesse sentido vale ainda ressaltar que não há invasão de competência do Município frente à União, uma vez que o plano diretor abrangerá todo o território da municipalidade somente no que toca a elementos organizacionais, não invadindo a política rural, competência do governo de Brasília. [96]
Corroborando com isso é a visão de Paulo de Bessa Antunes, que elenca a interação entre as atividades urbanas e rurais visando ao desenvolvimento socioeconômico do município como princípio da proteção do meio ambiente urbano[97].
Uma vez que toda a comunidade é diretamente afetada durante anos com a elaboração do plano diretor, sua feitura deve ser um processo técnico e político, sendo essa última necessariamente fruto da interação dos diversos setores da comunidade, sem que haja prevalência de um dos polos em detrimento quase que absoluto do outro[98], refletindo também características dos diversos sistemas sociais da comunidade, ampliando portanto as chances de ser cumprido.
Esse processo estabelece um justo ponto entre as tradicionais políticas ambientais que se assemelham em muito às normas programáticas de José Joaquim Gomes Canotilho[99] e os estudos ambientais específicos como o Estudo de Impacto de Vizinhança e Estudo de Impacto Ambiental.
Muito embora sejam pungentes as vantagens da elaboração e consecução desses planos, permitindo a interação entre todos os setores da comunidade para a condução das mudanças na cidade, os Municípios ainda não se valem de forma correta ou efetiva de seus planos diretores, uma vez que esses remetem a leis específicas que nunca saem do papel, transformando seus planos diretores em verdadeiras leis gerais que somente postergam as soluções aos problemas urbanos[100].
Paralelamente, os planos que se propõem a uma maior participação da sociedade civil não têm encontrado êxito, seja [1] por falta de experiência administrativas dos governantes, [2] por equipes mal formadas, coordenadas e tecnicamente despreparadas, e/ou [3] por uma sistemática e acirrada oposição política, desunião partidária e pressões da mídia[101], além dos notórios lobbies econômicos.
Com isso o princípio democrático, geral a todo o direito ambiental, e da gestão democrática[102], específico do meio ambiente artificial são relegados a normas abstratas e sem aplicação prática.
Há necessidade de uma mudança efetiva de postura dos agentes envolvidos, sejam eles públicos ou privados com o fito de trazer efetividade aos planos já devidamente propostos e de rever de modo sensato os que ainda não reflitam os objetivos pretendidos.
CONCLUSÃO
A cidade não se identifica com o município, mas dele não se pode separar, conforme a Constituição de 1988. Do mesmo modo a cidade não pertence ao Município, mas esse é seu principal gestor, sendo-lhe conferidos amplas prerrogativas administrativas e legislativas, muitas ainda pouco exploradas. Nesse grupo, pode-se destacar a força do plano diretor, e a profundidade do conceito de interesse local, capazes de isolada ou concomitantemente gerarem individualidade jurídica sensível de um município a outro, e de fato, de um meio urbano a outro, estando eles dentro ou não da mesma municipalidade.
Do ponto de vista dos Estados Federados, percebe-se um potencial integrador das malhas interurbanas, mas amplamente negligenciada, ocasionando isolamento prejudicial entre os ambientes urbanos de diversos municípios.
Já a União, em sua competência genérica, ordena de forma ampla o ambiente urbano, e algumas vezes, muito embora não fale diretamente de cidades, contribui indiretamente para seu meio ambiente.
Cada vez mais governos e legislações vêm tratando do ambiente urbano como algo integrado e dinâmico, forçando uma interação entre as três esferas e a exploração de vastos campos legislativos e administrativos negligenciados, a fim de se alcance respostas para os hodiernos desafios das cidades modernas.
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[1]Advogada, professora universitária e especialista em Direito Civil pela Universidade Anhanguera. Pós-graduanda em Docência do Ensino Superior. Coordenadora do Grupo de Estudo de Direito Aplicado.E-mail: [email protected]
[2]Auditora Fiscal da Receita Estadual (MG), professora universitária, pós-graduada e mestre pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Coordenadora do Grupo de Estudo de Direito Aplicado. E-mail: [email protected]
[3] COELHO, 2004.
[4] PRESTES, 2010.
[5] LUHMANN, 2007.
[6] Art. 32. O Distrito Federal, vedada sua divisão em Municípios, reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços da Câmara Legislativa, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição.
[7] Art. 33. A lei disporá sobre a organização administrativa e judiciária dos Territórios. § 1º - Os Territórios poderão ser divididos em Municípios, aos quais se aplicará, no que couber, o disposto no Capítulo IV deste Título.
[8] MAGALHÃES, 2006.
[9] Ob. Cit.
[10] FIGUEREDO, 2007.
[11] Ob. Cit.
[12] Ob. Cit., p. 107.
[13] FERNANDES. In FERNANDES; ALFONSIN, 2011, p. 13.
[14] SILVA, 1993.
[15] COELHO, 2004.
[16] Silva (1993), ressalta que a classificação de competências pode se dar de várias formas. Sendo, portanto, a enumeração aqui apresentada somente um indicativo para divagações futuras.
[17] Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
[18] ANTUNES, 2011.
[19] Op. Cit., p.92.
[20] Op. Cit.
[21] Op. Cit.
[22] COELHO, 2004, p. 211.
[23] AMORIM, 2012, p. 55.
[24] FIGUEREDO, 2007.
[25] SILVA, 1993.
[26] Ob. Cit.
[27] Salvo se a referida norma somente tiver valia no âmbito da União.
[28] COELHO, 2004.
[29] Canotilho, 2004.
[30] No referido texto, Canotilho (2004) descreve a existência de conceitos vagos e desprovidos de significado, os quais valem como verdadeiros coringas argumentativos, se amoldando ao objetivo pretendido por seu interlocutor ou servindo de base para divagações sendo que, entretanto, nem o ouvinte ou o interlocutor conhecem realmente o significado do conceito usado. Assim discursos erigidos sobre tais conceitos fuzzy são análogos a casas construídas sobre areia movediça, já que as bases de suas argumentações carecem de compreensão.
[31] CANOTILHO, 2001.
[32] Tal situação será melhor esplanada no capítulo três dessa dissertação, sendo, entretanto, essencial antecipar o presente ponto, mesmo que suscintamente.
[33] SIMIONI, 2011.
[34] Ob. Cit.
[35] § 2º Para os efeitos deste Código, entende-se por: [...] II - área de preservação permanente: área protegida nos termos dos arts. 2º e 3º desta Lei, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas;
[36] Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;
[37] Nesse sentido também é Antunes (2011).
[38] BRITO, 2006, p. 48.
[39] BRITO, 2006.
[40] Ob. Cit., p. 48 e 49.
[41] Ob. Cit.
[42] Ob. Cit.
[43] ANTUNES, 2011.
[44] Cf. MILARÉ, 2007.
[45] Cf. op. cit.
[46]SANTIN, 2008.
[47] Op. Cit., p. 91.
[48] SANTIN, 2003.
[49] SANTIN, 2008, p. 91.
[50] SANTIN, 2003.
[51] GARCIA, 2006.
[52] Ob. Cit.
[53] SANTIN, 2003.
[54] Cf. GONÇALVES, 2002.
[55] RODRIGUES, 2002.
[56] Cf. GONÇALVES, 2002.
[57] RODRIGUES, 2002.
[58] GONÇALVES, 2002.
[59] Cf. RODRIGUES, 2002.
[60] Como, por exemplo, o de não abrir janelas a menos de um metro e meio do vizinho, pois a instituição de recuos mínimos inviabilize tal prática.
[61] Cf. MILARÉ, 2007.
[62] Cf. ob. cit.
[63] ROCHA, 2011.
[64] BOECHAT, 2007.
[65] PEREIRA, 1998.
[66] Cf. MILARÉ, 2007.
[67] ANTUNES, 2011.
[68] Ob. Cit.
[69] ROCHA, 2010.
[70] Ob. Cit.
[71] FERNANDES, 2004 apud ROCHA, 2010.
[72] Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição. [...] § 3º - Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.
[73] SCOLFORO, 2008.
[74] MILARÉ, 2007.
[75] SANTIN, 2003.
[76] ROCHA, 2011.
[77] FERRAZ, 2001, p.140.
[78] SANTIN, 2003.
[79] COELHO, 2004.
[80] Art. 30. Compete aos Municípios: I - legislar sobre assuntos de interesse local;
[81] COELHO, 2004, p. 208.
[82] MOTA, 2004, p. 208.
[83] FERRAZ, 2001.
[84] Situação essa análoga à decisão jurídica resultante da ponderação de Alexy, conforme pode-se verificar em Streck, 2011.
[85] Aqui entendido como interesse do Estado.
[86] ROMANO, 1950, p. 345-356.
[87] COELHO, 2004.
[88] Cf. LUHMANN, 2007.
[89] Importante aqui não se confundir interesse geral com normas gerais, pois essas têm caráter legislativo a ser complementado e aquele se foca na amplitude da matéria e de suas consequências em um enfoque espacial inexistente aquando se fala em normas gerais.
[90] Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
[91] SILVA, 2010.
[92]CF. CASTRO, 2008.
[93] AMORIM, 2012.
[94] Op. Cit..
[95] LOPES, 1998.
[96] PRESTES, 2010.
[97] ANTUNES, 2011.
[98] GONDIM, 2006.
[99] CANOTILHO, 2001.
[100] PRESTES, 2010.
[101] GONDIM, 2006.
[102] ANTUNES, 2011.
Advogado, consultor ambiental, professor de Direito na Universidade Vale do Rio Verde e Faculdade de São Lourenço. Graduado em Direito pela Faculdade de São Lourenço, pós-graduado em Direito Público pela Faculdade de São Lourenço, em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas, Direito Ambiental e Urbanístico pelo Centro Anhanguera de Promoção e Educação Social e mestre em Direito - linha Constitucionalismo e Democracia - pela Faculdade de Direito do Sul de Minas Gerais.
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