Resumo: O presente trabalho tem como escopo, a análise do tema sobre o multiculturalismo e sua influência no mundo moderno, tendo como base de estudo, o recente caso brasileiro da tribo indígena Suruahá. O embate traz a tona, conflitos de princípios constitucionais a cerca da liberalidade do Estado Brasileiro em intervir em micro sistemas culturais, alterando sua essência, ditando regras, sufocando tradições que são anteriores a promulgação da Carta Magna de 1988 de marco axiológico ao povo brasileiro, podemos dizer, até mesmo, anterior à chegada do homem europeu em terras brasileiras.
Palavras-chave: Multiculturalismo; Dignidade da pessoa humana; Constituição da República Federativa do Brasil.
Abstract: This work has the objective, the subject of analysis on multiculturalism and its influence in the modern world, with the study base, the recent case of Suruahá Brazilian Indian tribe. The clash brings out, conflicts with constitutional principles about the generosity of the Brazilian State to intervene in micro cultural systems, changing its essence, dictating rules, stifling traditions that predate the enactment of the 1988 Constitution of March axiological to the Brazilian people, we can say even before the arrival of the European man in Brazilian territory.
Keyword: Multiculturalism; Dignity of human being; Constitution of the Federative Republic of Brazil.
1. Introdução
O trabalho consistirá numa análise de estudo hermenêutico, utilizando o método reflexivo da diatópica, sustentada por Raimon Panikkar, sob uma ótica de não sobrepujamento de culturas, seria possível um convívio de culturas divergentes sob um mesmo manto Jurídico que protege o bem da vida, mas ao mesmo tempo defende o direito à liberdade de consciência e crenças?
É imperativo citar, que esse caso não isolado ao Brasil, é possível vislumbrar fatos que ocorrem por todo o mundo, principalmente na América Latina, na qual, ainda persistem celeumas sociais e países de que adotam formas totalitárias de governo, oprimindo garantias da órbita dos direito humanos, que possuem abrangência mundial.
Farei uma breve referência sobre alguns métodos hermenêuticos que corroboram com visão diatópica, assim como o processo histórico de formatação desde o Estado Liberal até ao Estado Democrático de Direito, o qual estamos inseridos atualmente, e a nova perspectiva do pós-positivismo e do Neoconstitucionalismo e seus reflexos em nossa sociedade, em especial no Supremo Tribunal Federal.
2. Noção de hermenêutica diatópica
As origens da palavra “Hermenêutica” residem no verbo grego hermeneuein, usualmente traduzido por interpretar, bem como no substantivo, hermeneia, a designar interpretação. Uma investigação etimológica dessas duas palavras e das orientações significativas básicas que elas veiculam no seu antigo uso esclarece consideravelmente a natureza da interpretação em Teologia, Literatura e Direito, servindo no atual contexto de introdução válida para a compreensão da hermenêutica moderna.
A sua origem também está marcada pelo Deus alado Hermes, tal como descreve com brilhantismo, o professor Ricardo Maurício Freire Soares (2010):
Estes vocábulos remetem também à mitologia antiga, evidenciando os caracteres conferido ao Deus-alado Hermes. Esta figura mítica era, na visão da antiguidade ocidental, responsável pela mediação entre os deuses e os homens. Hermes, a quem se atribui a descoberta da escrita, atuava como um mensageiro, unindo a esfera divino-transcendental e a civilização humana.
A hermenêutica diatópica pode ser definida, segundo Boa Ventura Santos como uma prática de interpretação e de tradução entre culturas do diálogo entre culturas por intermédio da qual se amplia a consciência da incompletude de cada cultura envolvida no diálogo e se cria a disponibilidade para a construção de formas híbridas de dignidade humana mais ricas e amplamente partilhadas:
Enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo globalizado e, portanto, como uma forma de globalização hegemônica. Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização contra-hegemônica, os direitos humanos têm de ser reconceitualizados como multiculturais (SANTOS, 2003, p. 448).
Não seria nenhuma insanidade, afirmar que os ideais de Raimon Panikkar, se baseiam no puro amor ao próximo, a esperança de um mundo sem guerras, de aceitação mútua, baseada no respeito, uma visão do futuro. Talvez uma “arma” para que possa se vencer uma batalha contra a intolerância.
Justiça e verdade, que deveria abraçar todos os componentes de um mundo tão rico e multicultural, em constantes mudanças, de um dinamismo sem igual, podendo ser encontradas culturas extremas que chegam ao ponto de divergir com tendências que a maioria do mundo segue.
A história comprova, ao longo dos séculos, o quão desastrosa é os métodos imperialistas, a dominação por parte do homem, parece que é raiz interna do seu ser, fez com que várias culturas ricas fossem dizimas, a saber, nas Américas, pelos Astecas e Maias, tiveram sua cultura sobrepujada, sendo reduzidos a apenas lembranças em escritas e construções.
A intolerância religiosa deixou cicatrizes enormes nas civilizações, principalmente nas Cruzadas, sob um pretexto de exploração de riquezas, foi praticada uma eugenia contra os povos mulçumanos. Panikkar em suas passagens deixa clara a indissociável relação entra cultura e religião da sociedade, sendo um marco do pensamento ideológico de um povo.
O multiculturalismo sempre existiu, ganhou força nesse último século, com o vasto estudo de casos que permeiam as sociedades modernas, com o advindo da concretização dos Direitos Humanos e sua efetivação como instrumento de defesa dos direito das minorias, em especial, os índios, homossexuais, deficientes físicos, ficou mais fácil perceber, o quão opressor é a sociedade quando se trata do diferente.
Por mais que se possa acusar os direitos humanos de produto da cultural ocidental, é relevante sua consagração como foco de aglutinação da diferença. Se a humanidade pretende discutir seu futuro em um equilíbrio entre a homogeneidade e a heterogeneidade, os direitos humanos devem representar a base para o diálogo do cosmopolitismo multicultural (MELO, 2001, p. 143).
A noção diatópica carrega um discurso de respeito e aceitação, através do diálogo e tolerância com o próximo, o dever de trata-lo como companheiro e não como estranho (estrangeiro), remontando a ideia do estrangeiro nas cidades gregas, não tinham direitos que os cidadãos homens possuíam, podendo em alguns casos, ser transformados em escravos.
E dessa perspectiva, podemos perceber aqueles que não se adequam as imposições hegemônicas, tendem a ser escravizadas e convertidas, sob o manto de um processo de homogeneização.
Para a resolução de conflitos, a hermenêutica diatópica, trata de buscar uma valorização, principalmente aos países orientais que conservam suas culturas milenares, busquem um diálogo com outras culturas sem serem absorvidas, mantendo sua real essência.
3. O caso da Tribo Suruahá
O caso indígena ganhou grande repercussão no Brasil e no mundo, até que ponto o Estado pode penetrar no Direito de micro sistemas, a exemplo da tribo Suruahá? É sabido que a nossa CRFB/88, em seu capítulo 5°, enumera os direitos fundamentais, e dentro deles, a proteção à vida. Sabemos também, que esse direito, não absoluto, sofrendo restrição em tempos de guerra, podendo ser decretada pena de morte.
O legislador constituinte brasileiro conferiu à ideia de dignidade da pessoa a qualidade de norma embasadora de todo o sistema constitucional, que orienta a compreensão da totalidade do catálogo de direitos fundamentais, tais como os direitos individuais à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e à propriedade (SOARES, 2010, p. 135-136).
O caso da Tribo Suruahá é bastante complexo, pois lida de um lado com a cultura de uma tribo, de outro lado, o direito positivo de uma nação que busca a prevalência dos direitos humanos. A cultura da tribo determina que todos que apresentem problemas de saúde devem ser sacrificas, pois não existe felicidade na vida, para família e para o enfermo, nesses termos.
Os Suruahá acreditam na existência de outra vida, após a morte. A “outra vida” seria o melhor lugar para se viver, um lugar de muita alegria, onde se reencontra com os antepassados e onde as pessoas não envelhecem jamais, para eles, o bom é a morrer novo e jovem.
A Suprema Corte Constitucional Brasileira adota a doutrina de Robert Alexy, sendo norma considerada gênero, e regra e princípios espécies do gênero, logo, possuem o mesmo valor jurídico, sendo o princípio dotado de baixo valor semântico. Determina que não exista hierarquia entre os princípios, devendo a Constituição ser interpretada como um texto único e não como um livro de retalhos.
O que existe na verdade é a ponderação de bens e interesses, de um lado, o Estado Brasileiro tentando defender o direito à vida e a preservação da tribo, do outro lado à tribo tentando manter sua tradição secular. O próprio Neves, afirma que a interferência do Estado Brasileiro na cultura dos Suruahá, será similar a um genocídio cultural.
A atuação de entidades no seio da aldeia, não pode ser encarada com uma benesse, já que esse sistema de atuação é condenável. Aplica-se uma visão cristã, criminalizando o ato de suicídio coletivo. Esse tipo de hermenêutica pode ser definido como diacrônica. Tal tendência, denominada etnocentrismo, é responsável em seus casos extremos pela ocorrência de numerosos conflitos sociais.
É necessário que o Estado brasileiro, lance mão do seu Direito sob ótica ética, utilizando o diálogo como fonte primária de resolução de conflitos, e porque não utilizar a teoria da comunicação, de Habermas, fazendo uma leitura geral dos interesses para que se possa chegar a um denominador comum, assim se materializa a democracia. Afinal, Estado Democrático se constrói com participação popular.
A ponderação de interesse urge um diálogo aberto, surgindo daí, a necessidade de relativizar o direito e edificar um olhar para o outro, a partir de conceitos produzidos por diversas áreas do conhecimento, que não somente o conhecimento normativo. Antes de qualquer ato que vise a limitação de cultura por meios legais, é necessário um estudo profundo de Antropologia, Filosofia e sociologia, evitando a extinção de mais uma tribo indígena.
Sendo assim, a colisão principiológica se resolve mediante um processo hermenêutico de ponderação, em que os diversos princípios jurídicos relevantes ao caso concreto são apreciados em face dos fatos e valores incidentes (SOARES, 2010, p. 116).
Não se pode desconsiderar, que existam diferentes culturas e que elas possuem outros significados. Com isso não se quer dizer que as mesmas não estejam englobadas e protegidas pelo ordenamento jurídico nacional.
4. Conclusão
A hermenêutica diatópica, juntamente com o transconstitucionalismo, são meios efetivos para a resoluções de conflitos culturais, abrindo espaço para um diálogo entre as fontes do direito com os métodos.
Os princípios e garantias fundamentais expressamente previstos expressos em nossa Constituição Federal, principalmente os direitos humanos tidos como universais, como o direito à vida, refletem a importância da efetivação dos direitos indígenas.
A Declaração dos Direitos Humanos em seu artigo 1° dita, “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.” A hermenêutica diatópica compartilha desses ideais de valores supranacionais.
É necessário a priori, iniciar um ‘diálogos interculturais’, não como método de impor uma cultura, mas buscar garantir, além do direito à vida, o direito à igualdade, primando-se sempre pela liberdade como ideal de justiça, tendo como base o princípio da liberdade e dignidade da pessoa humana.
O princípio da igualdade determina um tratamento jurídico de equiparação onde não houver justificativa para a diferenciação e determina um tratamento jurídico de distinção onde houver motivo suficiente para diferenciar, dai se conhece o ditado pela lógica Aristotélica, e popularizado no Brasil pelo iminente Jurista baiano Ruy Barbosa (apud ROCHA, 1990, p. 118), “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em eles se desigualam”.
Kant, sob influência do iluminismo, inserido sob a escola do jusnaturalismo racional, deixa claro que o homem deve ser tratado sempre como fim e nunca como meio de utilização por parte do Estado. A dignidade é a matriz do nosso Estado, e no mesmo sentido, Kant escreve que a liberdade é pressuposto básico da democracia, e o Brasil, no artigo 1°, firma-se como Estado Democrático de Direito, influenciado tanto pelo Estado Liberal (submisão as normas) e Estado Social (dirigente aos problemas sociais).
O reconhecimento jurídico da dignidade da pessoa humana não deriva de lei natural ou de um direito natural, mas de sucessivas conquistas históricas que encontram raízes em vários momentos, tais como na doutrina cristã, no iluminismo kantiano e nas reações ao nazismo (BORGES, 2005, p. 19).
Por fim, o Direito não enxerga o mundo sozinho e, por isso, muitas vezes precisará de uma nova janela e apoio de outras ciências e de outros campos do saber para resolver a demanda de conflitos, tais como da Antropologia, Sociologia, Psicologia, Medicina, entre outros.
Referências bibliográficas
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de personalidade e autonomia privada. 2° Ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
MELO, Carolina de Campos. Multiculturalismo e globalização: desafios contemporâneos ao Estado Nacional. Dissertação para a obtenção do título de Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. Rio de janeiro, 2001.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet / Curso de Direito Constitucional, SARAIVA, ed. 7°, 2012.
PINHO, Rodrigo Cesar Rebello. Teoria dos direitos fundamentais, SARAIVA, ed. 12°, 2012.
ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. O Princípio Constitucional da Igualdade. Belo Horizonte: Lê, 1990.
SOARES, Ricardo Maurício Freire. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Saraiva: São Paulo, 2010.
SOUSA SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos [I]. In: SOUSA SANTOS, Boaventura de (Org). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
Tabelião substituto. Especialista em Direito do Estado e Direito Empresarial.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VIEIRA, Hugo Amoedo. Multiculturalismo e o caso da Tribo Suruahá Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 jan 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45883/multiculturalismo-e-o-caso-da-tribo-suruaha. Acesso em: 23 dez 2024.
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