1. Introdução: o Neconstitucionalismo e a importância dos direitos fundamentais
O Constitucionalismo surge contemporaneamente ao nascimento do Estado Moderno, com o liberalismo clássico, diante de um movimento racionalista do Século XVIII. Foi um instrumento utilizado pela classe burguesa, em ascensão, para garantir o seu poder político, social e econômico. A argumentação da burguesia baseou-se na Constituição, de forma totalmente contrária ao argumento dos Reis, que se pautava no poder dado pela divindade, argumento intensivamente teocrático. [1]
Destarte, o Constitucionalismo Clássico marcou o apogeu da burguesia e o declínio da nobreza, através da supremacia da lei e de um Estado de Direito em contrapartida ao Estado anterior, justificado por argumentos teocráticos, no qual o Rei, através do governo despótico, não possuía limites. O Estado Moderno foi marcado pelo modelo “Hobessiano”: considerava o soberano como o amparo da ordem, e a grande população, os denominados súditos, com o dever de obedecer todas as decisões do soberano, com o escopo de garantir a paz. É o chamado contrato social, ou o pactum subiectionis. [2]
A Magna Charta Libertatum e os pactos medievais não podem ser considerados como Constituições, com a conceituação que se concebe hodiernamente. A Magna Charta Libertatum teve a importância de estabelecer o principio de que o Rei não estava acima da Lei. Nelson Saldanha esclarece que:
No presente estudo, o ponto de vista dominante é o de que o pensamento constitucional só se estrutura plenamente, por seu conteúdo e sua forma, dentro da experiência do Ocidente contemporâneo. Mas nada impede que sejam mencionadas as experiências anteriores, mesmo porque - e isso é muito importante – sem elas, sem a compreensão destes e de sua conexão com o mundo dito moderno e contemporâneo, o entendimento do que foi tomado como “plenamente” e como “propriamente dito” ficará sempre insuficiente.[3]
Outros textos como a Mayflower Pact e o Agreement of People surgiram no século XVII, mas não possuíam como escopo a estruturação de forma ampla da vida política do Estado. [4]
Com o surgimento da Constituição, com a conceituação concebida atualmente, as condutas sociais foram determinadas por normas que deveriam ser seguidas por todos. As primeiras constituições foram consideradas liberais, burguesas e continham direitos civis e políticos. Os direitos só atingiam a burguesia, única classe social que foi beneficiada com as constituições liberais. Destacam-se os seguintes valores marcados pela concepção de um constitucionalismo liberal: individualismo, absenteísmo estatal, propriedade privada e proteção ao indivíduo.
A Lex Mater burguesa serviu como um freio aos arbítrios dos reis, que concentravam todos os poderes e não possuíam limites. Construiu uma nova ordem, pautada na tripartição dos poderes e com a proteção jurídica dos direitos fundamentais. Podemos classificar o surgimento das constituições liberais como o movimento do constitucionalismo clássico.[5]
O modelo de liberal satisfez os interesses da burguesia capitalista, permitindo o desenvolvimento da atividade econômica. Politicamente o Estado liberal foi concebido como uma estrutura de poder absenteísta na qual não existe espaço par qualquer intervenção do poder público na atividade econômica.
A concepção liberal gerou concentração de renda e exclusão social o que, por conseguinte, ensejou o constitucionalismo social, momento em que o Estado é chamado para evitar abusos e limitar o poder econômico concentrado.[6] Nesse contexto que se inserem os direitos fundamentais de segunda dimensão: sociais, culturais e econômicos.
Hodiernamente, as Constituições são concebidas por sua finalidade de concretização dos direitos fundamentais. Tal caráter finalístico deriva do movimento do neoconstitucionalismo, também chamado de Constitucionalismo dos Direitos, Constitucionalismo Avançado ou Paradigma Argumentativo, que surgiu no âmbito mundial com o cenário pós Segunda Grande Guerra, momento de redemocratização.
O prefixo "neo" que aparece na palavra "neoconstitucionalismo" já indica ser esse movimento uma feição nova de algo que ocorreu anteriormente, a saber: o constitucionalismo. Designa, portanto, o constitucionalismo contemporâneo, cujo marco histórico foi, no Brasil, a Constituição de 1988, em um momento de reconstitucionalização do país, que superava o regime autoritário e alcançava um Estado democrático de direito. [7]
O caráter ideológico do Neoconstitucionalismo é de concretizar os direitos fundamentais, e a Constituição ganha força normativa, tendo um caráter de eficácia direta e imediata. Solidifica-se, assim, a consolidação das normas constitucionais que ganham caráter vinculativo.
Nesse diapasão, de uma forma ampla, uma das formas de se conceituar o Neoconstitucionalismo é como uma reanálise da Lex Mater com o escopo de aumentar a sua eficácia e consolidar os direitos fundamentais. A Constituição ganha supremacia e sua proteção cabe ao Poder Judiciário. Ocorre a expansão para inúmeros países da jurisdição constitucional, de modo que os países da Europa vieram a adotar modelos diferentes de controle de constitucionalidade e de criação de tribunais constitucionais.
Segundo os ensinamentos de Walber Agra:
o caráter ideológico do Neoconstitucionalismo é o de concretizar os direitos fundamentais. Cumpre a todos os poderes estabelecidos efetivar os postulados agasalhados na Lex Mater, consolidando seu papel de pacto vivencial da sociedade.[8]
Fica clara, assim, a diferença no tocante ao caráter ideológico do movimento do neoconstitucionalismo e do constitucionalismo clássico. A Constituição deixa de ser concebida apenas como uma “folha de papel”, para ser um texto de eficácia concretiva plena.[9] A supremacia das normas constitucionais é de suma importância para garantir a fundamentação de uma jurisdição constitucional, através da submissão de todos os poderes estatais ao conteúdo estipulado pela Lex Mater.
Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas programas, o que traria o risco de terem seu caráter normativo desconsiderado. A força normativa da Lei Maior traz como decorrência a sua tutela mais ampla, de modo que, os direitos fundamentais gozam de maior aplicabilidade. A eficácia dos direitos possui dois sentidos: a eficácia social que se refere a circunstância de que a norma é obedecida e aplicada na realidade fática, sendo justamente a efetividade da norma e a eficácia jurídica como a capacidade de alcançar os objetivos estabelecidos pela norma. Como ensina Jose Afonso da Silva:
Tratando-se de normas jurídicas, a eficácia consiste na capacidade de atingir os objetivos nelas traduzidos, que vem a ser, em ultima análise, realizar os ditames jurídicos objetivados pelo legislador. Por isso é que se diz que a eficácia jurídica da norma designa a qualidade de produzir, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos, ao regular, desde logo, as situações, relações e comportamentos de que cogita; nesse sentindo, a eficácia diz respeito à aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma, como possibilidade de sua aplicação jurídica. O alcance dos objetivos da norma constitui a efetividade. Esta é, portanto, a medida da extensão em que o objetivo é alcançado, relacionando-se ao produto final. [10]
Os direitos fundamentais não são absolutos, mas limitados pelas demais normas da Constituição, assim como pelas infraconstitucionais que delimitam o seu sentido. Ocorre que, do ponto de vista jurídico dogmático, os direitos fundamentais tornam-se relevantes quando ocorre uma intervenção no seu livre exercício. Estudar os direitos fundamentais significa principalmente estudar as suas limitações. Tais direitos consagram, sobretudo, valores.
No contexto do Neoconstitucionalismo, que tem como caráter ideológico a concretização dos direitos fundamentais, torna-se importante o estudo das intervenções no livre exercício desses direitos. Um dos principais vetores dos direitos fundamentais é o interesse público, pautado no princípio do bem comum.
Dentre os direitos fundamentais assegurados constitucionalmente, destaca-se o direito de propriedade que, como todos os direitos, passou por uma evolução história de acordo com o contexto social. Assim como os demais direitos fundamentais, não se trata de um direito absoluto, mas é passível de limitações.
O direito de propriedade no âmbito do constitucionalismo liberal recebeu tratamento diferenciado do contexto do constitucionalismo social. Diante de uma perspectiva do Neoconstitucionalismo, tal direito passa a ser analisado sob uma ótica de concretização, devendo, contudo, ser compatibilizado com a limitação imposta pela própria Constituição Federal, a função social da propriedade, bem como pelo princípio do interesse público sobre o privado.
2. Evolução histórica do direito fundamental de propriedade
A evolução histórica da propriedade é de extrema importância para analisar o contexto atual que a propriedade se insere e suas limitações. A história da propriedade encontra-se intimamente relacionada com a organização política das sociedades. Existe uma nítida influência do regime político sobre o modelamento da tipicidade dominial. Por conseguinte, a propriedade individual é vista como padrão de direito subjetivo nos regimes capitalistas, e contrapondo-se a ela existe a propriedade coletiva, predominantemente vigente em regimes socialistas.
A Revolução Francesa trouxe à baila o ideal romano de domínio individual e absoluto da res. A expressão romana dominium ex iuri quiritium designava adesão à propriedade de forma plena e exclusiva, sendo uma prerrogativa de forma absoluta e ilimitada[11]. Com o surgimento do capitalismo e o início das revoluções industriais, a concepção individualista da propriedade chega ao seu auge.
O capitalismo se sustentava em dois pilares: o da propriedade e o da liberdade. Uma nova ideologia surgira: o liberalismo, baseado na igualdade formal das pessoas perante a lei, e pautado num Estado não intervencionista.[12] Importava apenas a aquisição de bens por parte do particular, sem contar com a participação da coletividade, sendo justificada pela intensificação da produtividade e lucros, com respaldo na exacerbada autonomia privada.
Politicamente, o Estado Liberal foi concebido como uma estrutura de poder absenteísta na qual não existe espaço par qualquer intervenção do poder público na atividade econômica, ou seja, a existência de um estado mínimo cuja função principal é assistir de longe o desenvolvimento da dinâmica social. Do ponto de vista econômico, o modelo liberal clássico consagra as regras de auto regulação do mercado compreendida a partir da metáfora da mão invisível.
Com a crise do Estado Liberal surgiu o denominado Estado Providência. Surge a necessidade de um Estado Social, com prestações positivas por parte do Estado, capaz de amparar e proporcionar melhorias para os hipossuficientes, privados de acesso a bens mínimos de sobrevivência. Vem à tona o Estado Social, também conhecido como Estado Providência ou o Welfare State, o Estado do bem-estar social. A realização dos direitos depende, assim, de uma superação do absenteísmo liberal e a consagração de uma forte intervenção na atividade econômica. É nesse contexto que se insere o Constitucionalismo Social.
A partir desse momento, a propriedade deixa de ser ilimitada e passa a ser compatibilizada com o interesse social, ou seja, da coletividade, tendo o Estado o papel de garantidor. O individualismo exacerbado, portanto, perde a sua força e surge o sentido social da propriedade.
Inicialmente, trata-se o direito de propriedade como um direito individual, sendo assegurado ao seu titular diversos poderes de natureza privada, dentre os quais se podem destacar: usar, usufruir, dispor, gozar e reaver um bem de maneira absoluta, exclusiva e perpétua. O direito de propriedade caracteriza-se como o direito mais amplo e complexo dentre os direitos subjetivos, por ser um feixe de poderes nas mãos do titular.
Trata-se de uma relação jurídica complexa formada entre o titular do bem, o proprietário, e a coletividade. O artigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988 afirma ser a propriedade um direito fundamental, ao lado da vida, liberdade, igualdade e a segurança. A propriedade como um direito fundamental existe como função à proteção pessoal do titular, já que existe uma garantia da autonomia privada em caráter erga omnes, ou seja, a satisfação da propriedade exercida pelo seu titular exige um comportamento abstencionista por parte da coletividade.
A propriedade dos bens imóveis surge a partir do registro que leva a publicidade e, por conseguinte, o direito geral de abstenção passa a ser exigível perante todos os indivíduos da sociedade. Aqueles que não são proprietários devem respeitar o exercício de propriedade do titular que possui o livre exercício sobre a coisa, visto que exerce uma posição de vantagem sobre esta. Intromissões e ofensas sem amparo legal no direito de propriedade representam violações à liberdade e a privacidade que o titular detém sobre o bem jurídico tutelado.
Clóvis Beviláqua conceitua a propriedade como sendo o poder assegurado pelo grupo social à utilização dos bens da vida física e moral.[13]
O caráter absoluto da propriedade garante ao proprietário o direito de dispor da coisa como ele bem entender. O absolutismo do direito de propriedade não é integral, visto que, até mesmo os direitos que integram, tradicionalmente, o rol de absolutos vem se tornando mais relativos. Deste modo, o direito de propriedade está sujeito à algumas limitações impostas pelo direito público, bem como pelo direito de propriedade das outras pessoas. [14]
É também de caráter exclusivo, uma vez que é exercido de forma individual, não podendo pertencer com exclusividade por mais de uma pessoa. O direito de propriedade proíbe que terceiros, não proprietários, exerçam o direito de senhoria sobre o bem. No mesmo lapso temporal, duas ou mais pessoas não podem exercer com exclusividade o direito de propriedade sobre a coisa, tendo o proprietário direito de ação reivindicatória caso haja interferência na sua propriedade. O direito de propriedade existe independentemente do seu exercício, enquanto não houver causas que o modifique ou extinga, sendo transmitida por direito hereditário. [15]
Por isso, a doutrina tradicional classifica-o como um direito perpétuo. Neste sentido, o direito de propriedade apenas se extingue pela vontade do dono, ou por disposição expressa legal, nos casos de perecimento da coisa, desapropriação ou usucapião.
3. Da estrutura do direito de propriedade
Os direitos subjetivos possuem em seu conteúdo faculdade jurídicas (facultas agendi), em oposição à norma agendi. O direito subjetivo é um poder concedido pelo ordenamento à pessoa na busca da satisfação de interesses próprios, facultas agendi, concretizando o comando previsto na norma legal abstrata, norma agendi.[16]
O direito de propriedade, tratado como um direito subjetivo, consiste em prerrogativas dos indivíduos asseguradas pelo direito objetivo. O artigo 1.228 do Código Civil elenca as faculdades do direito de propriedade, assim dispondo: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.
A faculdade de usar a coisa, ius utendi, significa que o proprietário pode se servir do bem, sem alterar-lhe a substância.[17] Utiliza-se o bem de acordo com a sua destinação econômica para todas as finalidades para as quais ele proporciona: utilização pessoal ou em prol de terceiro. O direito de uso confere ao proprietário a percepção dos frutos naturais para utilização pessoal ou em prol de terceiro. Poderá também o proprietário do bem deixá-lo em poder de outra pessoa sob as suas ordens. Ocorre que, em determinadas situações, caso o proprietário desidioso não cumpra com a sua faculdade de usar, poderá ocorrer a arrecadação pelo Poder Público do bem ou a desapropriação por interesse social, deixando de ser uma faculdade de usar para se tornar um dever jurídico. Neste sentindo, afirma Roberta Mauro:
A destinação que deverá ser dada ao bem não é mais uma escolha absolutamente livre, eis que a Constituição oferece uma guia à conduta do titular. Assim, o não uso deixa de ser uma opção de seu titular, tendo em vista que se antes os direitos sobre o mesmo se mantinham intactos, não obstante a falta de exercício, até que constituísse uma situação em proveito de terceiro, a legislação em vigor apresenta hoje uma seria de mecanismos capazes de coibir qualquer destinação que se mostre contraria a função social e ao desempenho econômico do bem, em beneficio da coletividade.[18]
A faculdade de gozar, o ius fruendi, diz respeito ao direito de perceber todos os frutos e rendimentos que ultrapassem do recolhimento dos frutos naturais. A percepção dos frutos naturais é característica da faculdade de usar o bem. Já os frutos industriais, aqueles que resultam da transformação do homem sobre a natureza, bem como os frutos civis, as rendas resultantes da utilização da coisa por outra pessoa, serão colhidos através da faculdade de gozar.[19] Está inserido também nessa faculdade o direito às pertenças, que se destinam, de acordo com o artigo 93 do Código Civil, ao uso, serviço ou aformoseamento do bem de modo duradouro.
Já faculdade de dispor o bem é albergada pelo direito do proprietário de alterar a substância da coisa, realizando o que desejar sobre o bem, conferindo destinação econômica a este. Pode, assim, alienar, gravar, desmembrar, dividir, consumir, transferir a coisa, etc.[20]
Por fim, a faculdade de reivindicar o bem é um elemento externo da propriedade, uma vez que garante ao proprietário o direito de excluir terceiros não proprietários da relação jurídica com a coisa. É uma consequência da lesão ao direito subjetivo de propriedade, consubstanciado no dever jurídico de abstenção.[21]
4. Limites à propriedade privada: entre o cumprimento da função social e a supremacia do interesse público sobre o privado
O direito de propriedade tem garantia constitucional, conforme dicção do artigo 5º, XXII da Constituição Federal. Entretanto, a própria Carta Maior, inserida no contexto do Neoconstitucionalismo, exige, em contraponto, que a propriedade atenda a função social, como estabelece o inciso XXIII do artigo 5º. O atual contexto da propriedade, portanto, se insere em um direito fundamental condicionado, limitado pela própria Constituição que o garante, devendo cumprir com a sua função social.
Destarte, depreende-se que o direito de propriedade não pode ser visto, hodiernamente, como um direito absoluto. Impende destacar que nenhum direito fundamental é absoluto, embora o ilustre filósofo Noberto Bobbio afirme que o qualificativo de absoluto cabe a pouquíssimos direitos, como a vedação à escravidão e à tortura. [22] Os direitos fundamentais são limitados pelos demais direitos presentes na Constituição e também pelas normas infraconstitucionais que limitam o seu sentido.
Dentro da perspectiva de limitação a direitos fundamentais, principalmente no que tange à propriedade, destaca-se o principal vetor para a sua restrição: o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. Segundo Celso Antonio Bandeira de Mello[23], o Direito Administrativo se delineia em função da consagração de dois princípios: o da supremacia do interesse público sobre o privado, e o da indisponibilidade, pela administração dos bens públicos. O primeiro se refere à superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como pressuposto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam sentir-se garantidos e resguardados nos seus direitos e bens. O segundo parte do pressuposto de que a Administração possui poderes-deveres, ou seja, lhe são concedidos determinados poderes como meios para o alcance de uma finalidade previamente estabelecida, que é defesa do interesse público, e não da entidade governamental em mesma consideradas.
Dirley da Cunha Jr. destaca que:
Na doutrina italiana é corrente a distinção entre interesses públicos primários, que são os interesses da coletividade como um todo e interesse públicos secundários, que são os interesses do estado como sujeito de direitos, independentemente de sua qualidade se servidor de interesses de terceiros. [24]
Ocorre que o princípio ora referido, da supremacia do interesse público sobre o privado, somente se aplica aos públicos primários, uma vez que são os únicos que podem ser tratados como verdadeiros interesses públicos. Estes correspondem ao conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente possuem quando considerados em sua qualidade como membros da sociedade.
Na lição de Celso Antonio Bandeira de Melo “os interesses públicos correspondem à dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, que consistem no plexo dos interesses dos indivíduos enquanto partícipes da sociedade”. [25]
Deste modo, os interesses públicos secundários apenas serão compreendidos como interesse público quando corresponderem aos interesses primários.
O direito de propriedade sempre foi contemplado em todas as Constituições do Brasil. A Constituição do Império foi inspirada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, garantia o direito de propriedade em toda a sua plenitude, trazendo um caráter eminentemente individualista. Apenas em 1967, apareceu textualmente a função social, como princípio de ordem econômica. Assim afirma Carlos Roberto Gonçalves:
O princípio da função social tem controvertida origem. Teria sido, segundo alguns, formulado por Augusto Comte e postulado por Léon Duguit, no começo do século. Em virtude da influência que a sua obra exerceu nos autores latinos, Duguit é considerado o precursor da ideia de que os direitos só se justificam pela missão social para o qual devem contribuir e, portanto, que o proprietário deve comportar-se e ser considerado, quanto á gestão dos seus bens, como um funcionário.[26]
A expressão função social deriva do latim functio que significa cumprir algo ou desempenhar um dever ou uma atividade. O direito à propriedade, portanto, encontra-se condicionado ao cumprimento da sua função social, que surgiu com as mudanças ocorridas no conceito de propriedade, deixando de ser um direito absoluto, inviolável, para atender às necessidades coletivas[27]. Sobre o tema, são as palavras de Orlando Gomes:
Estabelecidas essas premissas, pode-se concluir que pela necessidade de abandonar a concepção romana da propriedade, para compatibiliza-la com as finalidades sociais da sociedade contemporânea, adotando-se, como preconiza Andre Piettre, uma concepção finalista, a cuja luz se definam as funções sociais desse direito. No mundo moderno, o direito individual sobre as coisas impõe deveres em proveito da sociedade e ate mesmo no interesse de não proprietário. Quanto tem por objeto bens de produção, sua finalidade social determina a modificação conceitual do próprio direito, que não se confunde com a política de limitações específicas ao seu uso. A despeito, porém, de ser um conceito geral, sua utilização varia conforme a vocação social do bem no qual recai o direito – conforme a intensidade do interesse geral que o delimita e conforme a sua natureza na principal rerum devido tradicional. A propriedade deve ser entendida como função social tanto em relação aos bens imóveis como em relação aos bens móveis. [28]
É mister salientar que a função social diz respeito à própria estrutura da propriedade, não sendo apenas um limite ao direito do proprietário. O particular não deixa de ter o direito ao seu bem, haja vista a própria Carta Magna o garantir. Contudo, pelo princípio da predominância do interesse público sobre o interesse privado, deve o particular utilizar a propriedade de maneira racional em prol do bem-estar da sociedade.
Nesse sentido, José Afonso da Silva afirma que:
O princípio da função social traduz um novo regime jurídico à propriedade, pois incide no próprio conteúdo deste direito como elemento que determina a aquisição, o gozo e utilização; logo, ela só é considerada legítima enquanto considerada propriedade função. [29]
Caso o proprietário não venha a proceder de forma a cumprir com a função social, compete ao Poder Público exercer a tutela dos interesses públicos maiores envolvidos, ainda que em prejuízo do interesse individual do particular[30]. Destarte, pode vir o proprietário a perder a sua propriedade, através da intervenção do Estado.
5. Conclusão:
Estudou-se o contexto histórico no qual a supremacia dos direitos fundamentais da Constituição Federal de 1988 fora alcançada, através do Neconstitucionalismo, em detrimento do Constitucionalismo Clássico, movimento racionalista, que tinha por finalidade a limitação dos poderes concentrados nas mãos dos Reis e a conquista de direitos fundamentais, contudo que não passavam de letras mortas de eficácia retórica. Verificou-se que, com o Neconstitucionalismo, a Constituição passou a ser uma norma jurídica dotada de imperatividade, e os direitos fundamentais passaram a gozar de maior aplicabilidade.
Por fim, foi analisado o contexto histórico do direito de propriedade, bem como dos movimentos constitucionalistas, e suas características principais. A partir de então, observou-se que se trata de um direito fundamental limitado ao cumprimento da função social, não se tratando de um direito absoluto, mas condicionado à supremacia do interesse público sobre o privado.
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[1] AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 2.
[2] CATAINIA, Alfonso. Lo Stato Moderno. Sovranità e giuridicità. Torino: Giappicheli, 1997, p. 19, APUD, AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 3.
[3] SALDANHA, Nelson. Formação da teoria constitucional. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.14.
[4] AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 1.
[5] “As constituições liberais costumam ser consideradas como código individualistas exaltantes dos direitos individuais do homem. A noção de indivíduo, elevado à posição de sujeito unificador de uma nova sociedade, manifesta-se fundamentalmente de suas maneiras: (1) a primeira acentua o desenvolvimento do sujeito moral e intelectual livre; (2) a segunda parte do desenvolvimento do sujeito econômico livre no meio da livre concorrência”. (CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 110).
[6] “O descaso para com os problemas sociais, que veio a caracterizar o État Gendarme, associados às pressões decorrentes da industrialização em marcha, o impacto do crescimento demográfico e o agravamento das disparidades no interior da sociedade, tudo isso gerou novas reivindicações, impondo ao Estado um papel ativo na realização da justiça social”. (MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 309).
[7]BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil). In: A constitucionalização do direito. Fundamentos teóricos e aplicações específicas. São Paulo: Lúmen Juris, 2007, p. 207.
[8]AGRA, Walber de Moura. Neoconstitucionalismo e superação do positivismo. In: DIMOULIS, Dimitri; DUARTE, Écio Oto. (org.). Teoria do direito neoconstitucional: superação ou reconstrução do positivismo jurídico? São Paulo: Método, 2008. p. 436.
[9] LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998, p. 41.
[10] SILVA, Jose Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 66.
[11] “Embora substancialmente os Romanos vissem na proprietas um direito ilimitado, em que se incorporava a liberdade de fazer o dominus o que quisesse, os romanistas ressalvam que tal faculdade podia encontrar limitações provindas de princípios especiais. E efetivamente as limitações existiam. No campo dos conflitos de vizinhança, na instituição de servidões, ou em termo gerais, levantadas aquelas sob a inspiração de um interesse público ou de conveniências particulares”. PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil, Vol. IV. 21. ed. Rio de janeiro: Forense, 2012, p. 85,86.
[12] “O termo liberalismo engloba o liberalismo político, ao qual estão associadas as doutrinas dos direitos humanos e da divisão dos poderes, e o liberalismo econômico, centrado sobre uma economia de mercado livre (capitalista). Se a sociedade burguesa fornecia o substrato sociológico ao estado constitucional, este, por sua vez, criava condições políticas favoráveis ao desenvolvimento do liberalismo econômico”. (CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 109).
[13] BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das coisas. Coleção história do direito brasileiro. Brasília: Senado Federal, 2003, v.1, p 127.
[14] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Direito das Coisas. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, . v. IV, p. 116.
[15] Idem, Ibidem.
[16] MORAES, José Diniz de. A função social da propriedade e a Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 112.
[17] VENOSA, Silvio de Salvo. Direitos reais. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 176.
[18]MARUO, Roberta. A propriedade na Constituição de 1988 e o problema do acesso aos bens. TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luis Edson (orgs). Diálogos sobre direito civil, vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p 47/8, In: FARIAS, Cristiano Chaves. ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 222.
[19] CHAVES, Cristiano; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011,p. 223
[20] VENOSA, Silvio de Salvo. Direitos reais. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p.178.
[21] CHAVES, Cristiano; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011,p. 225.
[22] “Entendo por valor absoluto o estatuto que cabe a pouquíssimos direitos do homem, válidos em todas as situações e para todos os homens sem distinção. Trata-se de um estatuto privilegiado, que depende de uma situação na qual existem direitos fundamentais que não estão em concorrência com outros direitos igualmente fundamentais. É preciso partir da afirmação obvia de que se pode instituir um direito de outras categorias de pessoas. O direito a não ser escravizado implica a eliminação do direito de possuir escravos, assim como do direito de torturar. Esses dois direitos podem ser considerados absolutos, já que a ação que é considerada de sua instituição e proteção é universalmente condenada.” (BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 16. Tir. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 42).
[23] MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 47.
[24] DIRLEY JÚNIOR, da Cunha. Curso de direito administrativo. 10. ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 37.
[25] MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p 55.
[26] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. Volume V: Direito das Coisas. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 222.
[27] “(...) a função social da propriedade não é senão o concreto modo de funcionar a propriedade, seja como exercício, direta ou indiretamente, por meio de imposição de obrigações, encargos, limitações, restrições, estímulos ou ameaças, para a satisfação de uma necessidade social, temporal e especialmente considerada”. (MORAES, José Diniz de. A função social da propriedade e a Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 111).
[28] GOMES, Orlando. Direitos reais. 19. ed. Atualizador: Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 129.
[29] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 249.
[30] “Portanto, ao mesmo tempo em que a propriedade é regulamentada como direito individual fundamental, revela-se o interesse público de sua utilização e de seu aproveitamento adequados aos anseios sociais”. (MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao direito de propriedade. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 96).
Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco em 2013.2; Pós Graduada em Direito Público pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus; Pós Graduada em Direito Administrativo pelo Instituto Elpídio Donizetti.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BORGES, Clarissa Pereira. O Neoconstitucionalismo e a propriedade como um direito fundamental limitado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 fev 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45903/o-neoconstitucionalismo-e-a-propriedade-como-um-direito-fundamental-limitado. Acesso em: 23 dez 2024.
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