Resumo: O presente trabalho versa sobre os influxos da teoria de Habermas em uma questão atualmente concebida como um dos problemas fundamentais do Direito Penal, consubstanciada na indemonstrabilidade ou, até mesmo, inexistência do substrato material do conceito de culpabilidade de Hans Welzel.
Palavras-chave: Habermas - ação comunicativa - culpabilidade - Günther - Direito Penal.
Abstract: The present paper deals with the influxes of Habermas's theory on the matter currently conceived as one of the fundamental problems about Criminal Law, consisting on the unprovability or even absence of the material substract of Hans Welzel's culpability concept.
Key-words: Habermas - communicative action - culpability - Günther - Criminal Law.
1 INTRODUÇÃO
Nas linhas que seguem, encontra-se o resultado dos esforços empregados para avaliar a utilização da Teoria de Habermas na tentativa de solução da questão da indemonstrabilidade - ou, até mesmo, inexistência - do substrato material do conceito de culpabilidade finalista, concebido como um dos problemas fundamentais do Direito Penal.
Com efeito, num primeiro momento, apresenta-se uma breve evolução do conceito material de culpabilidade, com destaque às contribuições da Teoria Psicológica e da Teoria Psicológica-Normativa, para indicação do desenvolvimento e delimitação do conceito material de culpabilidade de Hans Welzel, baseado no “poder atuar de outro modo” e objeto de um dos maiores debates da dogmática penal moderna.
Observando que, apesar de todo o esforço teórico, a imposição da sanção penal, pautada no juízo de culpabilidade, não corresponde às necessidades de um Estado Democrático de Direito e que, de acordo com as recentes pesquisas neurocientíficas, o pressuposto material finalista não é apenas indemonstrável, como inexistente, passa-se a uma reflexão sobre uma nova forma de compreender esse instituto, ante as introduções filosóficas de Jürgen Habermas
Por isso, aponta-se brevemente algumas contribuições filosóficas desenvolvidas por Habermas, notadamente com a Teoria da Ação Comunicativa, para, finalmente, apresentar a concepção de culpabilidade construída pelo catedrático alemão Klaus Günther, que defende uma Teoria da Culpabilidade pela legitimação democrática das normas jurídicas, completamente desvinculada da discussão acerca da liberdade de vontade.
Importante esclarecer, desde o início, que não se objetiva com o presente trabalho traçar um novo conceito material da culpabilidade ou apresentar um fundamento válido e isento de críticas para o referido instituto, mas, apenas, examinar a utilização das contribuições hamerbasianas na seara do Direito Penal e, com isso, contribuir com as inquietudes que permeiam o pensamento dos estudiosos, incentivando o debate e novas reflexões.
2 O DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO MATERIAL DE CULPABILIDADE DE HANS WELZEL
Ao longo de mais de um século, foram diversas as concepções publicadas acerca do conceito material de culpabilidade. Contudo, ante a firmeza metodológica, considera-se como a primeira fase da Teoria da Culpabilidade, a Teoria Psicológica, concebida a partir do sistema causal-naturalista de Franz von Liszt e Ernst von Beling.
Nesta concepção, o conceito de crime é estruturado a partir da ideia de ação, definida como um movimento corporal voluntário provocador de uma alteração no mundo exterior. A tipicidade e a antijuridicidade de uma conduta decorrem da simples constatação de um resultado externo (de cunho objetivo), enquanto a culpabilidade denota a relação psicológica entre o autor e um resultado por ele produzido (de cunho subjetivo).
No entanto, no âmbito deste sistema bipartido, constatou-se que a noção de culpabilidade, como o vínculo psicológico, apresentava diversas falhas, tendo em vista o desrespeito à essência do ilícito e a utilização de um critério de responsabilização extrínseco ao agente e alheio ao exame da liberdade de vontade.
A conceituação de culpabilidade como “vínculo psicológico” indica que a participação da pessoa do agente na ação delituosa é mero objeto de imputação, pois, “uma vez realizado o fato com dolo ou culpa, estão preenchidas as condições de tornar seu autor responsável por essa modalidade de sua produção” (TAVARES, 1998, p. 145), não se coadunando, assim, com os fundamentos e finalidades de um Estado Democrático de Direito.
Numa tentativa de corrigir os equívocos causalistas, os neokantianos criaram as Teorias Psicológico-normativas da Culpabilidade, fundamentadas nas doutrinas causal-valorativas, desenvolvidas por Reinhard Frank (1907), James Goldschmidt (1913), Berthold Freudenthal (1922), Eberhard Schmidt (1927) e Edmund Mezger (1932)[1].
Em linhas gerais, nas concepções psicológico-normativas, a ação perde seu caráter naturalístico e é concebida de forma social, valorativa e genérica, como um comportamento humano provocador de um resultado socialmente relevante. O conceito de crime, formado pelo injusto penal e pela culpabilidade, rechaça a divisão categórica objetivo-subjetivo e introduz uma perspectiva valorativa.
Apesar das peculiaridades das diversas teorias, com as teorias psicológico-normativas, a culpabilidade ganha novos contornos e é definida como um juízo de valor, apoiado na norma, sobre uma situação psíquica, que necessita de uma avaliação simultânea do vínculo psicológico do autor (dolo ou culpa) e da reprovação social. Deste modo, dolo e culpa passam a ser considerados elementos da culpabilidade, juntamente com a imputabilidade e a exigibilidade de conduta conforme o direito, gerando um exame psicológico-normativo.
No entanto, como as falhas do sistema causal-naturalista não foram corrigidas com a simples inclusão de elementos normativos no âmbito da culpabilidade, a doutrina finalista de Hans Welzel modificou completamente a Teoria do Delito, esvaziando a culpabilidade de qualquer conteúdo subjetivo e desenvolvendo a Teoria Normativa Pura da Culpabilidade.
Nesse contexto, os elementos subjetivos passaram a ser analisados no âmbito da tipicidade, já que, como o dolo e a culpa pertencem à ação humana, não poderia haver conduta sem a sua constatação. Já a culpabilidade passou a ser conceituada como uma reprovação normativa, como um exercício inadequado do livre arbítrio, pautada na capacidade do homem de se orientar conforme a norma e controlar os seus próprios impulsos.
A culpabilidade, portanto, se tornou exclusivamente normativa. A culpabilidade normativa é definida como um juízo de valor, pautado na reprovabilidade, consubstanciado pelo “poder atuar de outro modo” e composto pela imputabilidade, consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.
Com efeito, na Teoria Normativa Pura, o objeto da culpabilidade passou a ser apreendido de uma dupla relação, fundada na constatação de que a ação de vontade do autor não ocorreu conforme o direito e de que o autor poderia ter realizado sua conduta voluntariamente conforme a norma (WELZEL, 1956, p. 147).
A liberdade humana é concebida como um dado ontológico, pré-jurídico, inerente ao homem, sendo definida como “a capacidade de poder reger-se conforme os fins” (WELZEL, 2001, p. 100). Segundo Welzel, é a liberdade humana que determina a possibilidade de atuar de outro modo, configuradora da culpabilidade puramente normativa, compreendida como uma falta de decisão conforme o sentido de um sujeito responsável.
Observa-se, com efeito, que a Teoria Normativa Pura da Culpabilidade utiliza, como pressuposto, a liberdade humana (“livre arbítrio”), a qual, segundo doutrina dominante, seria empiricamente indemonstrável, porque, ao se reproduzir as circunstâncias prévias ao ato criminal, para demonstrar o grau de liberdade com que atuou o autor, a memória do acontecimento anterior sempre modificaria a circunstância (SARRULLE, [2001?], p. 57).
Não bastasse o referido argumento para demonstrar a absoluta fragilidade do conceito welzeliano de culpabilidade, insta ainda observar que, recentemente, neurocientistas, a partir de exames de ressonância magnética, comprovaram a inexistência da liberdade de vontade. De acordo as pesquisas, a liberdade humana seria uma ficção, já que o ato de decisão humana advém, inicialmente, de desejos e impulsos inconscientes do sistema cerebral.
Com efeito, neurocientistas renomados, como Gerhard Roth, afirmam, como amplamente divulgado, que nós, como seres conscientes, temos apenas um pouco de visão e influência sobre nossas ações (“wir als bewusste Wesen haben nur wenig Einsicht und Einfluss auf unser Handeln”). Sendo assim, se os resultados das pesquisas neurocientíficas – cuja publicação ainda é, de certa forma, recente - forem realmente comprovados, acredita-se que nenhuma definição de liberdade de vontade poderá compor o substrato material da culpabilidade, sob pena de deslegitimar a aplicação da sanção.
Portanto, como contribuição aos novos questionamentos que permeiam os estudos penais, examina-se subsídios filosóficos extraídos das teorias de Jürgen Habermas, com vistas a estabelecer, na linha já apresentada por Klaus Günther, um conceito de culpabilidade desvinculado da ideia de liberdade humana.
3 AS CONTRIBUIÇÕES FILOSÓFICAS DE JÜRGEN HABERMAS COM A TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA
Ressalte-se, inicialmente, que não é nada fácil expor em poucas linhas a concepção daquele que foi considerado o principal herdeiro do pensamento crítico da Escola de Frankfurt: Jürgen Habermas. A tarefa apresenta-se como hercúlea não só em razão da densidade de seu pensamento, mas também por ser Habermas um verdadeiro polímata, isto é, alguém cujo domínio teórico abrange um enorme campo do saber humano.
Por isso, por questões metodológicas, limita-se à apresentação das principais conclusões da Teoria da Ação Comunicativa (Theorie des kommunikativen Handelns) de Habermas, que, certamente, foram influenciados pelo modelo habermasiano da evolução da sociedade, inspirado na teoria do desenvolvimento ontogenético de Piaget e Kohlberg.
Como diz com precisão Marcelo Neves (2006, p. 26),
Habermas reconstrói, no âmbito da teoria da ação comunicativa e da ética do discurso, o modelo de desenvolvimento ontogenético (do indivíduo), tal como formulado por Piaget e desenvolvido por Kohlberg, transportando-o para o âmbito da evolução filogenética (da sociedade).
Habermas conecta “os elementos do construtivismo pedagógico de Piaget com o estruturalismo genético de Lawrence Kohlberg, de modo a demonstrar a evolução da humanidade como forma de aprendizado propiciado pela linguagem” (CRUZ, 2006, p. 78).
Segundo Piaget, existiriam três estágios do desenvolvimento cognitivo e julgamento moral da criança. Na primeira fase, há uma espécie de simbiose entre a criança e o mundo que a cerca, de modo que nela ainda não existe uma noção de subjetividade. No segundo estágio, denominado fase sensório-motora ou pré-operativa do desenvolvimento psicológico, a criança passa a perceber os objetos que a cercam como algo distinto de si, apesar de ainda não notar a diferença entre mundo físico e mundo social. Na terceira fase do desenvolvimento psicológico, designado estágio das operações concretas, a criança já passa a distinguir claramente realidade empírica e realidade social, além de não mais confundir os signos lingüísticos com seus significados. Nesta última fase, a ausência de uma reflexividade cognitiva suficiente faz com que os padrões socialmente estabelecidos sejam tidos como inquestionáveis. Será apenas com a adolescência que as regras socialmente impostas passarão a ser objeto de crítica por parte do jovem (LUCHI, 1999, p. 184; NEVES, 2006, p. 27-28).
Lawrence Kohlberg, claramente influenciado pelos estudos de Piaget, elaborou um modelo de desenvolvimento do julgamento moral em três estágios, quais sejam: pré-convencional, convencional e pós-convencional. Segundo Kohlberg, cada uma destas etapas contém uma específica relação do sujeito com as normas sociais. No estágio pré-convencional, o eu encontra-se alheio às expectativas sociais; no estágio convencional, o sujeito identifica-se com as normas sociais; por fim, no estágio pós-convencional, o indivíduo atinge a sua maturidade moral, não mais incorporando de modo acrítico os padrões culturais em que foi socializado e sendo capaz de questionar e transcender tais valores (NEVES, 2006, p. 28-33).
Habermas traslada as teses de Piaget e Kohlberg para a sua teoria da ação comunicativa, de modo que as três principais fases da evolução social, quais sejam, a mítica, a metafísico-religiosa e a moderna, se correspondam com o desenvolvimento das capacidades cognitivas identificadas por aqueles psicólogos (GIDDENS, 2001, p. 162).
De acordo com Habermas, o primeiro estágio, denominado pré-convencional, ocorreria em sociedades tribais detentoras de representações mágico-animistas. Estas sociedades paleolíticas seriam caracterizadas por um excessivo egocentrismo ou individualismo, não se distinguindo ainda sujeito, natureza (mundo objetivo) e sociedade (mundo intersubjetivo).
Nesta fase, “o mundo exterior ainda é apreendido em termos de relações externas de causas e efeitos. As ações são concebidas concretamente a partir de suas conseqüências objetivas. Não se considera a intenção dos outros como critério de avaliação de condutas, mas sim os seus resultados” (NEVES, 2006, p. 34). Por isso, não é possível fazer a distinção “entre o agir orientado para o êxito (estratégico) e o agir que se dirige à busca do entendimento intersubjetivo (comunicativo)” (NEVES, 2006, p. 34).
Na etapa convencional, rompe-se com a concepção mítica do mundo e a sua unidade passa a ser “assegurada por Cosmologias, Filosofias ou Religiões, que comportam um saber transmissível institucionalmente” (LUCHI, 2001, p. 185). Neste momento, já pode ser efetuada a distinção entre subjetividade, objetividade e intersubjetividade, sendo ainda reconhecida a diferença entre o agir estratégico e o agir comunicativo, o que pressupõe a separação de causalidade (âmbito natural) e imputação (âmbito social). Nessa etapa, o resultado produzido já não seria parâmetro exclusivo para a avaliação da ação, levando-se também em consideração a intenção do sujeito. Entretanto, os sujeitos continuariam internalizando normas e valores sociais acriticamente, de modo que os princípios supremos permanecem imunes a objeções e questionamentos.
Somente no estágio pós-convencional da modernidade, o sujeito adquire reflexividade cognitiva, passando a indagar acerca das diversas pretensões de validade em relação ao mundo objetivo (pretensão de verdade), social ou intersubjetivo (pretensão de retidão) e subjetivo (pretensão de sinceridade). Consequentemente, “à heteronomia como dependência de normas vigentes opõe-se a exigência de fundamentação universalista da validade normativa como critério de conduta (autonomia)” (NEVES, 2006, p. 36). Por intermédio do discurso, as pretensões de validade dos domínios de referência passam a ser passíveis de contestação à luz dos princípios, inclusive na estrutura das expectativas de comportamento (NEVES, 2006, p. 35-36).
Perceber-se, portanto, que a crítica habermasiana da modernidade afasta-se, por um lado, do diagnóstico oferecido pelos seus antecessores da escola de Frankfurt, notadamente Horkheimer e Adorno, e, por outro, das concepções pós-modernistas de autores como Lyotard e Derrida. Afasta-se de Horkheimer e Adorno, por insistir na questão de que o problema da modernidade não consiste propriamente na Zweckrationalität (racionalidade instrumental), mas na sua hipertrofia, é dizer, na sua expansão desmedida em detrimento do agir comunicativo (direcionado ao entendimento), fenômeno este denominado de “colonização do mundo da vida” (HABERMAS, 1995b, p. 489). Dissocia-se dos pós-modernistas, ao defender o ideal iluminista de uma razão universal e ao negar uma suposta fragmentação da sociedade em esferas de ação difusas (RORTY, 2001, p. 253).
Isto porque, para Habermas, “o problema da modernidade estaria justamente na incapacidade das esferas de solidariedade social agirem comunicativamente em razão da colonização do mundo da vida pelos sistemas burocrático e econômico” (CRUZ, 2006, p. 100).
Com efeito, será a definição de mundo da vida (Lebenswelt) que complementará o exame do agir comunicativo. O mundo da vida consiste, portanto, no ”pano de fundo” (Hintergrund) da ação comunicativa, orientada para o entendimento intersubjetivo, e reproduz-se mediante esta. O mundo da vida é, na verdade, “a moldura simbólica de referência da ação comunicativa” (NEVES, 2006, p. 68-70).
A partir deste arcabouço teórico, Habermas diferencia, na Teoria da Ação Comunicativa, o agir comunicativo (kommunikatives Handeln) e o agir instrumental ou estratégico (instrumentales oder strategisches Handeln). Nota-se, então, que a utilização de um meio lingüístico como mecanismo de coordenação não caracteriza exclusivamente a ação comunicativa, mas também a ação instrumental.
Habermas concebe as ações como “jogos de linguagem, em que as condições da validade implícitas nos atos de discurso são tacitamente reconhecidas” (ALEXY, 2001, p. 94). Logo, a distinção entre as espécies de ação encontra-se na orientação fornecida à linguagem, não na utilização ou não da mesma.
Na ação estratégica, a linguagem é concebida unilateralmente, isto é, como um recurso por meio do qual os falantes podem influir uns sobre os outros na busca de seu próprio êxito. A ação comunicativa, por sua vez,
setzt Sprache als ein Medium unverkürzer Verständigung voraus, wobei sich Sprecher und Hörer aus dem Horizont ihrer vorinterpretierten Lebenswelt gleichzeitig auf etwas in der objektiven, sozialen und subjektiven Welt beziehen, um gemeinsame Situationsdefinitionen auszuhandeln. Dieses interpretationskonzept der Sprache liegt in den verschiedenen Bemühungen um eine formale Pragmatik zugrunde[2] (HABERMAS, 1995a, p. 142).
Habermas revela que o comportamento instrumental orienta-se para um resultado; o sujeito utiliza os meios necessários para alcançar um objetivo eleito pelo seu livre arbítrio. O comportamento comunicativo, no entanto, dirige-se para a consecução de um consenso, no qual a linguagem é utilizada como instrumento de coordenação de interesses dos sujeitos, participantes de um processo de comunicação (PITA, 2002, p. 92-93) e dotados de liberdade comunicativa.
O consenso está fundamentado na força do melhor argumento, encontrado na estipulação de condições ideais para uma “situação de comunicação, que estariam representadas pela igualdade de oportunidade para todos os participantes do discurso, pela liberdade de expressão, pela ausência de privilégio, pela veracidade e pela ausência de coação”[3] (TAVARES, 2003, p. 72-73).
Por isso, Habermas compreende que a legitimidade de qualquer deliberação normativa só poderá ser verificada em face das condições ideais de fala, restringindo, desta forma, a legitimidade do discurso ao procedimento e o afastando de qualquer noção de conteúdo a priori (CRUZ, 2006, p. 91).
Concebe-se, assim, a ideia de que “o direito vale não apenas porque é posto, mas sim enquanto é posto de acordo com um procedimento democrático, no qual se expressa intersubjetivamente a autonomia dos cidadãos” (NEVES, 2006, p. 114).
Desta forma, o direito de participação nos processos de opinião que originarão o conteúdo das normas jurídicas passa a ser direito fundamental, exigindo-se que cada destinatário possua condições de autointitular-se como autor do direito, mesmo que de forma potencial.
4 A DEFINIÇÃO DE CULPABILIDADE DE KLAUS GÜNTHER: UMA RELEITURA DA CULPABILIDADE PENAL A PARTIR DA CONCEPÇÃO HABERMASIANA
A partir das conclusões do pensamento habermasiano, Klaus Günther apresenta o seu modelo de culpabilidade pela legitimação democrática das normas jurídicas e constrói uma dogmática alicerçada às noções de pessoa e de sociedade, permitindo, desta forma, com a politização do instituto e desvinculação da discussão da noção de livre arbítrio, afastar a culpabilidade penal das discussões concernentes à indemonstrabilidade ou inexistência da liberdade de vontade.
O catedrático da Universidade de Frankfurt elabora a sua teoria a partir dos conceitos de “pessoa deliberativa”, “capacidade de atitude crítica”, “competência performativa” e “capacidade de imputação”, de maneira completamente dissociada às concepções normativistas e funcionalistas acerca da culpabilidade.
Günther admite que a Teoria Funcionalista esclarece o caráter de “ficção instituída” da culpa jurídico-penal, considerando-a como uma etiqueta afixada por razões de conveniência política (GÜNTHER, 1998, p. 80). Com este aporte teórico, a culpabilidade passa a ser corretamente concebida como um juízo pelo qual será atestada a recomposição simbólica da norma (TAVARES, 1998, p. 150), contudo, apenas na dogmática atual, é reconhecido que a validade da norma punitiva dependerá do processo democrático da sua produção.
O doutrinador alemão adverte que as teorias normativistas e os aportes preventivo-funcionalistas estabelecem uma relação de dependência entre culpabilidade e pressupostos morais, razão pela qual a adoção destas concepções conduziria a atos carentes de legitimidade (GÜNTHER, 1998, p. 79-80).
De acordo com Günther,
esse dilema entre uma lacuna de legitimidade e uma exigência moral pode ser superado, se relacionarmos o conceito jurídico-penal de culpa à idéia da legitimação democrática das normas jurídicas e à pessoa do cidadão como titular do direito de participação política no processo democrático de formação do pensamento e da vontade sobre a positivação das normas jurídicas (GÜNTHER, 1998, p. 80).
Com efeito, a imputação de uma conduta a um sujeito de direito apenas poderá ser efetuada em um processo racional, no qual a norma incriminadora resulte de um discurso público. Afasta-se, assim, o caráter ontológico da culpabilidade, a qual passa a ser orientada por um aspecto político legitimante e intitulada de imputação pessoal em decorrência da sua vinculação à definição de pessoa.
Note-se, todavia, que o sentido fornecido por Klaus Günther ao instituto da culpabilidade não denota uma completa inovação. O próprio doutrinador, no seu Escrito de Habilitação (“Schuld und kommunikative Freiheit”)[4], admite que incorporou alguns elementos já defendidos por Adolf Merkel.
De fato, Adolf Merkel foi o primeiro a afastar-se das concepções hegelianas do fato punível, buscando encontrar um fundamento empírico para o Direito Penal. Segundo Merkel, a liberdade de atuar de outro modo constitui uma verdadeira ficção, sendo necessário encontrar outra base para a imputação pessoal. Assim, sua orientação às ciências empíricas e à história o levou a conceber a culpabilidade como o meio de que dispõe uma sociedade evoluída para defender seu subsistema (GÜNTHER, 2005, p. 5).
Adolf Merkel percebe que existe um estreito vínculo entre imputação pessoal, de um lado, e cidadania e legitimação política, de outro, de modo que
der Umfang und die Intensität, mit denen jeder einzelne Bürger als Staatsbürger am politischen Prozess der Entstehung von Rechtsnormen teilhat, bestimmt auch Umfang und Intensität der Verantwortung jedes einzelnen für die Befolgung dieser Normen[5] (GÜNTHER, 2005, p. 28).
Esta foi a inspiração de Klaus Günther para elaboração da sua teoria, o que resta patente quando afirma que a culpa é “uma atribuição, que se orienta de conformidade com a ordem e cuja violação é imputada a uma pessoa” (GÜNTHER, 1998, p. 81), desde que relacionada a um sistema legítimo do Direito. Consequentemente, para Günther, o liame entre a pretensão de legitimidade do ordenamento jurídico e as exigências de obediência normativa passa a ser efetuado, notadamente, a partir do conceito de pessoa (GÜNTHER, 1998, p. 81).
Ao contrário das teses funcionalistas, que elaboram seus respectivos edifícios teóricos com base na função da pena, Günther acaba por expor um programa no qual as regras e os conceitos referentes ao fato punível são construídos com base na imputação pública de responsabilidade individual. Nas palavras deste autor,
die gegenwärtig vorherrschende Strafrechtsdogmatik versteht sich selbst als ´normativierende´. Die Regeln und Begriffe der Zurechnung sollen sich na der Funktion der Strafe orientieren, vor allem na ihrer normstabilisierenden Funktion. Dem ist das Programm einer Strafrechtsdogmatik entgegenzusetzen, die sich statt an Strafe an dem Recht der öffentlichen Zuschreibung individueller Verantwortung für schweres […]. Die dogmatische Leitfrage würde dann nicht lauten: Welche Funktion haben die einzelnen Stufen der Zurechnung wie Tatbestandsmäßigkeit, Rechtswidrigkeit und Schuld und die damit zusammenhängenden Begriffe für die Stabilisierung der Norm und die Wiederherstellung des Vertrauens in die Geltung des Rechts? Statt dessen wäre zu fragen, unter welchen bedingungen es gerechtfertig ist, eine Normverletzung einer verantwortlichen Rechtsperson individuell zuzurechnen und sie öffentlich dafür verantwortlich zu machen. Unter dieser Leitfrage wären die entsprechenden Regeln und Begriffe zu bilden und zu rechtfertigen[6] (GÜNTHER, 2000b, p. 42).
Verifica-se, destarte, que as premissas metodológicas de que parte Günther não só o permitem estruturar um interessante conceito de imputação pessoal, como também inaugurar um novo sistema jurídico-penal.
4.1 A PESSOA DELIBERATIVA NO ESTADO DEMOCRÁTICO
Na tese de Klaus Günther, o conceito de pessoa é um pressuposto para compatibilizar as exigências de legitimidade do ordenamento jurídico e a necessidade de imposição do cumprimento das normas. Isto porque, de acordo com Günther, um regime democrático, para ser efetivo, pressupõe a participação política e reflexiva dos cidadãos nos processos de formação das normas jurídicas.
Com fulcro numa visão comunitária de pessoa, assevera-se que, em um Estado Democrático, os indivíduos deverão exercer um duplo papel no processo de formação normativa, desempenhando, simultaneamente, a função de autores e destinatários das normas (GÜNTHER, 1998, p. 81), como pessoas deliberativas.
A pessoa deliberativa seria aquela dotada de capacidade e disponibilidade de autocorreção, ou seja, aquela com capacidade de adotar uma posição crítica, podendo executar, por via de ações e manifestações, o ato cognitivo da sua motivada atitude (GÜNTHER, 1998, p. 81-82).
Com efeito, o conceito de pessoa deliberativa é desdobrado “na pessoa do cidadão, como autor das normas jurídicas, e na pessoa capaz de direito como destinatária dessas normas”[7] (GÜNTHER, 1998, p. 84), que são verificados no processo de elaboração normativa e no momento de observância da norma.
Nesta concepção, a pessoa deve ser dotada de atitude crítica e de capacidade de participação no discurso. A capacidade crítica refere-se à possibilidade de distanciamento e adoção de uma posição crítica sobre ações e manifestações. A capacidade de participação no discurso, por sua vez, exige que a pessoa possa refletir e avaliar tais atos de maneira argumentativa (PITA, 2002, p. 102-103).
A pessoa deliberativa é, portanto, “fonte própria de suas ações e manifestações”, pois, além de ocasionar tais atos, “a capacidade de atitude crítica torna-se o centro produtor de sua ação” (GÜNTHER, 1998, p. 82). A capacidade de atitude crítica, no processo democrático, decorre desta definição de pessoa e pressupõe a possibilidade da participação dos cidadãos nas argumentações das quais se originam as pretensões de validez da norma (GÜNTHER, 1998, p. 81-82).
Advirta-se que os processos democráticos não se confundem com outros discursos, nos quais o dever de obediência deriva do consenso individual autônomo acerca de normas morais. No processo democrático, há a associação de procedimentos de formação das normas impositivas à capacidade de cada um de, nas suas manifestações, assumir criticamente uma terceira posição (GÜNTHER, 1998, p. 83).
Os processos democráticos “conectan la creación de normas vinculantes para la generalidad con la capacidad crítica individual de cada persona frente a las expresiones de terceros”[8] (PITA, 2002, p. 103-104), pois “una fundamentación discursiva de normas válidas debe asegurar que una norma exprese un interés general en su seguimiento general”[9] (GÜNTHER, 2008, p. 278).
Destarte, as normas jurídicas serão oponíveis também àqueles que não assumiram uma atitude crítica ou não tenham se convencido da atitude crítica adotada. As normas serão válidas “ainda que nem todos os cidadãos tenham feito uso da sua capacidade deliberativa e nem todos os partícipes se tenham melhor motivado para uma revisão da atitude que está sendo rejeitada” (GÜNTHER, 1998, p. 84).
A pessoa deliberativa é aquela para a qual é oportunizada a participação no processo democrático e, por conseguinte, o dever do cidadão de respeitar a norma basear-se-á apenas no direito, assegurado igualmente para todos, de exercer publicamente a sua capacidade crítica (PITA, 2002, p. 105).
Em outras palavras, o dever de respeito à norma está lastreado na igualdade de condições para o exercício da capacidade de atuação crítica frente ao processo institucionalizado de formação das normas jurídicas.
Poder-se-ia, então, concluir que, apenas quando haja sido disponibilizada a adoção de uma atitude crítica na deliberação da norma jurídica, a pessoa estará submetida a esta, pois, não havendo tal possibilidade, a sua condição de cidadão estaria sendo rechaçada, o que conduziria à falta de legitimidade para a responsabilização pela violação normativa.
Contudo, Klaus Günther considera que existiria uma pressuposição de democracia, ou seja, avalia que a observância da autonomia comunicativa dos sujeitos seria um dado inerente ao próprio Estado Democrático de Direito, afastando, com isso, uma eventual co-culpabilidade estatal.
Ademais, a capacidade crítica da pessoa deliberativa não impõe uma obrigação de participação no discurso de validez normativa, sendo “suficiente que a pessoa seja dotada da capacidade de comprovar, argumentativamente, os motivos sobre os quais se baseia sua assunção crítica quanto às próprias manifestações e ações, que ela possa agir ou “refletir” criticamente” (GÜNTHER, 1998, p. 82).
Nas palavras de Klaus Günther,
[...] a pessoa deliberativa, que possui um direito subjetivo de participação política, não está obrigada, na qualidade de partícipe do discurso público, a fazer uso fático de sua atribuída capacidade de atuação crítica. Ademais, o dever de também observar a norma não decorre nem do não-uso nem do uso público da capacidade de crítica. A validez positiva do direito se funda apenas na, em geral, constituição procedimental da norma, não, porém, na atitude favorável ou desfavorável de um único cidadão (GÜNTHER, 1998, p. 85, grifos do autor).
A validade da norma não depende da aceitação ou rejeição suscitada por cada cidadão. A legitimidade da norma decorre da sua condição de resultado de um processo democrático que conta com a colaboração dos cidadãos (PITA, 2002, p. 105-106) e, “na medida em que as normas jurídicas derivam em conformidade com esse processo geram para si a suposição preliminar de legitimidade” (GÜNTHER, 1998, p. 88).
Em consequência,
[…] uno de los argumentos sobre los que basar su acción aparece la consideración de la norma válida. Y ello porque el deber de obedecer la norma no se deriva de su aceptación personal sino de su carácter universalmente válido derivado de su creación siguiendo los pasos de un proceso democrático[10] (PITA, 2002, p. 106).
Corrige-se, assim, o equívoco das concepções anteriores, que consideravam a obediência à norma como um dever decorrente de uma obrigação moral. Segundo Günther, “o destinatário não deve interpretar o dever de observância da norma como autovinculação de sua vontade, nem seguir a norma como pessoa moral” (GÜNTHER, 1998, p. 85).
Nas linhas da teoria de Klaus Günther é possível afirmar que
el Derecho no exige de la persona con capacidad jurídica una afirmación interna de la norma de la que se deriva el deber (moral) de obedecerla. Al contrario, el Derecho permite a la persona la libertad de rechazar la norma pero exige a la vez del sujeto que no utilice su capacidad crítica para lesionar con su comportamiento la norma que rechaza. [...} Su rechazo a la norma sólo puede expresarse válidamente a través de un discurso público en el que la persona puede participar en virtud de su rol como ciudadano. Pero este desacuerdo, en ningún caso puede adoptar la forma de un comportamiento injusto[11] (PITA, 2002, p. 106-108).
Desta forma, a pessoa, na sua condição de sujeito capaz de direito, poderá desprezar a norma, adotando uma posição crítica no espaço público, mas não poderá lesionar a norma com o seu comportamento. Esta poderá apenas, no cumprimento do seu papel de cidadão, participar do processo democrático para tentar modificar a norma que rejeita (PITA, 2002, p. 106-107).
Como cidadão, a pessoa deliberativa deverá evitar comportamentos injustos e, como sujeito capaz de direito, deverá respeitar a norma ainda que não concorde com a imposição estabelecida pela mesma (PITA, 2002, p. 107). O dever de evitar o injusto é fundamentado pelo direito de participação e institucionalização do processo democrático.
Assim, na acepção de Klaus Günther, a “capacidade de atitude crítica, atribuída à pessoa deliberativa, e o igual direito subjetivo ao uso eficaz desta capacidade no processo democrático juridicamente institucionalizado fundamentam, portanto, a pretensão de impositividade do direito positivo” (GÜNTHER, 1998, p. 85).
4.2 A CULPABILIDADE DA PESSOA DELIBERATIVA COMO PESSOA DE DIREITO
Na concepção de Klaus Günther, a culpabilidade decorre da compreensão dos cidadãos acerca da “sua própria liberdade para uma atitude crítica em face de ações e manifestações próprias e alheias”, bem como da extensão e modo de limitação recíproca desta liberdade (GÜNTHER, 1998, p. 92).
Na definição da culpabilidade “está em jogo o próprio entendimento do cidadão como pessoa capaz de direito, livre e igual” (GÜNTHER, 1998, p. 92). É a capacidade de atitude crítica da pessoa deliberativa que tem a “função de imputar as manifestações e ações a uma pessoa como sua autora” (GÜNTHER, 1998, p. 82).
A capacidade de atuação crítica da pessoa deliberativa fundamenta a liberdade humana, por meio da compreensão do ato cognitivo e volitivo (GÜNTHER, 1998, p. 81), permitindo a eventual imputação de uma conduta a um sujeito de direito.
A culpabilidade se fundamenta, portanto, na possibilidade, conferida pelo ordenamento jurídico aos cidadãos, de questionar e demonstrar a sua inconformidade com a organização normativa da sociedade (DÍEZ, 2005, p. 427). Desta forma, a culpabilidade expressa uma lesão à norma, ou seja, a confrontação externa com a norma através de um comportamento imputável e lesivo para a mesma (PITA, 2002, p. 102-109).
Por isso, desde o âmbito do injusto penal,
junto al elemento de la lesión del bien jurídico, aparezca la vulneración de una <<norma de conducta>> que desaprueba jurídicamente un determinado comportamiento. La norma de conducta sólo se encuentra en una relación funcional con el bien jurídico que es puesto en peligro por el comportamiento desaprobado: las infracciones de normas de conducta sólo pueden ser sancionadas si con ello se protegen bienes jurídicos[12] (GÜNTHER, 2000a, p. 502).
O juízo de culpabilidade, na teoria de Günther, é apreendido quando a pessoa, por meio da sua ação, expressa um desacordo externo com a norma, através da sua capacidade crítica e da renúncia, no seu papel de cidadão, da utilização de procedimentos democraticamente estabelecidos para revisar a norma e revelar, pública e validamente, a sua contradição com a mesma (PITA, 2002, P. 110).
A definição de pessoa deliberativa permite constatar que uma ação apenas poderá ser atribuída a um sujeito dotado de capacidade crítica e que, uma vez afirmada tal capacidade, será possível reprovar a lesão ao dever de evitar um comportamento injusto, já que ao sujeito lhe era exigido expressar o desacordo com a norma por meio do seu papel de cidadão (PITA, 2002, p. 108).
A exigência de uma capacidade crítica corresponde, de certa forma, aos critérios gerais da culpabilidade, formulados na forma negativa de causas de exculpação (Entschuldingungsgründe). Para a responsabilização, será necessário que a pessoa desfrute de uma capacidade psíquica normal, esteja informada acerca da norma – fundamentando, nada obstante, a sua ação em razões distintas – e que não lhe seja exigível evitar a sua conduta (PITA, 2002, p. 109).
Observe-se, no entanto, que estes elementos estão associados aos papéis exercidos pelo sujeito em um Estado Democrático de Direito, pois, neste modelo estatal, a legitimidade normativa apenas poderá ser fornecida pelo cidadão e dirigida a um sujeito de direito.
Como ciudadano el sujeto tiene el deber de conocer y, por tanto, respectar la norma; en ausencia de esta condición, no le es exigible su respecto. Como persona con capacidad jurídica, el sujeto goza de una situación psíquica normal y no tiene porqué evitar una acción cuando un deber de más peso que el que contiene la norma le permite ejecutar aquélla[13] (PITA, 2002, p. 110).
Por isso, considera-se que a responsabilização do sujeito deliberativo decorre do rompimento de uma espécie de sinalagma entre a liberdade no processo de formação da norma e a contribuição para evitar a sua violação, levando-se em consideração a sua capacidade de atitude crítica.
Em caso de lesão normativa, a imputação da ação somente poderá ser efetuada quando a pessoa capaz de direito “tenha capacidade de atitude crítica frente às manifestações e ações próprias e alheias”, “tenha a chance jurídica e institucional de participar eficazmente no processo democrático de alteração normativa e tenha assumido também criticamente a lesão ao dever de evitar o injusto” (GÜNTHER, 1998, p. 88-89). Neste caso, será constatada a competência performativa do sujeito.
De acordo com Günther, “uma pessoa torna-se retratada como capaz de manifestação e ações quando estas puderem ser imputadas à sua capacidade de atitude crítica, isto é, à sua competência performativa” (GÜNTHER, 1998, p. 83).
Apenas serão culpáveis aqueles comportamentos que expressem a utilização desta capacidade crítica do sujeito. Somente quando a utilização ou não da capacidade crítica for determinante na realização de uma ação, a sua autoria poderá ser imputada à pessoa deliberativa (GÜNTHER, 1998, p. 83).
Por tal razão, para Klaus Günther, sem um processo democrático, não haveria o dever de observância à norma e, neste caso, ocorrendo uma lesão normativa, não seria possível se falar em culpabilidade. Segundo o catedrático da Universidade de Frankfurt, só há culpabilidade jurídico-penal num Estado Democrático de Direito, pois, nas demais hipóteses, vislumbrar-se-ia apenas uma mera censura moral de culpabilidade, que denota o estrapolamento dos limites entre direito, ética e moral (GÜNTHER, 1998, p. 90).
É apenas na elaboração democrática das leis que são fixadas “as condições sob as quais um indivíduo vale como pessoa capaz de direito, capaz de imputação e de culpa”, assim como os requisitos para a imposição do dever de evitar o injusto (GÜNTHER, 1998, p. 90-91). Consequentemente, será a função exercida pela pessoa deliberativa no processo de formação normativa que irá legitimar a imposição da sanção penal em face da violação de uma norma criada democraticamente.
Conclui-se, então, que, na concepção de Klaus Günther, o conceito de culpabilidade “deriva de um círculo prático, no qual os cidadãos reconhecem um ao outro sempre como pessoas deliberativas, livres e iguais” (GÜNTHER, 1998, p. 90).
Portanto, a partir das contribuições habermasianas, a culpabilidade é desontologizada e afastada da sua tradicional definição material, tendo em vista que não possui uma condição ôntica própria e está relacionada à pretensão legitimante estatal, obtida através de uma discussão política da sociedade.
5 CONCLUSÃO
Conforme demonstrado, as críticas ao finalismo eterno e atemporal são diversas e a apresentação de novos modelos de culpabilidade material ainda se mostra inevitável.
Apesar das dificuldades encontradas por renomados doutrinadores, que construíram modelos que não se desvincularam das discussões acerca da liberdade de vontade ou ensejaram numa verdadeira instrumentalização do sujeito de direito, verifica-se, após breve estudo de algumas conclusões da vasta filosofia habermasiana, que é possível estabelecer um reexame da culpabilidade penal, com a manutenção do papel de sujeito de direito do autor do delito e de forma aparentemente dissociada do indemonstrável – ou inexistente - livre arbítrio.
Na forma efetuada por Klaus Günther, a culpabilidade representa a expressão da lesão à norma, criada democraticamente, numa situação na qual os cidadãos reconhecem uns aos outros como seres deliberativos, livres e iguais. A culpabilidade apenas será apreendida quando o sujeito, utilizando-se da sua capacidade de atitude crítica, renuncia a possibilidade de rejeitar a norma na sua condição de cidadão e demonstra o seu desrespeito a esta por meio do seu comportamento lesivo.
Todavia, mesmo com as contribuições de Habermas, o conceito construído por Günther permanece, como nas dogmáticas antecedentes, pautado em um juízo de atribuição cognitiva, extraído da capacidade da pessoa atuar criticamente, ou seja, da indemonstrável permeabilidade do homem aos comandos normativos, além de ser inaplicável às sociedades em que os direitos fundamentais são desconhecidos, marcada pela desigualdade.
De qualquer forma, tais ponderações devem ser objeto de reflexão no âmbito do Direito Penal, notadamente ante as recentes pesquisas neurocientíficas que afirmam que a liberdade de vontade não existe e que o ato de decisão humana advém, inicialmente, de desejos e impulsos inconscientes do sistema cerebral, pondo em cheque a maioria das definições da culpabilidade material e deslegitimando a imposição de qualquer sanção penal.
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[1] Pela própria diversidade de autores é preciso destacar que, dogmaticamente, não é possível se falar numa única Teoria Psicológico-normativa ou Teoria Normativa da Culpabilidade, mas apenas em posicionamentos normativos que introduzem conceitos de juízo de valor nas discussões acerca do conteúdo da culpabilidade, sem supressão do seu aspecto subjetivo, que são conjuntamente tratados por razões estritamente metodológicas.
[2] Pressupõe a linguagem como um meio de entendimento sem abreviaturas em que falantes e ouvintes referem-se, desde o horizonte pré-intrepretado, que seu mundo da vida representa, simultaneamente, algo no mundo objetivo, social e subjetivo, para negociar definições da situação que possam ser compartidas por todos. Tal conceito interpretativo de linguagem é aquele que se encontra subjacente às distintas tentativas de pragmática formal (tradução nossa).
[3] Por tal motivo, para Habermas, verdade é aceitação. Portanto, a verdade pode começar como autoritária, desde que a sociedade a abrace e a aceite como consenso.
[4] Culpabilidade e liberdade comunicativa (tradução nossa).
[5] A extensão e a intensidade com que cada cidadão como sujeito estatal participa do processo político de elaboração das normas também determina a extensão e a intensidade da responsabilidade de cada um pelo cumprimento de tais normas (tradução nossa).
[6] A dogmática penal atualmente dominante compreende a si própria como “normativizante”. As regras e os conceitos da imputação devem orientar-se pela função da pena, especialmente por sua função de estabilização das normas. A isso deve contrapor-se o programa de uma dogmática penal pautada não pela pena, mas pelo direito da imputação pública da responsabilidade individual [...]. A questão dogmática fundamental não deve ser: qual é a função de cada uma das categorias próprias da imputação como a tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade e qual são os conceitos correlacionados para a estabilização da norma e para a manutenção da confiança na validade do Direito. Ao invés disso, deve-se perguntar sob quais condições é justificável imputar individualmente a violação de uma norma a uma pessoa responsável e torná-la publicamente responsável por isso. Tendo-se em vista tal questão fundamental é que as regras e os conceitos cabíveis seriam elaborados e justificados (tradução nossa).
[7] Cidadão é aquele que ostenta determinados direitos subjetivos, que permitem a sua participação nos processos institucionalizados de criação normativa (PITA, 2002, p. 105). Pessoa capaz de direito é aquela com capacidade jurídica para a prática de atos civis sobre a qual incidem as disposições normativas.
[8] Conectam a criação de normas vinculantes para a generalidade com a capacidade crítica individual de cada pessoa frente às manifestações de terceiros (tradução nossa).
[9] Uma fundamentação discursiva de normas válidas deve assegurar que uma norma expresse um interesse geral no seu seguimento geral (tradução nossa).
[10] Um dos argumentos sobre o qual se baseia a sua ação aparece a consideração da norma válida. E isso porque o dever de obedecer a norma não deriva da sua aceitação pessoal, mas do seu caráter universalmente válido derivado de sua aceitação seguindo os passos de um processo democrático (tradução nossa).
[11] O Direito não exige da pessoa com capacidade jurídica uma afirmação interna da norma da qual deriva o dever (moral) de obediência. Ao contrário, o Direito permite à pessoa a liberdade de desprezar a norma, mas exige, por sua vez, ao sujeito que não utilize a sua capacidade crítica para lesionar, com o seu comportamento, a norma que despreza. [...] Sua rejeição à norma somente pode expressar-se validamente através de um discurso público no qual a pessoa pode participar em virtude do seu papel de cidadão. Mas esse desacordo, em nenhum caso, pode adotar a forma de um comportamento injusto (tradução nossa).
[12] Junto ao elemento da lesão ao bem jurídico, aparece a vulneração de uma << norma de conduta >> que juridicamente desaprova um determinado comportamento. A norma de conduta apenas se encontra numa relação funcional com o bem jurídico que é posto em perigo pelo comportamento desaprovado: as infrações de normas de conduta apenas podem ser sancionadas se, com elas, se protegem bens jurídicos (tradução nossa).
[13] Como cidadão, o sujeito tem o dever de conhecer e, portanto, respeitar a norma; na ausência desta condição, não lhe é exigível o seu respeito. Como pessoa com capacidade jurídica, o sujeito goza de uma situação psíquica normal e não tem porque evitar uma ação quando um dever de mais peso do que o contido na norma lhe permite executar aquela (tradução nossa).
Doutoranda e Mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Ciências Criminais pela Universidade da Bahia. Especialista em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Universidade de Coimbra. Professora e Advogada criminalista.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALBAN, Rafaela. Uma releitura da culpabilidade penal a partir da concepção habermasiana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 fev 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45916/uma-releitura-da-culpabilidade-penal-a-partir-da-concepcao-habermasiana. Acesso em: 02 nov 2024.
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