RESUMO: O presente artigo defende a legitimidade democrática da Supremacia Constitucional no sentido forte de Democracia e baseia-se na tese dos direitos fundamentais, na defesa das minorias, na necessária – e possível – adaptação do direito frente às transformações sociais e, finalmente, em uma adaptação da “representatividade argumentativa” de Alexy. Para isso, primeiro é explicado o contexto histórico e político de consolidação da supremacia constitucional e jurisdicional atual. Em seguida, serão apresentados os argumentos contra majoritário para, só então, estes serem analisados, sendo proclamada a legitimidade democrática da superioridade constitucional e da atuação cada vez mais ativa dos juízes.
PALAVRAS-CHAVE: Supremacia Constitucional, Judicialização da Política, Legitimidade e Democracia.
ABSTRACT: This article defends the democratic legitimacy of Constitucional Supremacy in the strong sense and is based on the fundamental rights thesis, minority protection, in the necessary – and possible- adaptation of the law to social changes and, finally, based on the “argumentative representation” of Robert Alexy. For this, first of all there is an explanation of the current historical and political context of consolidation of constitucional and jurisdictional supremacy. Then, will be presented the “counter majoritarian” arguments to be analised, being proclamed the democratic legitimacy of constitucional superiority and the active posture of the judges.
KEYWORDS: Constitucional Supremacy, Policy Judicilization, Legitimacy and Democray.
1. Introdução: Contexto histórico - A influência da reabertura democrática na supremacia constitucional e a consequente judicialização da política no Brasil
O constitucionalismo brasileiro passa por uma vertiginosa ascensão sem precedentes na história nacional. Seus valores, princípios e direitos são efetivados nas decisões políticas e jurídicas. No entanto, essa “necessidade” de constitucionalização acaba por ser interpretada, muitas vezes, como exagerada e antidemocrática. A seguir, serão explicadas as raízes da supremacia constitucional e a sua inevitável e indispensável incorporação no Brasil.
O princípio da supremacia constitucional e a emancipação do poder judiciário foram frutos de uma decisão da Suprema Corte norte americana redigida por John Marshall, no caso Marbury vs. Madison em 1803. As circunstâncias acarretaram, pela primeira vez, na declaração, por Marshall, de inconstitucionalidade de lei do Congresso, proclamando a superioridade da Constituição e a posição da Suprema Corte como guardiã constitucional, ou seja, supremacia judicial (MATOS, 2002, pp. 167 /168).
No Brasil, a supremacia constitucional teve como marco inicial a promulgação da Constituição de 1988. Após aproximadamente duas décadas de ditadura militar, estabeleceu-se na população brasileira o medo de vivenciar, novamente, o cerceamento violento dos seus direitos.
Visando uma maior seguridade à população contra as formas de abuso praticada durante os “anos de chumbo”, fez-se necessária a criação de uma Constituição que protegesse a democracia, o estado federativo, a separação dos poderes e os direitos inerentes à pessoa humana.
Os direitos de cidadania sofreram, assim, uma significativa mudança, tornando-se (não só topograficamente) a preocupação primeira do constituinte, como passando por um “alargamento” do seu conteúdo. Assim, a “constitucionalização abrangente”, nas palavras de Barroso (2009b, p.3), trouxe para a Constituição matérias – direito ao meio-ambiente equilibrado, v.g. - que antes eram deixadas para o processo político majoritário e para e legislação ordinária. Essa transformação de Política em Direito reflete a desconfiança constitucional ao legislador, permitindo que diferentes matérias tornem-se pretensões jurídicas, podendo ser formuladas e protegidas sob a forma de ação judicial (BARROSO, 2009b, pp. 3/ 4).
Devido a essa transformação, os indivíduos tornaram-se mais conscientes e ávidos por justiça, por ver efetivado todos os direitos que lhes foram atribuídos:
[...] o quadro das inovações trazidas pela vigente ordem constitucional possibilitou, mesmo diante de uma estrutura normativa formalista, o exercício ampliado da cidadania. Houve condições sociais e políticas para o deslocamento da arena tradicional de debates, ocasionado pelo maior acesso dos cidadãos ao Poder Judiciário a fim de buscar a concretização dos muitos direitos estabelecidos naquele texto. (CARVALHO, VIEIRA & RÉ, 2009, p. 83)
Conforme alerta a citação acima, essa busca pelos direitos encontrou apoio no poder judiciário, não só pelo amplo acesso – através da Defensoria Pública e Juizados Especiais, v.g. - mas pelo princípio da “inafastabilidade da jurisdição”. É o que explica Cittadino (2004, p. 106): “os tribunais estão mais abertos ao cidadão que as demais instituições políticas e não podem deixar de dar alguma resposta às demandas que lhe são apresentadas”.
O crescimento do papel do judiciário implica restrições aos demais poderes, especialmente ao legislativo. Imerso em escândalos de corrupção e tendo no seu quadro membros eleitos cuja qualificação e aptidão para o cargo são duvidosas por terem ingressado na carreira política por interesses menores, esse poder vem sendo desmoralizado perante a sociedade brasileira.
Em situação completamente diferente, o Judiciário encontra-se em um momento de grande popularidade:
À primeira vista, o crescimento no século XX do “Terceiro Poder”, no qual se reconhecem todas as características tradicionais da imagem do pai, parece opor-se a essa análise de Marcose. Não se trata simplesmente da ampliação objetiva das funções do Judiciário, com o aumento do poder da interpretação, a crescente disposição para litigar ou, em especial, a consolidação do controle jurisdicional sobre o legislador, principalmente no continente europeu após as duas guerras mundiais. Acompanha essa evolução uma representação da Justiça por parte da população que ganha contornos de veneração religiosa. (MAUS, 1999, p. 185)
Essa variação do poder do judiciário conforme o grau de prestígio dos demais poderes, também é discutida por Barroso:
No Brasil, nos últimos anos, apesar de muitos vendavais, o Poder Executivo, titularizado pelo Presidente da República, desfruta de inegável popularidade. Salvo por questões ligadas ao uso excessivo de medidas provisórias e algumas poucas outras, é limitada a superposição entre Executivo e Judiciário. Não assim, porém, no que toca ao Congresso Nacional. Nos últimos anos, uma persistente crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade no âmbito do Legislativo tem alimentado a expansão do Judiciário nessa direção, em nome da Constituição, com a prolação de decisões que suprem omissões e, por vezes, inovam na ordem jurídica, com caráter normativo geral. (BARROSO, 2009b, p. 9).
Da mesma forma que a Supremacia Constitucional foi necessária e praticamente inevitável no contexto da redemocratização, a judicialização da política também foi instalada em um processo gradual e indispensável. Cittadino (2004, p. 106) resume bem as perspectivas nas quais deve ser vista a ampliação da ação judicial:
O fenômeno da normatização de direitos, [...] as transições pós-autoritárias e a edição de constituições democráticas [...] e a conseqüente preocupação com o reforço das instituições de garantia do estado de direito [...]; as diversas investigações voltadas para a elucidação dos casos de corrupção a envolver a classe política, já descrita como “criminalização da responsabilidade política”; [...] a emergência de discursos acadêmicos e doutrinários, vinculados à cultura jurídica, que defendem uma relação de compromisso entre Poder Judiciário e soberania popular.
É justamente nessa última perspectiva que se enquadra este trabalho. As críticas que tratam a supremacia constitucional e o ativismo judicial como antidemocrática não são propostas pelo legislativo, mesmo sendo este que tem seu poder diminuído, nem pelo povo, mesmo sendo este – teoricamente – o principal interessado, já que tem o seu poder constituinte usurpado, mas pelos doutrinadores e acadêmicos.
Os motivos chegam a ser óbvios: “a conveniência aos demais poderes, pois estes, diante de assuntos polêmicos e conflitantes, não se vêem obrigados a arcar com os respectivos ônus políticos’’ (CARVALHO et al., 2009, pp. 83/ 84) e a dormência da população quando se trata de assuntos que não atingem diretamente e expressivamente seu cotidiano.
Mesmo assim, essa questão merece destaque. A seguir, serão expostos os argumentos que põem em xeque a legitimidade constitucional e judicial, para então ser demonstrada a superficialidade de tais premissas e a total coerência entre a supremacia da Constituição, seus desdobramentos e a democracia.
2. O Argumento Contra-Majoritário
Todos os argumentos defensores da ilegitimidade democrática da Supremacia Constitucional estão, direta ou indiretamente, relacionados à idéia de poder constituinte, mais precisamente à atuação deste.
Na definição dada por Böckenförde (2000, p. 163):
el poder constituyente es aquella fuerza y autoridad (política) capaz de crer, de sustentar y de cancelar la Constitución em su pretensión normativa de validez. No es idêntico al poder establecido del Estado, sino que lo precede.
A primeira grande crítica consiste no fato de, através da Constituição, uma geração passada “governar” a geração futura, pois este “documento” foi elaborado em um momento anterior, mas prevalece ao longo dos tempos, mesmo em circunstâncias e contextos diferentes.
La Constitución – como se pone de manifesto echando un simple vistazo a la historia constitucional – surge más bien dentro de um processo histórico político determinado, se ve sostenida y configurada por determinadas fuerzas, y en su caso puede tambíen ser invalidada por ellas. Tanto su pretensíon de validez como su cualidad jurídica especial no derivan del mero factum de su nacimiento, sino de una magnitude que la precede y que aparece como um poder o autoridad especial. (BÖCKENFÖRDE, 2000, p. 160)
Normalmente, uma Constituição é elaborada após um período de transição, marcado por mudanças e muita instabilidade. A carta constituinte brasileira foi elaborada após anos de ditadura militar, no qual o significado de democracia foi, praticamente, esquecido. Em situações similares foram criadas as Constituições Americana, após sua independência, e Francesa, fruto de um período revolucionário intenso, movido por ideais iluministas e responsável por expressivas mudanças sócio-políticas no território francês.
Assim, por quais motivos o legislador constituinte seria mais esclarecido e capacitado para decidir sobre assuntos, muitas vezes, imprevisíveis? Como pode os mortos governar os vivos?
Tal vez la objeción básica y fundamental que puede hacerse a la Constitución en nombre de la democracia se resume en estas perguntas: ¿ qué justificacion existe para que quienes hicieron una Constitución hace tremta o doscientos años limiten o condicionen lo que los hombres de nuestro tiempo quieren acordar?, ¿no equivale esto a dar preferência a mundo de los muertos sobre El de los vivos? (SANCHÍS, 2003, p. 140)
Para Sanchís (2003, p. 144) seria uma “ficcção” acreditar que, em um dado momento histórico, o povo reunido em uma situação ideal do diálogo previsto por Habermas produza um texto constitucional mais democrático que os demais.
Esse primeiro argumento leva a um segundo, referente à limitação do próprio povo e também da maioria. Sendo a Constituição uma norma superior responsável não só pela organização do poder político, como pela definição de direitos e determinação de valores e fins públicos, é natural que limite – de certa forma – a atuação do povo.
Um exemplo bastante claro dessa limitação são as cláusulas pétreas. Tais dispositivos vedam a alteração de determinados “institutos”, ainda que a maioria decida o contrário.
Assim, há uma aparente “tensão” entre constitucionalismo e democracia que acaba por gerar dúvidas acerca da legitimidade daquele.
Constitucionalismo significa, em essência, limitação do poder e supremacia da lei (Estado de Direito, rule of Law, Rechtsstaat). Democracia, por sua vez, em aproximação sumária, traduz-se em soberania popular e governo da maioria. Entre constitucionalismo e democracia podem surgir, eventualmente, pontos de tensão: a vontade da maioria pode ter de estancar diante de determinados conteúdos materiais, orgânicos ou processuais da Constituição. (BARROSO, 2009a, p.88)
Este segundo argumento também é levantado por Bayón (2003, p. 214) como uma das duas formas adotadas pela objeção contra majoritária:
La primera apunta a la Idea misma de primacía constitucional, ya si la democracia es el método de toma de decisiones por mayoría, la primacía constitucional implica precisamente restricciones a lo que la mayoría puede decidir.
As discussões propostas até aqui, no entanto, não representam a verdadeira questão, tão pouco a crítica mais forte à legitimidade da supremacia constitucional.
A outra forma assumida pelo argumento contra majoritário apresentada por Bayón (2003, p.214) representa a terceira crítica a ser debatida neste artigo e diz:
Y la segunda, que afecta al controle jurisdiccional de constitucionalidad, consiste en perguntar qué legitimidad tienen jueces no representativos ni políticamente responsables para invalidar decisiones de um legislador democrático.
Essa posição, em suma, faz o seguinte questionamento: Qual a legitimidade dos juízes em invalidar decisões tomadas pelo legislativo e executivo que, ao contrário do judiciário, possuem legitimidade democrática?
O judiciário, na sua origem, não é resultado da participação popular e somente o povo – como poder constituinte – detém o direito de alterar ou atribuir significados ao texto constitucional, seja através de um texto claro, seja por mecanismos da democracia semidireta (LIMA, 1996, p.98).
O argumento de que tal intérprete apenas segue o que foi instituído na Constituição não se sustenta, pois esta é – muitas vezes – abstrata, exigindo uma interpretação valorativa. Assim, fica a cargo do Judiciário, mesmo não tendo sido eleito pelo povo, decidir o que é e o que não é Constituição.
Dilatando o poder dos juízes, que, geralmente, não são eleitos, a idéia de uma jurisdição constitucional se reveste de um aspecto conservador. Assim, o Judiciário passa a determinar o que uma constituição é, tutela as liberdades individuais e detém o monopólio da moral, da ordem política de um Estado. Demais, a divergência deste modelo com a perspectiva de soberania popular reforça o caráter conservador quando se constata que, por meio da jurisdição constitucional, o próprio Estado – através de um dos seus poderes, o Judiciário – passa a estabelecer o que lhe é permitido. Isso compromete o aspecto democrático de uma constituição, cuja finalidade é exatamente a de limitar o poder do Estado. (LIMA, 1996, pp. 100/ 101)
Essa idéia ganha força com Bayón (2003, p. 217), tido como uma combinação de procedimentos, sendo alguns usados para dar legitimidade aos limites de funcionamento dos demais, em algum momento, alguém deverá decidir o que pode e o que não pode ser feito. Passado o momento de elaboração da Constituição, cabe ao judiciário a última palavra.
Y en los momentos de política constituída el limite real al funcionamento del procedimento mayoritario no viene dado tampoco por un conjunto de critérios sustantivos, sino por los resultados que arroje otro procedimento más, el de controle jurisdiccional de constitucionalidad, cualesquiera que estós sean. (BAYÓN, 2003, p. 217)
Barreto Lima (1996, p. 96) critica essa “distância” entre democracia e Judiciário, pois este – e não o povo - limitaria a soberania popular através da interpretação constitucional, tornando-se, assim, um “produtor de poder”.
No caso brasileiro, por exemplo, cabe ao Supremo Tribunal Federal a função de “guardião” da Constituição. No entanto, seus membros não são eleitos pelo povo, mas nomeados pelo presidente da República, após serem aprovados pela maioria absoluta do Senado Federal. Não existe, dessa forma, uma legitimidade originária, mesmo assim, cabe a esse órgão a decisão final. “Decisões do STF podem até se encontrar abrangidas pelas postulações da teoria dos sistemas, desde que legitimados após sua promulgação. Mas permanecerá sempre a dúvida quanto á legitimidade de sua origem” (LIMA, 1996, p. 98).
Em resumo, essa terceira crítica é tecida sob os riscos de se atribuir ao judiciário não só o controle de constitucionalidade em seu sentido formal, mas também ao colocá-lo como instância máxima, isenta de qualquer controle social:
Quando a justiça ascende ela própria à condição de mais alta instância moral da sociedade, passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social – controle ao qual normalmente se deve subordinar toda instituição do Estado em uma forma de organização política democrática. No domínio de uma Justiça que contrapõe um direito “superior”, dotado de atributos morais, ao simples direito dos outros poderes do Estado e da sociedade, é notória a regressão a valores pré democráticos de parâmetros de integração social. (MAU, 1999, p. 187)
Esses são os três principais argumentos contrários à Supremacia Constitucional. A seguir, serão mostradas suas falhas.
3. A ruína do argumento Contra-Majoritário - uma análise aprofundada de cada aspecto
Os dois primeiros argumentos contra-majoritários, conforme já foi dito anteriormente, estão interligados. Dessa forma, os “antídotos” para esses acabam se relacionando.
Parte dos defensores da supremacia constitucional utiliza-se da “estratégia de Ulisses” para legitimar o “poder de mando” das gerações passadas sob as futuras.
Segundo a mitologia, Ulisses, alertado sobre o fascinante e mortífero canto das sereias, pediu aos tripulantes do seu navio que o amarassem no mastro e, em seguida, tapassem seus ouvidos e começassem a remar. Assim, os tripulantes não escutariam o canto das sereias e nem as súplicas de Ulisses e este, por estar atado, também não se lançaria ao mar, mesmo atraído pelo canto. Dessa forma, Ulisses seria o primeiro mortal a resistir às sereias (ELSTER, 2002, pp. 111 ss.).
Fazendo uma analogia, a Constituição seria o mastro. O povo, em um momento de racionalidade, elaborou aquela para, nos momentos de irracionalidade, manter-se “a salvo”.
Tal argumento, no entanto, não é satisfatório, pois não explica o porquê das gerações passadas – e não uma geração futura, em um momento posterior – serem mais racionais, ainda que o contexto e a sociedade mudem.
Pero el dualismo presupone de modo arbitrario que los momentos en que se aprueban o reforman las Constituciones son siempre de mayor calidad que los de legislación ordinária. Por el contrario, la relación entre el carácter constituyente o meramente legislativo de una decisíon y su mayor o menor calidad deliberativa es enteramente contigente. Puede que en el primer caso las decisiones hayan sido adoptadas por uma mayoría reforzada que en el segundo caso no se ha conseguido alcanzar; pero la Idea de que solo com eso queda demonstrado que se trata de decisiones <<más lúcidas>> presupone, sin especial fundamento, justamente lo que habría que probar. (BAYÓN, 2003, p.224)
De que forma se poderia, então, justificar a perpetuidade constitucional?
Na verdade, não se trata de “mortos governando os vivos”, de mais ou menos lucidez, mas de direitos que ultrapassam gerações, inerentes à própria pessoa humana, que devem sempre ser protegidos.
Não se pretende com isso dizer que absolutamente tudo que está escrito na Constituição corresponda a direitos indisponíveis e “transgeracionais”, até mesmo porque a crítica feita pela posição contra-majoritária não se dirige a assuntos de pouca relevância, como matérias de mera administração, que precisam ser previstas para que haja organização, mas sim ao “núcleo” constitucional, às questões fundamentais e determinantes de uma Constituição.
Desde o “contrato social de Locke”, no qual a população abre mão de uma parcela dos seus direitos para, em troca, os governantes garantirem certos direitos invioláveis, que se tem uma noção do que seriam esses direitos inerentes à própria pessoa humana.
Sanchís (2003, p. 140), citando Paine (1791), critica essa postura de monopolizar “derechos de todas las generaciones de los hombres”, pois – segundo Paine – “lo que merece continuar, continuará por su próprio mérito, y en ello reside su seguridade y no en condición alguna com la que se pretenda revestirlo”.
Infelizmente, a permanência de um direito não depende – unicamente – do seu mérito. De fato, se esse fosse condição única, não haveria necessidade, por exemplo, de se instituir cláusulas pétreas, pois – mesmo que novas Constituições fossem promulgadas ou outorgadas – esses institutos seriam, voluntariamente, repetidos.
No entanto, não é isso que acontece na prática e o caso brasileiro é um exemplo claro. Durante a ditadura militar, houve um enorme retrocesso e o desrespeito a inúmeros direitos que, indiscutivelmente, não deveriam ter sido violados. Nada mais justo, assim, que fosse instituída uma Constituição preocupada em proteger todos os direitos, inclusive os básicos, que nem deveriam precisar ser citados, mas, infelizmente, faz-se necessário.
Alexy (2003, p. 39) também se preocupa em limitar o que seria tão importante a ponto de não poder ser objeto de discussão política. Essa limitação torna-se ainda mais complicada por vivermos em uma sociedade plural, onde o que é considerado importante para alguns, não o é para outros. A solução, então, seria perguntar “Como queremos viver?”.
Existe una importante diferencia entre la pergunta <<¿cómo quiero vivir?>> y la pergunta <<¿cómo queremos vivir?>>. La respuesta a la primera pergunta es uma concepción moral personal que contiene una representación de lo que es la buena vida para mi. La respuesta a la segunda pregunta es una concepción moral pública que pone de manifiesto uma representación común sobre las condiciones justas de cooperación social en um mundo marcado por el hecho del pluralismo. (ALEXY, 2003, p. 40)
Em suma, são direitos escolhidos não artificialmente, mas tradicionalmente, aceitos e defendidos ao longo da história da humanidade, tornando-se indissociável dessa.
E no que diz respeito à limitação da maioria? Não seria antidemocrático restringir a atuação daquela, ainda no que diz respeito aos direitos acima mencionados?
Primeiro, é preciso saber que democracia não implica, necessariamente, a adoção da regra da maioria. Pode ser adotado a negociação ou o consenso, por exemplo (MATOS, 2002, p. 65). No entanto, como o presente artigo está voltado para o contexto brasileiro, democracia será associada ao princípio da maioria.
Além de todos os argumentos até aqui exposto, também deve ficar claro em qual sentido é empregado o termo “democracia”. Quando se fala em democracia, imediatamente se remete à idéia de “governo do povo” e a decisão pela maioria. No entanto, esse é o “sentido fraco” de democracia. Em seu sentido forte, a democracia deverá respeitar não só a vontade da maioria, como também os direitos da minoria.
[...] suele replicarse que todo depende de lo que entendamos por <<democarcia>>. Si se entiende meramente regla de decisíon por mayoría, entonces es trivialmente cierto que hay um conflicto entre ella y la primacía de la Constitución. Pero lo que se alega es que ese conflicto no debe preocuparnos particulamente, por cuanto no habría nada especialmente valioso em el mero mayoritarismo irrestricto: esto es, lo que se nos dice es que uma comunidad política haria mal en adoptar uma regla de decisión colectiva tan simples como <<lo que decida la mayoría>>, en vez de otras más complejas, del tipo <<lo que decida la mayoría, siempre que no vulnere derechos básicos>> (BAYÓN, 2003, p. 214)
A necessidade de harmonizar Constituição com as liberdades necessárias às deliberações majoritárias é recorrente na doutrina e acaba por levantar dúvidas acerca da legitimidade daquela. No entanto, a resposta é simples e está diretamente vinculada às duas principais funções da Constituição: veicular consensos mínimos, essenciais para a dignidade humana e para o regime democrático, ainda que contrário às maiorias políticas ocasionais e garantir o espaço do pluralismo político (BARROSO, 2009a, p. 88 e 89).
A limitação sofrida pela maioria em favor de direitos básicos é de fácil compreensão. No entanto, aceitar a limitação das decisões majoritária pelo o que os juízes constitucionais entendem como direitos básicos não é tarefa tão simples (BAYÓN, 2003, p. 215).
Esse verdadeiro limite é o argumento forte da objeção contra majoritária. Entretanto, somente em sua maior pertinência difere dos demais; assim como as outras oposições à supremacia constitucional, essa terceira objeção também é meramente superficial.
Primeiro, deve-se entender que o Judiciário, tal como se constitui e atua, foi escolha da própria democracia: o povo, dotado de poder constituinte - no momento de elaboração da Constituição - optou pela criação dos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, cada um dotado de características específicas para que fosse viável o desempenho de suas funções.
O fundamento normativo decorre, singelamente, do fato de que a Constituição brasileira atribui expressamente esse poder ao Judiciário e, especialmente, ao Supremo Tribunal Federal. A maior parte dos Estados democráticos reserva uma parcela de poder político para ser exercida por agentes públicos que não são recrutados pela via eleitoral, e cuja atuação é de natureza predominantemente técnica e imparcial. (BARROSO, 2009b, p. 11)
Alheio às pressões sociais, é mais provável que os juízes profiram uma decisão neutra e justa se não precisarem, diretamente, do voto popular para exercer sua função, do que se dependessem da maioria para permanecerem no poder.
Mas, não obstante, é verdade que em tais circunstâncias os legisladores carecerão de julgamento independente para identificar o direito em jogo ou a coragem de impô-lo. Mas, não obstante, é verdade que em tais casos os legisladores estão sujeitos a pressões a que não estão sujeitos os juízes, e isso deve contar como razão para chegar a conclusões fundamentadas sobre os direitos. Estou afirmando agora apenas que os legisladores não estão, institucionalmente, em melhor posição que os juízes para decidir questões sobre direitos. (DWORKIN, 2005, p. 27)
Assim, mesmo que, ao contrário dos representantes do Executivo e do Legislativo, os juízes não sejam eleitos, esses possuem legitimidades, pois sua criação e formação seguem critérios escolhidos pelo povo no momento constituinte. E mais: a falta de vinculação direta à maioria constitui um “trunfo” para o exercício da justiça.
A justiça aparece então como uma instituição que, sob a perspectiva de um terceiro neutro, auxilia as partes envolvidas em conflitos de interesses e situações concretas, por meio de uma decisão objetiva, imparcial e, portanto, justa. (MAUS, 1999, p. 190)
Ocorre que essas decisões não são puramente objetivas, o que acaba por levantar pesadas críticas. A presença, no texto legal, de “conceitos em aberto” – como má-fé e dignidade da pessoa humana - exigem que os juízes lhes atribuam significados, baseando-se em uma interpretação moral (BARROSO, 2009b, p. 11; MAUS, 1999, p. 190). A situação ainda se agrava quando se trata de “hard cases”, ou seja, casos que não possuem uma solução prévia estabelecida pelo ordenamento jurídico ou aparentam ter mais uma resposta correta.
Quanto ao primeiro motivo, ou seja, a presença de expressões vagas, este é mais um bem do que um mal, podendo ser vista – inclusive – como um artifício do legislador para facilitar a atualização do direito. Costuma-se falar que a Constituição “engessa” o direito. É sabido que a sociedade está em constante evolução, apresentando novos dilemas, novas condições. O direito não só provém da sociedade, como é feito para esta. Assim, a análise do caso concreto e atribuição de significados conforme o paradigma vigente aproxima texto escrito da realidade, permitindo a concessão de uma decisão mais justa e apropriada.
No que diz respeito aos casos difíceis, a solução se assemelha à dada no parágrafo anterior. Não haver uma resposta pré-estabelecida em algum texto normativo não significa que esta não existe, mas tão somente que será necessário um maior esforço por parte do intérprete para encontrá-la. Tais casos, como se pode deduzir, não foram previstos pelo legislador, são frutos das transformações sociais, mas nem por isso podem ficar sem solução. Assim, analisando os aspectos do caso concreto e as diversas fontes de Direito é possível se chegar à única resposta correta.
Ao fazer essa análise, o juiz não estará fazendo vingar suas convicções pessoais. Como forma de proteção, lhes é exigida uma fundamentação explícita, que prove a compatibilidade da decisão, evitando julgamentos morais ocultos (DWORKIN, 2005, p. 36).
Ainda quanto à atuação do Judiciário, há uma última objeção contra majoritária a ser analisada: a suposta ilegitimidade deste poder para realizar o Controle de Constitucionalidade. Por ser o único acusado de não ser legitimado democraticamente, é questionada a sua capacidade de tomar a decisão final.
Além de todos os motivos expostos desde o início deste artigo até aqui – obrigação de decidir, neutralidade dos juízes, não submissão às pressões sociais... - há ainda, no caso brasileiro, uma “adaptação” da representatividade argumentativa proposta por Alexy, cujo objetivo é – justamente – conciliar o controle de constitucionalidade e o princípio democrático (ALEXY, 2003, p. 44).
Segundo a teoria de Robert Alexy, incorporada em certos julgados do Supremo Tribunal Federal para justificar seu ativismo por ocasião da tomada de algumas decisões, o tribunal constitucional, embora não seja composto democraticamente pelo voto popular, também seria legítimo para escolher quais valores devem ser acolhidos em suas manifestações, desde que o faça por meio da representação argumentativa. É conveniente observar que na proposta original de Robert Alexy essa representação ocorreria por meio da aplicação de regras e formas de argumentação jurídica que possibilitariam uma escolha racional e, consequentemente, o controle das decisões. Contudo, pela análise preliminar de alguns provimentos jurisdicionais da Suprema Corte brasileira é possível perceber que esta, na orientação propugnada principalmente pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes, embora sustente sua legitimidade por meio da aplicação da teoria da representação argumentativa, não adota o modelo proposto por Robert Alexy em sua integralidade. Isto porque opta, muitas vezes, numa análise prima facie, em utilizar outros procedimentos, tais como a realização de audiências públicas e a premissão de ingresso no processo de amicus curiaei para tentar conferir legitimidade aos seus provimentos jurisdicionais. (CARVALHO et al., 2009, p. 89)
O Supremo Tribunal Federal brasileiro, através de audiências públicas e institutos como o amicus curiae, permite uma participação direta do povo na tomada de decisões, além de se tornar mais habilitado para decidir ao ouvir opiniões de especialistas.
4. Conclusão
A supremacia constitucional e a consequente jurisdição constitucional não põem em risco o ideal democrático, mas o promove. E faz isto da melhor maneira possível, garantindo os direitos fundamentais não só à maioria, mas também às minorias e contribuindo para que vigore, assim, a Democracia em seu sentido mais forte.
Isso não significa, no entanto, que o Legislativo e Executivo serão asfixiados. A própria Constituição Federal institui como cláusula pétrea a proteção à separação dos poderes, pois entende ser esta condição sine qua non para que sejam evitadas atitudes arbitrárias, incompatíveis com a sociedade que queremos viver.
É certo que a nossa Magna Carta tem um caráter protecionista, sendo exaustiva ao tratar dos direitos de cidadania; no entanto, tal atributo não deve ser analisado como óbice à evolução do Direito.
Adverso a esse exame, a nossa Constituição mostra-se em perfeita consonância com a peculiaridade do contexto histórico brasileiro, no qual direitos fundamentais precisam ser taxativamente enumerados para que não haja um “novo” retrocesso e o exercício arbitrário e abusivo do poder macule a sociedade ainda tão traumatizada pelos anos de chumbo.
A posição ativa desempenhada pelos magistrados não é apenas resultado da credibilidade conquistada por esse poder nas últimas décadas, mas meio essencial para que se alcance a tão almejada justiça social em uma sociedade dinâmica, na qual novos grupos e diferentes anseios eclodem diariamente, proporcionando questões cada vez mais complexas a serem discutidas.
Por fim, faz-se inadiável a superação da falsa premissa que aduz ser o Judiciário ilegítimo. Tal poder, assim como o Executivo e Legislativo, encontra respaldo na própria Constituição Federal, advindo do poder constituinte originário. A prerrogativa de não ser escolhido diretamente pelo povo, mas mediante concurso público de provas e título, antes o fortalece que o enfraquece, pois confere aos magistrados liberdade para decidirem em conformidade com o Direito, independente das pressões sociais. Ademais, suas decisões são legitimadas pela inescusável fundamentação e publicidade.
Referências Bibliográficas
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Graduou-se em direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) em 11/2013, trabalhou como assistente de Controle Externo em gabinete de conselheiro substituto no TCE-PI no período de setembro de 2013 a outubro de 2013, atua como analista de contas em gabinete de procurador no MPC-MT. É coautora do artigo "Os Vilões dos Juizados Especiais", na Revista Jurídica Eletrônica da UFPI, v.1, n.1, jul/ dez 2011. Foi ainda colaboradora do Vade Mecum Piauiense, 1ª ed., São Paulo: Lawbook, 2014.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Camila Parente. A supremacia constitucional e a atuação do Judiciário: reflexos históricos e legitimidade democrática Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 fev 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45952/a-supremacia-constitucional-e-a-atuacao-do-judiciario-reflexos-historicos-e-legitimidade-democratica. Acesso em: 23 dez 2024.
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