Resumo: O problema ora suscitado versa sobre as diretrizes normativas e empíricas da imputabilidade penal. Sendo um dos elementos da culpabilidade, juízo normativo de reprovação que recai sobre o autor do fato típico e ilícito, passível de fixação da sanção penal, daí advindo o critério da culpabilidade como um pressuposto de aplicação da pena, mas analiticamente integrante da estrutura tridimensional da infração penal (tipicidade, ilicitude e culpabilidade), tem a imputabilidade penal a relevância de consubstanciar o processo de imputação penal com a aferição dos seus requisitos, isto é, o entendimento e a determinação, específicos da esfera individual do autor da infração penal. Disso surge os limites empíricos da imputabilidade penal, posto que os requisitos normativos não convergem no que diz com os pressupostos concretos da conduta humana criminosa. Faz-se essencial o desdobramento fático da exigência de conduta conforme o Direito da culpabilidade e da determinação da imputabilidade, pois, à vista da integridade psíquica do sujeito, suscetível da mantença do entendimento, tal determina-se plenamente em prol da conduta reprovável, em detrimento do entendimento do caráter ilícito do fato, não sendo coerente interpretar essa completa determinação como uma minoração da resistência pessoal, concepção de improvável constatação no juízo de reprovação penal.
Palavras-chave: Imputabilidade Penal. Determinação. Culpabilidade. Autodeterminação.
Abstract: The problem now raised concerns the normative and empirical guidelines of criminal liability. Being one of the elements of guilt, normative judgment of disapproval that falls on the author of the typical suit and illicit, liable to criminal sanction, then fastening from the criterion of guilt as an assumption of punishment, but analytically of the three-dimensional structure of the criminal infraction (typicality, unlawfulness and culpability), has criminal liability the relevance of fleshing out the imputation process with criminal Scouting your requirements , that is, the understanding and the determination, individual sphere of specific author of the criminal infraction. It appears the empirical limits of criminal liability, given that regulatory requirements do not converge in with the concrete assumptions of human conduct criminal. Makes essential to the unfolding of the factual conduct requirement as the guilt and determination of liability, the view of the psychic integrity of the subject, susceptible of maintenance of understanding, such fully determined for the reprehensible conduct, to the detriment of the understanding of the illicit character of the fact, not being consistent interpret this complete determination as a mitigation of personal resistance , design of unlikely finding in judgment of disapproval.
Palavras-chave: Criminal Liability. Determination. Culpability. Self-Determination.
Sumário: Introdução. – 1. Imputabilidade Penal. – 1.1. Considerações Conceituais e Sistema Normativo. – 2. Capacidade Penal de Entender e de Querer. – 3. Os Problemas da Constatação da Imputabilidade Penal. – 3.1. Estrutura da Vontade Humana Ilícita: Exigência de Conduta Conforme o Direito. – 3.2. Capacidade de Culpabilidade: O Problema da “Autodeterminação”. – Considerações Finais. – Referências.
Introdução
Em vista da perscrutação da teoria do crime em Direito Penal, concebe-se o juízo de culpabilidade como um critério de inegável complexidade. Não é de hoje que suscita controvérsias. Vozes gabaritadas em Direito Penal, tais como Giuseppe Betiol, Claus Roxin e Juarez Cirino dos Santos, já brandiram a espada pela sua extirpação, decorrente de sua difícil constatação empírica. Não obstante, mantém-se como um dos substratos para a fixação da sanção penal, visto que integra o “conceito estratificado de delito”.[1]
Contudo, a problemática não finda no pressuposto da culpabilidade, vez que um de seus elementos carrega um estigma entre o mito e a realidade: a imputabilidade penal. Não por menos, faz-se percuciente depreender que explicitar no que diz com o entendimento e a determinação à luz da conduta criminosa concreta, talvez não implique na “morte de um mito e no nascimento de uma realidade”, para trazer à baila o silogismo do professor de Direito Penal da Universidade de Montreal, Hugues Parent,[2] porém, porventura trará outra visão no que compele à imputabilidade penal como categoria jurídico-penal.
A esse respeito, aliás, apregoa-se no presente artigo uma análise cuidadosa da imputabilidade penal, fincando em suas bases normativas os mecanismos da conduta humana típica e ilícita, isto é, propõe-se uma consonância entre as proposições normativas e as empíricas, visto que as concepções normativas da imputabilidade penal não solucionam todos os problemas processuais suscitados com o entendimento e com a determinação.
Para mais cabal esclarecimento, pretende-se deflagrar o problema da imputabilidade penal com vistas unicamente ao seu desfecho, conformado no processo de imputação penal. Porque faz-se o processo penal por intermédio de provas, cujo fito, grosso modo, pretende determinar uma condenação ou uma absolvição. Daí a necessidade de bem compreender a capacidade penal de entender e de querer no momento exato do fato ilícito. Não por menos, traz-se uma crítica à exigibilidade de conduta diversa e à autodeterminação, problemas percucientes da constatação empírica da imputabilidade penal.
1. Imputabilidade Penal
Sem embargo, é lícito exprimir ser a imputabilidade penal o “ovo da serpente” do Direito Penal. Isto em razão de que as imprecisões de certos conceitos pertinentes ao juízo de imputabilidade penal podem ocasionar perniciosos efeitos para o sistema de aplicação da lei penal, tal como ocorre com a capacidade de entendimento ou de determinação, sem dúvidas, requisitos de problemática e duvidosa aferição no processo penal.
Reinhard von Frank, não sem razão, chegou a referir-se à imputabilidade como “o fantasma errante” da teoria do delito.[3] Diversas são as variáveis dogmáticas, porém, poucas são propensas de efetiva constatação empírica, essenciais para a consubstanciação do juízo de reprovação penal, ou seja, o processo de imputação penal.
Em verdade, trata-se de instituto jurídico de remarcada complexidade, posto que o fim-último de sua incidência é o ser humano, ente complexo por excelência. Há um cabedal de fórmulas legislativas e doutrinárias, pelas quais reclama convergência e especialmente divergência sobre os preceitos fáticos da conduta humana ilícita.
Mercê desse raciocínio, para tratar-se de imputabilidade penal, é pertinente, ligeiramente, discorrer no que diz respeito à culpabilidade, vez que a imputabilidade é elemento integrante da culpabilidade. Disso ressai, em primeira instância, o princípio da responsabilidade penal subjetiva ou da imputação subjetiva, pois não há que se falar em imputação penal sem que haja dolo ou culpa na ação ou omissão.[4]
Em virtude disso, compreende-se tradicionalmente a culpabilidade como um juízo de reprovabilidade ou de censurabilidade que recai ou incide sobre o autor do fato típico e ilícito, desde que, deve-se ressaltar, haja imputabilidade, ou capacidade psíquica para responder o sujeito penalmente pelo injusto praticado.
Não é oportuno tracejar todas as linhas de evolução da culpabilidade, porém, deu-se sua culminação com a teoria estrita ou limitada, cunhada por Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini como “teoria ou conceito complexo de culpabilidade”,[5] separando-se do dolo e da culpa e auferindo efetiva independência na teoria do crime, em simetria com a tipicidade e com a ilicitude.[6] Trata-se da teoria acolhida pelo Código Penal brasileiro.[7]
Cumpre observar, de outra banda, com Luiz Regis Prado, que “a culpabilidade concreta (reprovabilidade/censurabilidade) está, pois, constituída (paralelamente à capacidade geral de culpabilidade) por elementos intelectuais e volitivos”.[8] Advém daí os requisitos delimitadores da imputabilidade penal. No entanto, uma ressalva faz-se cabível: não se deve olvidar de que tais elementos são exclusivamente subjetivos do autor da infração penal, intrapessoais e incognoscíveis no processo de aplicação da lei penal.
Em que pese tal observação, compreende-se o elemento intelectual da reprovabilidade como o potencial conhecimento da realização típica e ilícita e o elemento volitivo como a não exigibilidade de conduta conforme o Direito. Critica-se esse posicionamento, com acerto, oriundo da doutrina de Hans Welzel, pois a formação da vontade permanece como objeto do juízo de culpabilidade.[9]
Nas pegadas da crítica aventada, surge um crucial problema: como aferir e comprovar possíveis defeitos na volição no momento da infração penal no juízo de reprovabilidade? “A fragilidade da teoria estrita ou limitada da culpabilidade é justamente a indemonstrabilidade científica da liberdade de ação”.[10] Nessa perspectiva, conjugam-se as lúcidas palavras de Juarez Cirino dos Santos:
O problema central da culpabilidade é o problema do seu fundamento – o chamado fundamento ontológico da culpabilidade –, acentuado pela redefinição de culpabilidade como reprovabilidade: a capacidade de livre decisão do sujeito. A tese da liberdade de vontade do conceito de culpabilidade e, por implicação, do conceito de punição, é indemonstrável. Se pena pressupõe culpabilidade, e a reprovação da culpabilidade assenta em fundamento indemonstrável, então a culpabilidade não pode servir de fundamento da pena. Por isso, o juízo de culpabilidade deixou de ser um juízo ontológico, que descreveria uma qualidade do sujeito, para ser um juízo normativo, que atribui uma qualidade ao sujeito.[11]
Permissível esclarecer, com Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini que “só pode agir de acordo com o ordenamento jurídico quem tem capacidade de motivação, ou seja, quem tem capacidade de entender (em tese, o caráter ilícito do fato) e de querer”.[12] Superficialmente, entende-se por imputabilidade “a plena capacidade (estado ou condição) de culpabilidade, entendida como capacidade de entender e de querer, e, por conseguinte, de responsabilidade criminal (o imputável responde pelos seus atos)”.[13]
Por essas asserções, dá-se a exigência para com o sujeito deflagrador do delito um estado subjetivo e presumido de sanidade mental, tornando-o passível de compreender sua conduta comissiva ou omissiva como contrária às determinações legais. Passível, por isso mesmo, de incorrer nas reprimendas penais.
A despeito da corrente estrutura doutrinária, os percalços fincam-se no “entender” e no “querer”, pois são critérios subjetivos do sujeito, dificilmente pautados, no momento do ato típico e ilícito, de acordo com o caráter normativo ou com possibilidades de agir de outro modo, pelo que preconiza o senso comum teórico.
No momento da infração penal, em regra, com a exceção dos casos de exclusão da culpabilidade, o sujeito tem ciência de que “matar alguém” é homicídio, por exemplo, compreende que é contrário à lei penal, demonstrando menosprezo e indiferença. O “querer” dirige-se à prática da infração penal, não significando que haja supressão dos comandos da vontade (hipótese verificável nos casos de condutas levadas a cabo por psiquicamente incapazes – doentes mentais). Há comando da vontade, mas dirigida à infração penal, não suprimindo ou diminuindo a capacidade de culpabilidade.
O embaraço do requisito exigibilidade de conduta diversa é que a “resolução de vontade de acordo com o ordenamento jurídico”, efetivamente, no momento da ação ou da omissão reprovável, não se constata e não se verifica. Afora as hipóteses do sujeito acometido por condições pessoais subjetivas que lhe suprimem a sanidade mental (psiquicamente incapaz por doença mental), suprimindo a capacidade de vontade, prepondera uma “decisão voluntária ilícita”, ou seja, a vontade de praticar a infração penal, e não uma resolução de vontade embasada nos ditames normativos.
Nem sempre, é cabível aduzir, o sujeito, no momento dos fatos, faz juízos subjetivos de valor se sua conduta criminosa está ou não a par do ordenamento jurídico. Ocorre, em verdade, segundo Mougenot e Capez, o pressuposto da “existência de consciência e a vontade livre para o fato ilícito”.[14] Nessa linha de percepção, eis que o crime, no correto entendimento do professor português Eduardo Correia, não é somente a negação de quaisquer valores, mas a negação dos específicos valores jurídico-criminais praticados pelo sujeito da ação ou omissão ilícita.[15]
No passado, o caráter voluntário, isto é, a vontade (determinação) propugnadora do agir humano, uma das bases da imputabilidade, já implicava em um fator que transgredia os estreitos limites das ciências penais. Porque a determinação de agir ilicitamente não é um elemento formal, lógico e mensurável pela normatividade ou por terceiros, especialmente se o sujeito não padecer de transtornos mentais. O professor francês René Garraud já denunciava um problema até hoje não plenamente aclarado:
O caráter voluntário do fato imputado, tal é pois a base irredutível da responsabilidade. Mas dois problemas podem pôr-se: 1°. O primeiro é um problema metafísico: trata-se de saber se a vontade humana é livre ou determinada; 2°. O segundo é um problema jurídico: trata-se de investigar as condições em que o agente deva encontrar-se para responder pelos seus atos.[16]
Incita cuidados, com efeito, a comprovação da imputabilidade penal do acusado no decorrer do processo penal se, porventura, houver dúvidas razoáveis quanto à integridade mental no momento da prática da infração penal. Não evidenciada tal dúvida razoável quanto à higidez mental do acusado[17] e consequentemente defeitos totais ou parciais no aspecto intelectivo e volitivo no momento da prática delitiva, nada mais subsiste ao acusado senão submeter-se aos bordões da imputabilidade penal.
1.1. Considerações Conceituais e Sistema Normativo
A imputabilidade penal por capacidade psíquica encontra-se prevista no Título III (Da Imputabilidade Penal), art. 26, do Código Penal, no qual estão fixadas as determinações da inimputabilidade (caput) e da semi-imputabilidade (parágrafo único). Desta feita, a previsão é implícita, uma vez que o referido artigo não define explicitamente imputabilidade penal. Veja-se o conteúdo do texto do referido artigo do Código Penal:
Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento.
Parágrafo único. A pena pode ser reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços), se o agente, em virtude de perturbação da saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Tem-se, então, a imputabilidade como um conceito negativo na legislação penal brasileira. O legislador penal não definiu, em termos legais, a imputabilidade. Optou por um caminho diverso, pois em lugar de formular o conceito, preferiu explicitá-lo negativamente, indicando as condições nas quais é impossível o seu conhecimento.[18]
A imputabilidade contém um juízo sobre a capacidade geral do autor. Não se trata de uma valoração específica, que a tornaria psicológica.[19] Para melhor compreensão do conceito de imputabilidade, acrescente-se a esses argumentos as explicações de E. Magalhães Noronha, com fincas no art. 26 do Código Penal:
A imputabilidade é o conjunto de requisitos pessoais que conferem ao indivíduo capacidade, para que, juridicamente, lhe possa ser atribuído um fato delituoso. Pelos próprios termos do art. 26, imputável é a pessoa capaz de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento. Sinteticamente, pode dizer-se que imputabilidade é a capacidade que tem o indivíduo de compreender a ilicitude de seu ato e de livremente querer praticá-lo.[20]
Como a imputabilidade penal é contemporânea ao delito (ao tempo da ação ou da omissão), isto significa que tem de ser determinada em face do “tempo do crime”, critério estabelecido no art. 4º do Código Penal: “Considera-se praticado o crime no momento da ação ou da omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”.
A imputabilidade penal há de existir no momento da prática da infração penal, nada obstante tal característica levar em conta ter sido a infração praticada há considerável lapso temporal, findando por dificultar sobremaneira o critério de aferição e comprovação dos elementos intelecção e volição, se houver dúvidas quanto à higidez mental.
Assim, implica a imputabilidade penal ao sujeito em entender que está praticando um crime e que voluntariamente age em prol da realização do fato ilícito, em detrimento do fator “compreensão do caráter ilícito do fato”. Com a caracterização desses dois elementos, regra geral, tem-se o sujeito como plenamente imputável.
Voluntariamente agir não significa, entretanto, incapacidade para não agir. Somente em hipóteses excepcionais há o tolhimento total ou parcial (por doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado ou perturbação da saúde mental) da capacidade livre de agir ilicitamente. Isto em razão de que com incapacidade psíquica, não há falar em voluntariedade, em vontade ou em determinação.
Importa destacar, ao fim e ao cabo, com Zaffaroni e Pierangeli,[21] que tais conceitos não satisfazem plenamente os requisitos de uma sã teoria do delito, fazendo da imputabilidade um conceito difuso e indefinido, não confiável para a doutrina. Não obstante, o mais grave é que tal desconfiança tem sido transmitida aos tribunais.
2. Capacidade Penal de Entender e de Querer
A capacidade penal de entender e de querer ora ventilada deve ser desdobrada com realçada precaução. Viu-se que imputável é o sujeito que tem capacidade de culpabilidade. Em decorrência da capacidade de culpabilidade, tem-se a responsabilidade penal. Pressuposto lógico para auferir imputabilidade penal, no momento da conduta, dá-se com o sujeito possuir capacidade de entendimento de que a conduta é reprovável e, de posse e a despeito dessa compreensão, determina-se efetivamente a praticar a infração penal.
Estabelecer as diretrizes do juízo de imputabilidade penal na capacidade de entendimento e no querer praticar a infração penal é, sem dúvidas, a mais acurada forma de compreender a problemática da imputabilidade. V. César da Silveira, em densa e valorosa obra, aduz: “O problema da imputabilidade é encarado em relação, especialmente, à capacidade de querer, atento que todo delito, notadamente se patológico, encontra a sua razão decisiva na fenomenização da resistência individual”.[22]
Adverte-se que “querer praticar a infração penal” não deve ser interpretado como uma suposta falha dos mecanismos de volição ou determinação, pois se o sujeito tem entendimento de que a conduta é ilícita e, com tal compreensão, direciona-se em detrimento do bem jurídico, posto não ser “louco”, há de prevalecer as diretrizes da plena imputabilidade penal. Parte-se da premissa da doutrina do livre arbítrio, acolhida pelo Código Penal, ou seja, dá-se a determinação ou livre escolha do sujeito conforme a capacidade de entendimento do caráter ilícito do fato, no momento da ação ou da omissão.
A capacidade de determinação, para subsidiar o juízo de imputabilidade penal, em particular nos casos de condutas levadas a cabo por indivíduos de presumida sanidade mental, não deve ser aferida com relação às possibilidades de resistência pessoal, posto ser impossível auferir provas se o indivíduo resistiu à prática da infração penal. O juízo de reprovação penal deve fincar-se no que compele à determinação do sujeito em desfavor do bem jurídico, isto é, com entendimento e determinação (vontade) de praticar a infração penal.
Tudo leva a crer, pela análise do fato concreto, que dificilmente o sujeito resiste à prática da infração penal, detém-se, autogoverna-se, valora subjetivamente sua conduta no momento do delito, autodetermina-se ou controla-se de acordo com o entendimento normativo. Na massiva gama dos crimes que pululam por todos os rincões do país, dos crimes contra a pessoa aos crimes contra a dignidade sexual, infere-se que o sujeito determina-se efetivamente a praticar a infração penal, com o entendimento do caráter ilícito da conduta. Logo, nada mais cabível que incorrer em plena imputabilidade penal.
Ademais, causas de cunho patológico, tais quais são delimitadas pelo extenso rol das doenças mentais, que influam realmente na capacidade de entender e de querer, suprimindo a voluntariedade no momento da ação ou da omissão, hão de ser aferidas com preponderante cuidado, ensejando o ingresso no processo, desta feita, do exame psiquiátrico, caso haja dúvidas no que diz respeito à integridade mental do acusado.
Nada obstante, o problema agrava-se quando a perícia envereda na aferição da capacidade de entender ou de determinar-se, interpretando-se a determinação de praticar a infração penal como uma perturbação dos mecanismos de resistência. Não por menos, Sante de Sanctis, psiquiatra italiano, inferia que “todo delito é sempre a expressão de uma falha no mecanismo da voluntariedade”.[23] Ao cabo, o psiquiatra alemão Kurt Schneider, depreendia serem irrespondíveis as perguntas sobre a capacidade de entendimento do injusto e sobre a capacidade de determinar-se segundo tal entendimento.[24]
3. Os Problemas da Constatação da Imputabilidade Penal
3.1. Estrutura da Vontade Humana Ilícita: Exigência de Conduta Conforme o Direito
Um adendo sobre a vontade humana ilícita deve fazer-se presente, pois a discussão sobre a imputabilidade penal recai exatamente sobre os seus elementos: entendimento (intelecção) e determinação (volição). À guisa de esclarecimento, concebe-se a complexa dinâmica da vontade humana no momento do crime, pois é em tal momento que conflagra-se o exercício do entendimento e da determinação.
Perceptível que a compreensão dos mecanismos volitivos da conduta humana ilícita não é claramente aferível tão somente com os subsídios normativos, pelo que as concepções normativas de culpabilidade não são suficientemente abrangentes para estabelecer as diretrizes da vontade humana e o contributo para a eclosão da ação criminosa, não havendo de confundir-se com vontade dolosa (dolo), posto ser elemento do tipo penal.
Hans Welzel enfatizava que “a culpabilidade é a reprovabilidade de resolução de vontade. O autor podia adotar no lugar da resolução de vontade antijurídica uma resolução de vontade conforme a norma. Toda culpabilidade é, pois, culpabilidade de vontade”.[25] Apenas aquilo que depende da vontade humana pode ser-lhe reprovável. Tudo o que o homem simplesmente “é” pode ser valorado ou de escasso valor.[26] Depende, contudo, da capacidade psíquica de obrar ilicitamente no momento da ação ou da omissão.
Por agora, faz-se necessário tracejar as chamadas “fases intrapsíquicas da ação delituosa”.[27] Isto porque o crime não surge do nada, como “do nada, nada advém” (ex nihilo nihil fit). Pode ser que concorram causas de natureza psicótica por incapacidade mental, propícias para tolher a estruturação das fases intrapsíquicas. Sem essas fases não há falar em determinação delitiva e, por consequência, em culpabilidade e imputabilidade.
Emílio Myra y Lopez infere que todo delito percorre diversos estágios intrapsíquicos. De acordo com o tipo de transgressão legal, pode-se dizer que jamais é totalmente impulsivo e nem completamente premeditado. Especifique-se, pois, que o delito estrutura-se por intermédio dos elementos intelecção, desejo ou tendência, deliberação ou dúvida, intenção, decisão e, por fim, execução ou realização.
Coloca-se esse esclarecimento com a finalidade de contrapor as ideações em relação aos chamados “impulsos mórbidos”, capazes de fazer de per si eclodir a infração penal, de modo que surgisse desses impulsos uma espécie de “crime de inopino”. Os mecanismos estruturadores da determinação estão indissociavelmente conectados com a intelecção. Com a mantença da capacidade psíquica, tem-se a integridade do entendimento, passível de influir na plenitude da determinação criminosa.[28]
A ressalva é relevante pelo fato de que o operador do Direito, especialmente o militante no foro criminal, não pode prescindir do estudo dos componentes psíquicos que condicionam o homem à infração penal. A compreensão do juízo normativo da culpabilidade é sumamente importante, em simetria com a imputabilidade, mas tais concepções normativas não existiriam se não ocorresse o desatino configurado no injusto concreto.
Disso ressai que o estudo normativo da imputabilidade penal tem de ser efetivado juntamente com as diretrizes albergadas pela Criminologia e pelas demais ciências auxiliares do Direito Penal. Não se está contrapondo aos limites normativos da culpabilidade, visto que já foram traçados e estão consolidados na doutrina e na jurisprudência. Aduz-se aos “limites empíricos da culpabilidade”, os limites palpáveis do caso concreto, os limites (in)verificáveis na pessoa própria e indivisível do autor da infração penal.
Uma coisa é a “culpabilidade normativa”. Outra coisa é a “culpabilidade empírica”. Nem sempre se fundem ou se confundem. Nem sempre o Direito Penal (ciência normativa) dá as mãos à Criminologia (ciência empírica). Tem-se a noção do conteúdo da norma penal e sua finalidade com o Direito Penal, mas vê-se que o Direito Penal não se espelha no conteúdo do autor da infração penal, em sua particular estrutura delitiva.
Malgrado o exposto, agiganta-se o problema em face da chamada exigibilidade de conduta conforme o Direito. Nem sempre há a ocorrência da autodeterminação conforme o Direito no momento exato da prática criminosa, pelo que preconiza esse elemento da culpabilidade. O que ora apregoa-se não é um posicionamento débil e isolado. Vozes há, no âmbito jurídico-penal, que se alinham em semelhante direcionamento.
Isso porque a exigibilidade de conduta diversa da culpabilidade está vinculada com a determinação da imputabilidade. Com a compreensão do problema que envolve a exigibilidade de conduta diversa ter-se-á a ciência da temerária questão da determinação. É concretamente possível exigir do autor uma conduta diversa? Uma “autodeterminação” conforme o entendimento da norma é empiricamente conferível?
Primeiro, confira-se a concepção normativa de exigibilidade de conduta diversa, pela percepção do próprio sistematizador da moderna teoria finalista da ação, Hans Welzel: “O autor teria podido adotar, em vez da resolução de vontade antijurídica – tanto se dirigida dolosamente à realização do tipo como se não correspondente à medida mínima de direção final exigida –, uma resolução de vontade conforme a norma”.[29]
Segundo, em divergência ao referido elemento da culpabilidade, apregoa-se o posicionamento sólido de Claus Roxin: A culpabilidade pressupõe que o agente poderia haver atuado de maneira diversa. Uma liberdade de vontade deste tipo, não existe, ou pelo menos não se pode cientificamente provar. “Mesmo se ela existisse em abstrato, de qualquer forma não seria possível determinar-se com segurança se um agente em concreto, no momento do cometimento do delito, poderia ter agido de outra maneira”.[30]
Cabe uma indagação: qual o sujeito que pratica uma infração penal que, no momento da infração penal, faz um sopesamento se a sua conduta é ou não dirigida conforme o Direito? Com raríssimas exceções, tal sopesamento não ocorre e não se verifica. Por exemplo, em casos de crimes contra a dignidade sexual, o sujeito ativo do estupro faz um juízo de valor se a sua conduta está condizente com as normas legais? Não, pois o sujeito dirige sua determinação para cometer o ato ilícito, não relevando as normas gerais. Disso conclui-se que não age conforme a norma, mas conforme sua própria conduta.
Isto pelo fato de que o que lhe condiciona cinge-se na satisfação sexual, embora exercida mediante violência ou grave ameaça. Por isso possui a culpabilidade diminuída, posto que não poderia agir de outra forma? Não. Há completa integridade da culpabilidade. A determinação persiste no decorrer do ato ilícito, só que é dirigida ao fim-último, ou seja, à conduta sexual, especificamente dirigida à prática do fato ilícito e típico.
Apregoa-se, na contramão do senso comum teórico, que o causador do injusto determina-se livremente, por intermédio de sua capacidade psíquica, conforme um fim, qual seja, o de praticar a infração penal. Não de praticar a infração penal se havia possibilidades de exigir-se conduta diversa, pois o autor de uma infração penal dolosa, aquele que age com vontade de matar, não cogitará, no momento do ato, se há ou não conformidade com a norma do art. 121 do Código Penal ou se há ou não possibilidade de agir de outro modo. O sujeito age em razão de um fim ilícito e dá forma a uma conduta e a um resultado criminoso.
Teoricamente, os elementos integrantes da culpabilidade são pertinentes e coerentes. O problema está na análise desses elementos no processo concreto de imputação, perspectiva difícil de ser visualizada tão somente com os subsídios das teorias livrescas. Como “a todo por quê corresponde um portanto” (Shakespeare), a toda tese cabe uma antítese, a todo argumento demanda um contra-argumento. Da mesma forma que a exigibilidade de conduta diversa é empiricamente incognoscível, excetuando-se no que diz com as suas causas de exclusão, tal ocorre com a “autodeterminação”, pois é elemento que somente o autor da infração penal tem domínio e conhecimento.
O juiz penal e o perito psiquiatra, em casos de razoáveis dúvidas quanto à higidez mental do sujeito no momento da ação ou omissão podem, no máximo, presumir no que infere à exigibilidade de conduta diversa ou, em especial, se a “autodeterminação” de praticar a infração estava prejudicada. São suposições e presunções, e um sistema de imputação penal não pode e não deve sustentar-se com suposições e presunções. Não há cabimento em reduzir penas, por exemplo, tão somente com base em tais subterfúgios.
Sustenta-se esse embasamento em linha de percepção com a coerente posição do psiquiatra alemão Kurt Schneider,[31] explicitando, com razão, tratar-se de um esquema jurídico perfeito, mas cientificamente precário. Dá-se a exclusão da imputabilidade somente se a doença mental ou o desenvolvimento mental incompleto ou retardado conduzem à incapacidade completa de entendimento ou de “autodeterminação”.
Kurt Schneider opôs rigorosa crítica ao esquema legal, observando que a fórmula adotada é uma espécie de “construção de dois andares” (zweistöckinger Aufbau), que se baseia em uma psicologia da ação divorciada da experiência – por que não dizer um Direito Penal divorciado da experiência? –, pois separa na ação uma parte intelectual de outra correspondente à decisão de vontade. Imagina-se que o agente primeiramente reflita se a ação é correta ou incorreta, permitida ou proibida e que, após tal reflexão, em outra etapa do comportamento, se decida a agir ilicitamente.
Embora seja um esquema possível de ocorrer, porém, praticamente nenhum criminoso agirá dessa forma. Pode o perito verificar e descrever (com as limitações da ciência atual) a existência de perturbação ou alteração mórbida do psiquismo, mas as perquirições sobre a capacidade potencial e concreta de entendimento da ilicitude e, sobretudo, sobre a capacidade de “autodeterminar-se” segundo esse entendimento são irrespondíveis. A final e preponderante recomendação de Kurt Schneider direciona-se para que se desconfie do perito que se julga capaz de responder a tais questões.
3.2. Capacidade de Culpabilidade: O Problema da “Autodeterminação”
Não por menos, expande-se o problema da capacidade de culpabilidade com um dos substratos da imputabilidade penal, isto é, a “autodeterminação”. Por que dispor a expressão “autodeterminação”, e não simplesmente “determinação”? O caput e o parágrafo único do art. 26 do Código Penal explicitam: “[...] entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se (determinação) de acordo com esse entendimento”. Diga-se, de logo, que a proposição psíquica de imputabilidade da ação do criminoso com capacidade psíquica cinge-se na determinação de praticar o fim ilícito, e não na autodeterminação.
Aliás, torna-se permissível esclarecer que o problema da “autodeterminação” da imputabilidade umbilicalmente comunga-se com a exigibilidade de conduta diversa da culpabilidade, pois: qual o sujeito praticante de uma infração penal que no momento do agir ilícito “autodetermina-se” conforme o entendimento de que a conduta contraria os ditames normativos? Por tal, “autodeterminação” tem o significado de contra-impulso, autogoverno ou resistência pessoal para não praticar a infração penal.
Há que dar-se a ocorrência de um sopesamento no momento da prática criminosa. Ou seja, por essa linha de pensamento, o sujeito, primeiro, possui o entendimento de que sua conduta é reprovável, e, segundo, de posse desse entendimento, faz um juízo de autogoverno, diz-se, resiste em maior medida para praticar ou especialmente não praticar a conduta criminosa. Se o sujeito resiste em menor medida, se pratica mais facilmente o crime, em tese, sua autodeterminação está prejudicada, diminuindo a imputabilidade.
Em face desse raciocínio, para os que advogam a teoria da autodeterminação, ao invés de empregarem o verbo “determinar-se” da norma penal não incriminadora – significação da livre decisão para agir em detrimento do entendimento do caráter ilícito do fato – fazem uso do verbo “autodeterminar-se”, como se fosse possível trazer ao juízo de reprovação do processo penal uma prova factível de que o autor do crime em maior ou em menor escala resistiu psiquicamente ao ímpeto criminoso.
À vista disso, não há empecilhos em compreender que um indivíduo constituído por formação defeituosa do caráter, por exemplo, mas psiquicamente capaz – pois defeito de personalidade não suprime a capacidade psíquica –, não terá dificuldades para livremente decidir e agir em contraposição à compreensão de que atua ilicitamente. Agora, se irá esse sujeito autodeterminar-se, não há resposta científica para tal problema, sendo certo que sua completa determinação será de praticar o fim ilícito.
Regra afim aplica-se ao sujeito de personalidade mais ou menos bem formada, cujo forçoso intuito, no mais, é dar forma à ação ilícita, contrapondo o próprio e particular entendimento do caráter ilícito de sua conduta. Por outro lado, a capacidade de querer conformada pela ideia de agir ou não agir aufere ares temerários, por que se o sujeito simplesmente age, sem resistência, mas provando-se sua capacidade psíquica, haverá de incidir um pulso patológico em sua conduta? Não. Para compreender melhor o problema da autodeterminação, insere-se linha de pensamento de V. César da Silveira:
Para os fins médico-legais, e, nuclearmente, da imputabilidade, o perito deve sempre assegurar-se se, no momento do delito, subsistia ainda no delinquente a capacidade de querer livremente, ou seja, a capacidade de escolha, e, sobretudo, de inibir-se, de resistir, de modo a poder também renunciar a concretar o ato criminoso, ou, ao contrário, se subtentrou uma vontade patológica, levada a exprimir-se através de automatismos e impulsos.[32]
O posicionamento é respeitável, mas trata-se, sem sombra de dúvidas, de uma fórmula teórica insuficiente e concretamente indemonstrável. Com efeito, o problema da autodeterminação, compreendido pela inibição ou pela resistência de não concorrer para a prática típica e ilícita, é tão engenhoso quanto insustentável. Um tal argumento no processo de imputação penal de nada vale, pois: como comprovar se o sujeito resistiu em maior ou menor medida no momento da conduta delitiva?
Aludiu-se que a capacidade de determinação (e não autodeterminação), para subsidiar o juízo de imputabilidade penal, não deve ser aferida com relação às possibilidades de resistência pessoal, posto ser impossível ter provas se o indivíduo resistiu, no momento da ação ou omissão, à prática da infração penal. O juízo de reprovação penal deve delimitar-se no que compele à capacidade psíquica do sujeito em desfavor do bem jurídico, isto é, com entendimento e determinação de praticar a infração penal.
A concepção da autodeterminação é insustentável em razão do aspecto empírico e particular do crime. Porque na detida análise do fato, em subsunção ao permissivo estabelecido no art. 121 ou 213 do Código Penal, à guisa de exemplo, dá-se a livre vontade de lesar o bem jurídico vida extrauterina ou dignidade sexual, posto que, caso haja determinação de cometer o ato ilícito (matar ou estuprar), o sujeito não fará juízos subjetivos de resistência. Basta dar uma vista de olhos nos casos em geral e nos resultados lesivos concebidos para auferir ciência no sentido de que não se dão juízos de resistência.
Não haverá um contra-impulso, mas um impulso direcionado ao resultado ilícito. Irá praticar o fato, em detrimento do entendimento de que contraria os ditames legais. Sendo, pois, plena a determinação de praticar o homicídio ou o estupro, posto não haver autogoverno, estará minorada sua imputabilidade? Decerto, deve impor-se a resposta negativa. Resta evidente que esse raciocínio não trata-se de um exercício metafísico.
Galdino Siqueira, antigo penalista brasileiro, espelhado no psiquiatra francês Jules Falret, com razão já indagava: Quem tem a pretensão de possuir um instrumento bastante preciso para calcular com exatidão nesta estatística intelectual e moral, neste mecanismo complicado das faculdades intelectuais, morais e instintivas, o poder das forças de impulsão e o contrapeso exercido pelas forças de resistência? Esse é um ponto que precisa ser tratado com mais vagar no estudo da culpabilidade e da imputabilidade penal.
Explique-se um tanto mais: um sujeito padecente de incapacidade psíquica por doença mental, em regra, não tem voluntariedade, não tem determinação, não tem querer no momento do crime, de modo que pode dar-se exclusão da culpabilidade por inimputabilidade. Afora isso, em casos outros pode ocorrer uma minusvalia no entendimento ou na determinação, em decorrência de psicoses transitórias, posto constituírem incapacidades psíquicas relativas, que podem diminuir as funções psíquicas no momento da infração penal, permitindo o ensejo da semi-imputabilidade penal e de suas benesses.
Para tanto, no que diz com a inimputabilidade e com a semi-imputabilidade, há de instaurar-se o incidente de insanidade mental, caso haja efetivas e razoáveis dúvidas quanto à higidez mental do acusado, em especial atenção às regras processuais penais e ao sistema biopsicológico, com a subsunção da enfermidade mental ao perito e a capacidade de entendimento ou determinação ao magistrado do caso concreto.
Como o juízo de imputabilidade penal é presumido – não havendo dúvidas quanto à higidez mental do acusado, há presunção de imputabilidade – converge a disposição insculpida no art. 26 do Código Penal no sentido de que acolheu-se a doutrina do livre arbítrio, ou seja, com a presunção do entendimento e da determinação de praticar a infração penal – com a ciência de que o obrar é contrário às diretrizes legais, mesmo assim quer e livremente atua em detrimento de tal entendimento – prepondera a mantença da imputabilidade penal, com a fixação das cabíveis consequências repressivas.
Uma palavra, com Hans Welzel, há de ser ponderada. Segundo lição do ilustre professor alemão, “culpabilidade é a falta de autodeterminação conforme um fim”.[33] Trata-se de autodeterminação normativa. Todo e qualquer sujeito praticante de ato ilícito, antijurídico e culpável está sob o pálio da responsabilidade penal. Com a comprovação da culpabilidade, pressupõe-se falta de autodeterminação, pois o criminoso privilegia o fim escuso e reprovável em detrimento de qualquer juízo valorativo social ou jurídico. Isto não afasta, contudo, a controvérsia da autodeterminação ou capacidade de resistência do sujeito frente à infração penal, problema de duvidosa e improvável constatação no juízo de reprovação penal. Aliás, trata-se de uma problemática parcamente tratada pela doutrina penal brasileira no estudo da culpabilidade e da imputabilidade.
Haja vista tal vazio dogmático, utilizando dos subsídios do citado penalista germânico,[34] chega-se à conclusão de que a capacidade concreta de culpabilidade não é passível de percepção, sobretudo por terceiras pessoas, pois a capacidade concreta de culpabilidade de um sujeito criminoso não pode ser jamais objeto de conhecimento teórico objetivado, tanto mais um desditoso prognóstico de inibição ou autogoverno. Há de repisar-se com isso que, em verdade, dá-se determinação, e não autodeterminação.
Nessa linha interventiva não sem razão exposta por Hans Welzel, há psiquiatras com bom senso e conscientes de sua responsabilidade que se furtam de cientificamente responder e muito menos comprovar questões envolvendo a capacidade de entendimento ou de determinação. Podem constatar a presença de determinados estados anormais, tais como as doenças mentais, porém, a exclusão da culpabilidade nesses estados extrapola seu juízo científico. Todo conhecimento científico encontra aqui seu limite, pois não se pode converter em objeto aquilo não é passível de objetivação: a subjetividade do sujeito.
Em última instância, torna-se crível confirmar, cônscio das premissas suscitadas, que terá capacidade concreta de culpabilidade o causador do crime possuidor de capacidade psíquica e, com integridade do entendimento, não obstante, determina-se plenamente a praticar o fato ilícito. Terá autodeterminação ou resistência pessoal? Pela aferição dos casos concretos e pelos resultados lesivos facilmente verificáveis, conclui-se pela resposta negativa. Com capacidade psíquica, será incapaz ou menos capaz de responder penalmente pelo ilícito praticado, haja vista ter-se determinado completamente à prática do fato ilícito? A resolução da primeira indagação há de ser reiterada.
Em desfecho, sustentar da aferição da autodeterminação em casos de presumida imputabilidade em sujeitos cujas funções psíquicas permanecem íntegras, uma vez que sequer suscita razoáveis dúvidas quanto à higidez mental, é um exercício de vidência. É um argumento falsificado pela construção linguística e, portanto, inverificável e irrefutável no processo de imputação penal, demonstrando-se uma tentativa inapreciável de esvaziar o conteúdo punitivo do Direito Penal. Ao fim e ao cabo, o problema da autodeterminação há de talvez fazer despertar do “sono dogmático” o juízo de imputabilidade penal, levando-o à crítica da razão prática, em paráfrase ao sensato filósofo Immanuel Kant.
Considerações Finais
Ressalve-se em arremate, que não se está levantando a “bandeira do punitivismo” com a problemática da imputabilidade. Há um fator de ordem crítica no que diz com o sistema de aplicação da lei penal, pois com o cometimento da infração penal, há de conceber-se uma resposta efetiva, com base nas provas e indícios suficientes para constituir preceitos como materialidade e autoria, de modo que, em última instância, faça valer o princípio da segurança jurídica e, não por menos, consigne a segurança social, pois o Direito Penal, nada mais nada menos, converge em benefício da sociedade.[35]
Portanto, faz-se conveniente à dogmática penal tracejar as linhas doutrinárias de teoria do crime com os olhos no fato real e vivo. Com isso, o mito da imputabilidade penal restringe-se na concepção da autodeterminação, porém, em contrapartida, a realidade comporta o critério da determinação. Qual prevalecer no processo penal, o mito ou a realidade? Uma ideação improvável no sentido de que o sujeito causador do delito resistiu em maior ou em menor medida para a causação do fato típico e ilícito?
Porque um sujeito com capacidade psíquica, no momento exato do ato, v. g. de conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça, certamente não resistirá. Irá satisfazer seu desditoso desejo sexual. Ou seja, dá-se a determinação para a consecução do fim ilícito almejado. Logo, não há resistência, autogoverno ou contra-impulso. Enfim, tal raciocínio há de inferir-se em relação à grande parte do catálogo das infrações penais.
O problema finca-se no juízo de imputabilidade penal, no qual dá-se o privilégio pela capacidade pessoal e psíquica do sujeito para incorrer em responsabilidade penal. Neste prisma, depreender no que diz respeito aos critérios de resistência individual no momento da conduta finda por ser um perigo para a imputação da lei penal. De repisar que não há possibilidades de comprovação concreta dessa referida resistência pessoal.
No mais, interpretar o critério da autodeterminação como uma forma de resistência para não concorrer para a violação do bem jurídico termina por ser uma ideação metafísica, fora do plano concreto das coisas, pois o fim da discussão é o processo de imputação penal, no qual recai, diariamente, sujeitos psiquicamente capazes e sabedores, no momento da conduta, de seu caráter reprovável, mas, nada obstante, plenamente determinados para infringir o bem jurídico, suscetíveis, por tudo, de imputabilidade penal.
Referências
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ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. v. 1.
[1] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. v. 1. p. 350. O conceito estratificado de delito, na visão de Zaffaroni e Pierangeli, comporta a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade, tal qual delimita-se pela tradicional concepção analítica de infração penal.
[2] PARENT, Hugues. L’Imputabilité Pénale. Mort d’um mythe, naissance d’une réalité. Article de la Revue Juridique Thémis. Les Editions Thémis. Québec, 2001, 191-240.
[3] BONFIM, Edilson Mougenot; CAPEZ, Fernando. Direito Penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 540.
[4] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte geral, arts. 1º a 120. 11. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais: 2013. v. 1, p. 167.
[5] GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Curso de Direito Penal: parte geral (arts. 1° a 120). Salvador: JusPodivm, 2015. v. 1, p. 431.
[6] Para melhor intelecção do objeto, conveniente verificar as teorias evolutivas no campo da culpabilidade, preponderantemente as teorias psicológica ou causalista (Liszt e Beling) e normativa ou psicológico-normativa (Reinhard von Frank), ambas conhecidas pela confusão do dolo e da culpa como elementos da culpabilidade, de fundo psicológico, e não normativo, como hoje depreende-se, sendo que dolo e culpa são efetivamente elementos do tipo penal.
[7] Cf., por todos, WELZEL, Hans. O Novo Sistema Jurídico-Penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. Traduzido por Luiz Régis Prado. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, no qual expõe com rigor os aspectos essenciais da teoria finalista da ação, adotada pelo Código Penal com a reforma da Parte Geral em 1984. Essencial para a compreensão das diretrizes normativas da culpabilidade e, não por menos, da imputabilidade penal.
[8] Idem, p. 472.
[9] Idem, ibidem.
[10] GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Op. cit., p. 434.
[11] apud BONFIM, Edilson Mougenot; CAPEZ, Fernando. Op. cit., p. 527.
[12] Idem, p. 444.
[13] PRADO, Luiz Regis. Op. cit., p. 478-479.
[14] Idem, ibidem.
[15] Idem, ibidem.
[16] GARRAUD, René. Compêndio de Direito Criminal. Traduzido por A. T. Menezes. Lisboa: Livraria Clássica, 1915. v. 1, p. 200.
[17] Trata-se do incidente de insanidade mental do acusado, previsto no art. 149 e seguintes do Código de Processo Penal.
[18] FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui (Coord.). Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial: doutrina e jurisprudência. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 214.
[19] JESUS, Damásio de. Direito Penal: parte geral. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. v. 1, p. 513.
[20] NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal: introdução e parte geral. 38. ed. rev. e atual. São Paulo: Rideel, 2009. v. 1, p. 162. No campo doutrinário, entre todos, concebe Magalhães Noronha o conceito que mais corresponde com o fato concreto, pois como a imputabilidade requer uma presunção de capacidade psíquica para o sujeito compreender a ilicitude de seu ato, logo, há que ele livremente, por opção própria, em detrimento dessa compreensão, querer praticá-lo, ou seja, determina-se em última instância pelo resultado lesivo, não configurando aspectos correspondentes à “resistência” ou “autogoverno” ou juízos intrapsíquicos de agir de outro modo. O problema está na concepção do que realmente significa a palavra “determinar-se”, contida no texto do art. 26, caput e parágrafo único, do Código Penal. Não se deve olvidar de que a expressão autodeterminação denota um juízo de livre escolha pessoal das próprias condutas e ações.
[21] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Op. cit., p. 561.
[22] SILVEIRA, V. César da. Tratado da Responsabilidade Criminal. São Paulo: Saraiva, 1955. v. I, p. 90.
[23] Idem, p. 91.
[24] apud VELO, Joe Tennyson. Criminologia Analítica: conceitos de psicologia analítica para uma hipótese etiológica em criminologia. São Paulo: IBCCRIM, 1998, p. 95.
[25] WELZEL, Hans. Op. cit., p. 109.
[26] Idem, ibidem.
[27] MIRA Y LÓPEZ, Emílio. Manual de Psicologia Jurídica. Campinas: Servanda, 2011, p. 154.
[28] Não confundível com o determinismo preconizado na Escola Positiva, principalmente por Cesare Lombroso e Enrico Ferri, na qual compreendia-se o criminoso como um indivíduo plenamente determinado ao crime em decorrência de causas atávicas, patológicas e ambientais, de modo que haveria de ser sempre um anormal. Aqui, preconiza-se a imputabilidade penal justamente com a capacidade psíquica para conferir entendimento do caráter ilícito do fato e de, não obstante esse entendimento, determinar-se plenamente em prol do resultado lesivo ao bem jurídico, não significando, de forma alguma, que o sujeito causador da infração penal seja um anormal patológico, pelo fato de que quedou-se terminantemente, em última instância, em direção à conduta criminosa.
[29] Idem, p. 116.
[30] ROXIN, Claus. A Culpabilidade Como Critério Limitativo da Pena. Revista de Direito Penal 11/12. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 07.
[31] apud FRAGOSO, Heleno Cláudio; HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. v. I, t. II, p. 604-605.
[32] Idem, ibidem.
[33] WELZEL, Hans. Op. cit., p. 131.
[34] Idem, p. 129.
[35] Isto pode lembrar aquela velha e famosa máxima de Franz von Liszt, de que “o Código Penal é magna carta do delinquente”. Sem dúvidas que o Código Penal brasileiro tem um substrato garantista, constitucionalmente massificado por intermédio de direitos fundamentais de cunho penal e processual penal, todavia, não visa o Código Penal e as demais leis penais a proteção exclusiva do criminoso, e sim, por tudo, a necessidade de segurança da sociedade.
Especialista em Direito Internacional e Direitos Humanos pelo Centro Universitário e Faculdades Uniftec (UNIFTEC). Especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Faculdade Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS). Pesquisador com concentração em Direito e Processo Penal Internacional, Cooperação Jurídica Internacional e Direitos Humanos. Graduado em Direito pelo Instituto Luterano de Ensino Superior de Porto Velho/RO (ILES/ULBRA). Assessor Jurídico do Ministério Público do Estado de Rondônia. E-mail: [email protected].
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GARCEZ, Junior D. S.. Subsídios para uma teoria da imputabilidade penal: o problema da "autodeterminação" Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 fev 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45953/subsidios-para-uma-teoria-da-imputabilidade-penal-o-problema-da-quot-autodeterminacao-quot. Acesso em: 23 dez 2024.
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