RESUMO: O dolo e a culpa constituem elementos do tipo necessários à configuração do crime e que, via de regra, devem ser analisados no momento da conduta do sujeito ativo, sendo excepcionalmente analisados em momento anterior como, por exemplo, em alguns casos de embriaguez do agente. A doutrina e jurisprudência desenvolveram subespécies dos referidos elementos, entre eles: dolo eventual e culpa consciente. É possível verificar a existência de julgados no sentido de se atribuir um conceito elástico ao dolo eventual de modo a abarcar homicídio no trânsito quando apresenta determinadas circunstâncias concretas, é o exemplo de o condutor estar sob o estado de embriaguez. Essa tendência de alguns julgamentos é completamente equivocada, vez que infringem toda uma teoria desenvolvida do crime adotada pelo ordenamento jurídico e decorre provavelmente em razão de pressões sociais e midiática ante a violência no trânsito.
PALAVRAS-CHAVE: Dolo eventual, culpa consciente, teoria da “actio libera in causa”, embriaguez, homicídio na direção de veículo automotor.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. TEORIA DA “ACTIO LIBERA IN CAUSA”, DOLO EVENTUAL, CULPA CONSCIENTE E A CONDUTA PRATICADA NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR DE QUE RESULTA HOMICÍDIO, EM RAZÃO DE EMBRIAGUEZ ALCOÓLICA AO VOLANTE. 1.1. EMBRIAGUEZ NO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO. 1.1.1. Embriaguez voluntária. 1.1.2. Crítica Doutrinária Acerca da Aplicação da Teoria da “Actio Libera in Causa” à Embriaguez Voluntária em Sentido Estrito e Culposa. 1.2. TÊNUE LIMITE ENTRE DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE. 1.3. DOLO EVENTUAL, CULPA CONSCIENTE E O HOMICÍDIO CULPOSO QUALIFICADO NO TRÂNSITO, EM RAZÃO DA EMBRIAGUEZ. 1.4. DECISÕES DOS ANOS DE 2010 E 2012 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ACERCA DO TEMA. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
A responsabilidade penal, no ordenamento jurídico brasileiro, é subjetiva. O Código Penal pátrio não admitiu a responsabilidade penal objetiva, isso porque consagra plena e integralmente o princípio do nulum crimen sine culpa.[1] Desta forma, deve restar provada a existência do dolo ou da culpa em sentido estrito para a devida configuração do fato típico.
Tanto o dolo quanto a culpa são compostos por elementos caracterizadores, bem como a doutrina apresenta distinções específicas de cada um, abrangendo um rol de espécies.
A doutrina classifica em dolo indireto quando a vontade do sujeito não se dirige a certo e determinado resultado, este é composto pelo dolo alternativo e o dolo eventual. O primeiro verifica-se na hipótese em que a vontade é dirigida a um ou outro resultado, já o último na hipótese em que o agente assume o risco de produzir o resultado, é consentir com o resultado.
Tratando-se da culpa consciente, tem-se que o agente jamais aceita o resultado, apenas aceita a conduta, isso porque o resultado é previsto pelo agente, mas este espera levianamente que o mesmo não ocorra ou que pode evitá-lo. Por exemplo, quando um franco atirador, em atividade, acaba por acertar a vítima.
A aplicação do dolo eventual e da culpa consciente nos delitos de trânsito, sobretudo o homicídio na direção de veículo automotor, tem sido amplamente discutida pela doutrina e pelos tribunais pátrios. Entre os fatores responsáveis está o evidente aumento do número de infrações penais no trânsito e a grande pressão social e da imprensa brasileira.
No que concerne a algumas condutas, entre elas: a embriaguez ao volante, o excesso de velocidade e a participação em competição não autorizada, de que resultam homicídio, há uma tendência jurisprudencial e doutrinária no sentido de se atribuir o crime, a título de dolo eventual. Cumpre registrar, desde já, a verificação da adoção, por parte da doutrina e jurisprudência brasileira, de um conceito bastante elástico do que venha a ser o dolo eventual, existindo a caracterização praticamente automática, em alguns julgados, do dolo eventual em virtude da simples embriaguez do condutor, presumindo-se que o mesmo assumiu e era indiferente ao risco da ocorrência do resultado lesivo.
Impende dispor a respeito dos elementos subjetivos do tipo, dolo e culpa, na imputação da infração penal diante da embriaguez do sujeito ativo no momento da ação ou omissão. Tendo isto em vista, faz-se referência à teoria da actio libera in causa e sua aplicação nas condutas sob o estado de embriaguez.
Ante o exposto, o presente trabalho busca um aprofundamento teórico de dolo e culpa e, do mesmo modo, discussões de cunho prático sobre a utilização dos referidos conceitos nos julgamentos de homicídios no trânsito, em virtude de embriaguez ao volante.
1. TEORIA DA “ACTIO LIBERA IN CAUSA”, DOLO EVENTUAL, CULPA CONSCIENTE E A CONDUTA PRATICADA NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR DE QUE RESULTA HOMICÍDIO, EM RAZÃO DE EMBRIAGUEZ ALCOÓLICA AO VOLANTE
1.1. EMBRIAGUEZ NO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO
Neste item, será abordado brevemente sobre os tipos de embriaguez e as disposições a seu respeito no ordenamento jurídico brasileiro.
Extrai-se do Título III (Da Imputabilidade Penal), da Parte Geral, do Código Penal, a existência de três causas de inimputabilidade (excludentes da culpabilidade), quais sejam: a) doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado – artigo 26; b) menoridade penal – artigo 27; c) embriaguez involuntária e completa – artigo 28, parágrafo primeiro. A primeira e a última hipóteses exigem a supressão total das capacidades mentais de entendimento e autodeterminação verificadas no momento da conduta, do contrário, sendo esta parcial o agente será considerado semi-imputável.
Embriaguez é a intoxicação aguda e transitória provocada pelo álcool ou substâncias de efeitos análogos. No conceito de Eduardo Rodrigues, é “a perturbação psicológica mais ou menos intensa, provocada pela ingestão do álcool ou substância de efeito análogo, que leva a total ou parcial incapacidade de entendimento e volição”.[2]
O presente artigo se delimitará ao estudo da embriaguez ocasionada pela ingestão de bebida alcoólica, tendo em vista que esta abarca a maior parte dos casos concretos que envolvem homicídio na direção de veículo automotor, em razão de embriaguez.
Há três modalidades de embriaguez: a) involuntária ou acidental; b) patológica; c) voluntária, esta se subdivide em culposa, voluntária em sentido estrito (dolosa ou intencional) e preordenada.
Embriaguez involuntária é a derivada de caso fortuito ou força maior. Caso fortuito é atribuído a evento da natureza (por exemplo, o agente escorrega e cai dentro de um barril de cachaça), enquanto força maior é assim considerada o evento produzido pelo ser humano (casos de coação moral irresistível). Para efeitos penais, em razão de ficção jurídica, somente a embriaguez involuntária (acidental) e completa exclui a imputabilidade. Em outras palavras, caso a embriaguez involuntária seja incompleta, em virtude da qual o agente tinha, ainda que minimamente, alguma capacidade de, ao tempo da ação ou omissão, entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, conforme previsto no artigo 28, II, parágrafo 2º, do Código Penal, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços.
Já a embriaguez patológica é doença mental e, portanto encontra-se amparada pelo artigo 26, do Código Penal. Ao tratar desta modalidade, destaca Frederico Marques: “a embriaguez alcoólica pode exteriorizar-se também sob formas anômalas ou patológicas, como a embriaguez delirante, a ferocitasebriosa e outras espécies de caráter mórbido, como a psicose de Korsakoff e a paranoia alcoólica”.[3]
1.1.1. Embriaguez Voluntária
Embriaguez voluntária é a que não decorre de caso fortuito ou força maior, resulta da vontade livre e consciente de ingerir bebidas alcoólicas ou fazer uso de substâncias de efeitos análogos. Essa modalidade subdivide-se em voluntária em sentido estrito ou “intencional”[4] e culposa.
Trata-se de embriaguez intencional quando o sujeito ativo, volitivamente, ingere bebidas alcoólicas com o propósito de embriagar-se. É o exemplo de jovens que comemoram a aprovação no vestibular pretendendo, desde já, ficarem alcoolizados.
Há, por outro lado, a embriaguez culposa em que o sujeito ativo, sem observar seu dever de cuidado necessário, em razão de imprudência ou negligência, realiza a ingestão de bebida alcoólica em quantidade suficiente para deixá-lo em estado de embriaguez, alcoolizado. O agente não pretendia embriagar-se.
Em ambas as modalidades de embriaguez, ainda que no momento da ação ou omissão o agente se encontre totalmente desprovido da capacidade de entendimento e autodeterminação será responsabilizado por sua conduta de que advenha um resultado típico. Dispõe o artigo 28, inciso II, do Código Penal, “a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos” não exclui a imputabilidade penal.
Para grande parte da doutrina penalista, a permissão da punição do indivíduo em tais circunstâncias decorre da adoção da teoria da actio libera in causa.
De acordo com Narcélio de Queiroz, entende-se por actio libera in causa:
os casos em que alguém, no estado de não-imputabilidade, é causador, por ação ou omissão, de algum resultado punível, tendo se colocado naquele estado, ou propositadamente, com a intenção de produzir o resultado lesivo (embriaguez preordenada), ou sem essa intenção, mas tendo previsto a possibilidade do resultado, ou, ainda, quando a podia ou devia prever.[5]
O momento destinado à verificação da supressão das capacidades é o da conduta delitiva. Em situações de embriaguez voluntária completa, o agente que praticou a conduta delituosa é imputável e será responsabilizado criminalmente, a título de dolo ou culpa, devendo arcar com as consequências jurídicas do fato. Isso porque, o agente atuou livremente na causa (em instante anterior), ou seja, no ato de ingerir bebida alcoólica.[6]
Nesse sentido, com o fim de evitar a responsabilidade penal objetiva, obviamente, é necessário que no momento da embriaguez, quando o agente ingeria a substância, o resultado posteriormente produzido seja, ao menos, previsível. No dizer de Hungria, no contexto de embriaguez voluntária em sentido estrito ou culposa, o sujeito “responderá por crime doloso ou culposo, segundo o indicarem as circunstâncias, ou seja, segundo a direção ou atitude da residual vontade que existe no estado de ebriedade”.[7]
Avulta pertinente dispor sobre a excepcional modalidade de embriaguez voluntária: a preordenada. Nesta, o agente embriaga-se com o intuito de reduzir seus freios inibitórios e praticar uma infração penal, portanto visando desde já a obtenção de um resultado lesivo, aplicando-se perfeitamente, também, a teoria da actio libera in causa a fim de responsabilização.[8] Cabe salientar, apenas a título de curiosidade, a incidência, na referida hipótese, da agravante genérica que prescreve o artigo 61, inciso II, alínea l, do Código Penal. Em suma, o agente se coloca, simultaneamente, na posição de autor mediato e imediato do crime visado.
1.1.2. Crítica Doutrinária Acerca da Aplicação da Teoria da Actio Libera in Causa à Embriaguez Voluntária em Sentido Estrito e Culposa
Cumpre registrar crítica consistente, por parte de alguns penalistas brasileiros, com relação à aplicação da teoria da actio libera in causa como justificação para a responsabilização penal do agente em casos de embriaguez voluntária intencional ou culposa, no direito penal.
Com célebre entendimento, ensina o professor Federico Marques:
os crimes praticados em estado de embriaguez voluntária ou culposa, diz Aníbal Bruno, ‘não devem ser incluídos na teoria da actio libera in causa’, pois a punibilidade dos mesmos se assenta em outras bases”. Nesse diapasão, “se o Código considera responsável o indivíduo que comete um delito em estado de embriaguez, existe a imputabilidade ex vi legis; e isto não se harmoniza com a actio libera in causa, em que a imputabilidade existe no antecedente do ato, e não por ocasião em que este é praticado.[9]
Assim, relativamente à embriaguez intencional ou culposa, em que propriamente a imputabilidade não se encontra excluída, sequer diminuída, continua o nobre penalista, “não se pode falar em actiones liberae in causa, como notou Crespi, uma vez que nestas, também per definitionem, falta a imputabilidade no momento da prática do crime”.[10]
Questionando a utilização da teoria da actio libera in causa para a análise da imputabilidade na embriaguez voluntária em sentido estrito e culposa, leciona Frederico Marques que o artigo 28, inciso II, do Código Penal brasileiro, utilizando-se de uma ficção jurídica, criou uma forma de imputabilidade legal: “é porque o texto diz que o indivíduo embriagado não tem sua imputabilidade excluída, quando a embriaguez é voluntária ou culposa, que ele responde pelo ato praticado nesse estado de transtorno mental transitório”.[11]
1.2. TÊNUE LIMITE ENTRE O DOLO EVENTUAL E A CULPA CONSCIENTE
A distinção entre culpa consciente e dolo eventual encontra-se em terreno, por demais, movediço. Na teoria (no campo do direito penal) a diferenciação é mais plausível e até fácil, contudo na prática, sobretudo, no campo processual, torna-se extremamente difícil a constatação por um ou outro elemento subjetivo do tipo.
De acordo com Nélson Hungria, na situação de dolo eventual o sujeito ativo “presta anuência ao advento” do resultado lesivo, “preferindo arriscar-se a produzi-lo, ao invés de renunciar à ação”, por outro lado, na culpa consciente o sujeito ativo “repele, embora inconsideradamente, a hipótese de superveniência do resultado, e empreende a ação na esperança ou persuasão de que este não ocorrerá”.[12]
Interpretando precisamente Juarez Tavares, o professor Nucci leciona:
enquanto no dolo eventual o agente refletiu e está consciente acerca da possibilidade de causar o resultado típico, embora não o deseje diretamente, na culpa consciente, o agente está, igualmente, ciente da possibilidade de provocar o resultado típico, embora não se coloque de acordo com sua realização, esperando poder evitá-lo, bem como confiando na sua atuação para isso.[13]
Nesse diapasão, teoricamente, a linha divisória se apresenta pela aceitação ou rejeição da possibilidade de realização do evento danoso. A distinção, portanto, “deve processar-se no plano volitivo e não apenas no plano intelectivo do agente”.[14] Na culpa consciente, o resultado não é querido e sequer o agente assume o risco, tolera ou age indiferentemente a sua produção, ao contrário, ele entende que possui destreza suficiente para evitar o acontecimento do evento danoso. Já, no dolo eventual o agente pratica uma conduta visando determinado fim, lícito ou ilícito, vislumbrando, por meio da previsão, a possibilidade de atingir determinado resultado típico, que não deseja, porém assume (admite, aceita) o risco de produzi-lo ou, simplesmente, pouco se importa com sua efetiva materialização.
Cabe pontuar, “assumir o risco”, requisito disposto no artigo 18, inciso I, segunda parte, do Código Penal ao tratar do dolo eventual, é algo além de simplesmente ter consciência de correr o risco, é mais, seria anuir ou pouco se importar – previamente – com o resultado danoso, seria uma ratificação prévia, caso este aconteça efetivamente.
O dolo eventual é a forma menos grave de dolo, enquanto que a culpa consciente se manifesta como a forma mais grave de culpa[15], daí extrai-se que muito se aproximam. A culpa com representação é um “plus”, uma vez que marcada pela efetiva previsão do perigo introduzido pela conduta, sendo tal previsão (ato de prever) desnecessária para a configuração do tipo culposo.
Em consonância com o exposto, vale citar Aníbal Bruno:
A forma típica da culpa é a culpa inconsciente, em que o resultado previsível não é previsto pelo agente. É a culpa sem previsão. Ao lado desta, construiu a doutrina a chamada culpa consciente, em que o resultado é previsto pelo agente, embora este sinceramente espere que ele não aconteça. A culpa com previsão representa um passo a mais de culpa simples para o dolo. É uma linha quase imponderável que a delimita do dolo eventual. Neste, o agente não quer o resultado, mas aceita o risco de produzi-lo. Na culpa com previsão, nem esta aceitação do risco existe, o agente espera que o evento não ocorra.[16]
É notório que diante de fato concreto, no campo do direito processual, a distinção entre ambos os elementos subjetivos do tipo configura um problema de prova. Faz-se extremamente difícil a constatação se o sujeito ativo assumiu o risco e a ele era indiferente ou se obrou, tão somente, sem o dever de cuidado.
“Esperar que se consiga prova daquilo que ocorreu na cabeça do autor da infração penal (assumiu o risco ou esperava que sinceramente não acontecesse?), exatamente no momento em que esta se deu”[17], é quase impossível. Por isso, impende ressaltar jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que para configuração do dolo eventual é desnecessário o consentimento explícito do agente, bem como sua concordância reflexiva em relação às circunstâncias do evento; deve ser extraído das circunstâncias do evento, e não da mente do autor, eis que não exige uma declaração expressa do agente. (HC 91.159, julgado em 02.09.2008, DJU 24.10.2008)
Assim, resta evidente que a configuração do dolo eventual é pautada pela análise das circunstâncias do fato concreto. “E se elas não conduzem seguramente à conclusão de que houve comportamento doloso”[18], se fará imperioso que o julgador decida pela existência de culpa, pautado pelo princípio in dubio pro reo, consectário do primado favor libertatis, fonte do Estado Democrático de Direito.
Assumem relevo especial, nessa matéria, os delitos de trânsito. O presente estudo objetiva a análise da aplicação prática do dolo eventual e da culpa consciente, na conduta do agente que embriagado e conduzindo veículo automotor dá causa a homicídio no trânsito (tema a ser desenvolvido no tópico seguinte).
1.3. DOLO EVENTUAL, CULPA CONSCIENTE E O HOMICÍDIO CULPOSO QUALIFICADO NO TRÂNSITO, EM RAZÃO DA EMBRIAGUEZ
Atualmente, há uma tendência e apesar de divergências, é possível observar que parte da jurisprudência e doutrina nacional tem adotado posição certamente questionável relativamente ao homicídio qualificado na direção de veículo automotor.[19] Tem-se considerado com muita facilidade a atuação do agente marcada pelo elemento subjetivo dolo eventual e, não pela culpa consciente.
Justifica o professor Nucci, “as inúmeras campanhas realizadas, demonstrando o perigo da direção perigosa e manifestamente ousada, são suficientes para esclarecer a vedação legal de certas condutas”[20], tais como conduzir veículo sob estado de embriaguez ou com excesso de velocidade. Assim, “se, apesar disso, continua o condutor do veículo a agir dessa forma nitidamente arriscada, estará demonstrando seu desapego à incolumidade alheia, podendo responder por delito doloso”.[21] Tendo isto em vista, observar-se-ia um intenso grau de reprovabilidade social relacionada à prática das referidas condutas.
O desvalor da ação é indiscutível, afinal é evidente a toda a população brasileira a violência recorrente no trânsito brasileiro de que resulta morte. No entanto, não se pode olvidar que grande parte da indignação social atende a pressões midiáticas. A imprensa, muitas vezes sem qualquer embasamento, clama por penas mais severas e pelo fim do que seria a “impunidade” (com penas inferiores ao que se espera). Há notória exposição sensacionalista dos meios de comunicação diante de casos concretos gerando repercussão e reações tendenciosamente repressivas.
Realmente, assusta os números exibidos no Mapa da Violência do Instituto Avante Brasil:
“O levantamento, inédito, teve por base o relatório “Global Status Report on Road Safety 2013”, da Organização das Nações Unidas, que mostra o número de mortes de 183 países. Em relação aos que não disponibilizaram dados recentes, o total de mortos foi estimado por meio de uma análise regressiva, o que viabilizou com confiança a comparação entre eles.
Em termos absolutos, o Brasil é 4º país do mundo com maior número de mortes no trânsito, ficando atrás somente da China, Índia e Nigéria”.
“Segundo o Datasus, em 2010, foram registradas 42.844 mortes no trânsito do Brasil. Esse número, atualizado em 2011, chegou a 43.256 mortes (o ranking, no entanto, foi feito com base nos números de 2010 de todos os países). Em 2014, de acordo com projeção feita pelo Instituto Avante Brasil, o número de mortes no trânsito estimado é de 48.349”.
Contudo, impende ressaltar uma análise crítica preciosa sobre o tema feita pelo professor Israel Jorio, em seu artigo “O fetiche do dolo eventual”:
A mídia, que vive uma relação de simbiose com a violência, narra que a sociedade sangra, fomenta o pânico e induz à revolta. Sempre existiram a manipulação da verdade e o direcionamento tendencioso da notícia, postos a serviço de um lucrativo sensacionalismo. Atualmente, porém, desapareceu qualquer resquício de timidez: todas as notícias sobre crimes são levianamente comentadas. Não bastassem os falsos ‘especialistas’, com seu mantra punitivo, temos os ‘âncoras’ e as apresentadoras de programas de culinária e de futilidades do mundo artístico que julgam e condenam sumariamente, arriscando-se, inclusive, a usar expressões técnicas que lhes são absolutamente estranhas. (...) É fácil ver que se desenvolve, paralelamente à crescente demonização do condutor embriagado, um fetiche pelo dolo eventual. A partir disso, tudo é dolo eventual. Tudo importa em assumir o risco. Atualmente, parece difícil criar exemplos críveis de homicídio culposo na direção de automóvel. Beber, correr, ultrapassar, avançar sinal... Tudo isso é assumir o risco de matar. Mas só de matar? Ninguém tem medo de morrer? Será que todo condutor onseqüências está efetivamente preparado para assumir seu pacote de desgraças? Não apenas a morte do outro, mas a sua própria; não apenas a morte do desconhecido, mas a do seu próprio filho ou cônjuge, que o acompanha. Isso, além das perdas financeiras e dos diversos aborrecimentos policiais e judiciais que serão enfrentados. Esse condutor, pior que um psicopata, é um psicopata suicida. E seria ele tão estranho a nós? Não são nossos amigos ou nossos parentes? Não somos nós mesmos? O que se tem, mais que um pensamento temerário, por embasar as decisões condenatórias em presunções absolutas, é uma convicção mentirosa. Se não nos identificamos com o estuprador, o latrocida, o corrupto, certamente não devemos nos esquecer de que somos, quase todos, condutores. Será que todos condutores exemplares?.[22]
Continua o professor:
a leviana ‘popularização’ do dolo eventual é fruto de um misto de malícia, ignorância e hipocrisia. Malícia da mídia, ignorância do destinatário e hipocrisia de todos os que se arvoram paladinos da segurança. E o discurso é apelativo. Difícil combatê-lo com técnica e teoria. Que ele ganhe espaço entre os leigos, parece ser inevitável. Mas como justificar seu crescente prestígio entre os profissionais e estudiosos do Direito?.[23]
Por esse contexto delineado, já ponderava o mestre Lenio Streck, a figura do dolo eventual “não deve ser utilizada como pedagogia ou remédio contra a violência no trânsito. (...) Não se resolverá o problema do trânsito mediante o ‘enquadramento’ dos infratores no dolo eventual”.[24] Deste modo, é imperiosa a não conclusão automática pela provável existência de dolo eventual tão somente porque o sujeito ativo se encontrava embriagado no momento da infração penal, submetendo o acusado invariavelmente ao crivo do Tribunal do Júri.
Nos crimes de trânsito é regra a ocorrência de culpa em sentido estrito, devendo o dolo ser minuciosamente comprovado por meio de provas que demonstrem a flagrante indiferença, ultrapassando excessivamente os limites da normalidade, à vista do bem jurídico ofendido. Afinal, extrai-se do Código de Trânsito Brasileiro, artigo 302, parágrafo 2º, a punição pelo homicídio especificamente se decorrente de culpa, pelo contrário sendo o homicídio doloso, ainda que praticado no trânsito, incorrerá o agente nas penas do artigo 121, do Código Penal.
Isto posto, vale salientar constatação de Bitencourt:
os tribunais pátrios não têm realizado uma reflexão adequada, decidindo quase que mecanicamente: se a embriaguez não é acidental, pune-se o agente. Se houve ou não previsibilidade do fato no estágio anterior à embriaguez não tem sido objeto de análise. É muito fácil: o Código diz que a embriaguez voluntária ou culposa não isenta de pena, ponto final. O moderno Direito Penal há muito está a exigir uma nova e profunda reflexão sobre esse aspecto, que os nossos tribunais não têm realizado.[25]
Deste modo, é fundamental que o julgador se apegue ao requisito do “consentimento”, “aquiescência” ou até “total indiferença”, e não ao requisito “assumir o risco”, isso porque aquele é necessário à configuração da ficção jurídica do dolo eventual sendo o que o diferencia da culpa consciente. Nesse sentido, o que preocupa é a verificação da existência de muitos julgados acatando a tese acusatória que, na grande maioria, baseia-se na máxima de que aqueles que conduzem veículo sob o estado de embriaguez não se importam se vierem a ocasionar a morte de outras pessoas. Há uma presunção de dolo eventual.
Questão relevante se torna a decisão de pronúncia do acusado pelos magistrados ante a ocorrência de homicídio no trânsito quando o agente estava embriagado. Não se discute que a constatação pela existência de dolo eventual ou culpa consciente, quando efetivamente há dúvida concreta entre ambos e não mera presunção pelo dolo eventual, exige amplo lastro probatório cabendo ao Júri à definição por um ou outro.
Assim, impende reafirmar, conforme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
a pronúncia do réu, em atenção ao brocardo in dubio pro societate, exige a presença de contexto que possa gerar dúvida a respeito da existência de dolo eventual.Inexistente qualquer elemento mínimo a apontar para a prática de homicídio, em acidente de trânsito, na modalidade dolo eventual,impõe-se a desclassificação da conduta para a forma culposa”. (Resp 705416 / SC RECURSO ESPECIAL 2004/0155660-5 Relator(a) Ministro PAULO MEDINA (1121) Órgão Julgador T6 – SEXTA TURMA Data do Julgamento 23/05/2006 Data da Publicação/Fonte DJ 20/08/2007 p. 311)
O problema é que em delitos de trânsito fatais, tem-se atribuído ao dolo eventual conceito por demais elástico. Embriagar-se e, por conseguinte, conduzir veículo ocasionando homicídio indicaria de antemão a previsão do risco pelo agente e sua indiferença com a vida de outra pessoa ou até com sua própria vida: uma fórmula absolutamente equivocada. Os julgadores o utilizam como forma de compensar uma legislação inadequada e insuficiente, no que tange a punição, visando o atendimento das pressões da mídia e sociais.
Nesse contexto, cumpre lembrar que no ano de 2014, foi acrescentado pela Lei 12971, o parágrafo segundo, no artigo 302 (homicídio culposo), do Código de Trânsito Brasileiro, alterando o tipo de pena privativa de liberdade de detenção para reclusão, de 2 a 4 anos. Contudo, ainda é possível a concessão de medidas alternativas com fim de evitar a efetiva execução do encarceramento.
Por outro lado, reconhecendo-se a probabilidade real de homicídio doloso (no caso, dolo eventual) a ser decidido pelo Conselho de Sentença – e não pelo magistrado, a pena é de 6 a 20 anos de reclusão, artigo 121, do Código Penal. Pena mais severa e que atenderia à hipérbole do “clamor social”. Por isso, a artimanha da utilização do dolo eventual, pautado por um conceito desvirtuado da teoria do consentimento adotada pelo direito brasileiro, visando sanar deficiência da legislação.
Na opinião de Ádamo Brasil Dias, os magistrados estariam acatando um conceito errôneo de dolo eventual na busca, além de uma tentativa de penalização mais gravosa, de um meio de eximição de responsabilidade. Deste modo, “...ao se deparar com um fato de maior repercussão, normalmente agravada pela mídia, o magistrado invariavelmente teria de ser cauteloso ao entender existir culpa consciente e não dolo eventual”.[26] Ocorre que, indubitavelmente, deveria acontecer o contrário. Nesse diapasão, continua o nobre advogado, constatando o juízo “haver culpa consciente, acabaria por ser o responsável pela sentença com minguada condenação; por outro lado, ao entender caracterizado o dolo eventual, caberia a tribunal do júri a condenação”.[27]
Obviamente, resta evidente a dificuldade que teria a acusação em provar a presença do dolo eventual, em seu conceito correto desenvolvido na teoria do crime, uma vez visando à punição mais severa do agente. Afinal, como demonstrar que o sujeito ativo, ainda que em período anterior ou durante o estado de embriaguez, era indiferente ao risco de sua própria morte ou a de familiares que o acompanhavam no veículo? De outra maneira, estaria o agente consentindo, em sua mente, para o próprio suicídio.
Não se pode olvidar, logicamente, da possibilidade bastante excepcional de verificação de dolo eventual em homicídio no trânsito estando o sujeito ativo embriagado, ainda que notória a dificuldade em provar o referido. Como seria o caso de situações em que se atinge pedestre ou ciclista que se encontra trafegando em via pública visivelmente com alta movimentação, agindo o motorista de automóvel, sem qualquer preocupação e imprimindo grande velocidade no veículo, com indiferença à possível vítima. Entretanto, relativamente à colisão entre automóveis, caminhões, ônibus, por meio da qual quaisquer dos condutores ou seus acompanhantes estariam sujeitos a riscos, praticamente impossível admitir ter o agente tolerado o evento danoso previsto.
Os resultados pormenorizados de uma colisão no trânsito, em geral, são imprevisíveis ao homem comum. O agente não tem previsão exata das consequências de sua conduta na maioria dos casos que envolvam sinistros entre veículos, isto é, quais os danos, as vítimas... Sendo que o próprio sujeito ou seu filho, sentado no interior do automóvel, correm risco de morte. Como entender o julgador, diante das circunstâncias delineadas, que o sujeito poderia ser indiferente aos resultados decorrentes da sua ação imprudente de conduzir veículo alcoolizado?
É natural: os condutores que ingerem bebida alcoólica normalmente apresentam exagerada confiança, em outras palavras, confiam “em sua impressão equivocada de serem detentores de habilidade suficiente para conduzir o veículo em segurança”[28], em decorrência não admitem sequer a perda de controle de seu próprio automóvel, por exemplo. “Mesmo que a hipótese de haver dolo eventual na conduta do motorista embriagado seja uma possibilidade, não se pode entender desta forma automaticamente”.[29]
Conclui Ádamo Brasil:
Escancaradamente, ao invés de mudar a própria lei penal, por intermédio do Poder Legiferante, que seria o caminho adequado, a Justiça (sobretudo de primeira instância), satisfazendo ‘ditos’ interesses sociais está suprindo a carência da legislação com uma aplicação errônea do Direito.[30]
Dessa forma, da embriaguez ao volante extrai-se, à primeira vista, nada além da imprudência. Como exposto no capítulo anterior, responde o agente a título de culpa, independente da intensidade da violação ao dever de cuidado. Configurando a embriaguez, diante dos anseios sociais, grave grau de culpa a pena deve ser elevada pelo julgador, sempre dentro dos padrões legais definidos para o homicídio culposo no trânsito – correta tipificação jurídica.
1.4. DECISÕES DOS ANOS DE 2010 E 2012 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ACERCA DO TEMA
Os julgamentos realizados pelo Supremo Tribunal Federal. Conforme o julgado do ano de 2010, a relatora-presidente Ministra Cármen Lúcia prolatou voto, que denegava a ordem de Habeas Corpus, logo após o Ministro Luiz Fux pediu vista, revelando extrema preocupação com certa banalização dos julgamentos de homicídio no trânsito pelo Júri, remetendo a julgados da lavra do Ministro Marco Aurélio no sentido do esvaziamento do artigo 302, parágrafo 2º, do Código de Trânsito Brasileiro, “que prevê o homicídio, e o faz, inclusive, considerada a imprudência de se dirigir embriagado”.[31]
In casu, o paciente teria na condução de veículo automotor, e sob o estado de embriaguez, atropelado a vítima que veio a falecer; em seguida foi denunciado como incurso nas penas do homicídio qualificado (artigo 121, parágrafo segundo, inciso IV combinado com o artigo 18, inciso I, segunda parte do Código Penal).
De acordo com o Ministro Luiz Fux, se omitida indevidamente a classificação do homicídio culposo para o doloso, na direção de veículo automotor, “importa em graves consequências para a defesa, deslocando o processo ao Júri, cujo julgamento é sabidamente atécnico e, às vezes, até mesmo apaixonado”[32], a depender do local em que ocorra. Essas implicações potencializam-se observada as evidentes diferenças de pena.
O Senhor Ministro cita, na fundamentação de seu voto, alguns doutrinadores sobre a aplicação da teoria da actio libera in causa, a conduta culposa e o homicídio no trânsito, em razão de embriaguez ao volante.
Citado no acórdão, Guilherme de Souza Nucci dispõe:
A teoria da actio libera in causa: com base no princípio de que a ‘causa da causa também é a causa do que foi causado’, leva-se em consideração que, no momento de se embriagar, o agente pode ter agido dolosa ou culposamente, projetando-se esse elemento subjetivo para o instante da conduta criminosa. Assim, quando o indivíduo, resolvendo encorajar-se para cometer um delito qualquer, ingere substância entorpecente para colocar-se, propositadamente, em situação de inimputabilidade, deve responder pelo que fez dolosamente – afinal, o elemento subjetivo estava presente no ato de ingerir a bebida ou a droga. Por outro lado, quando o agente, sabendo que irá dirigir um veículo, por exemplo, bebe antes de fazê-lo, precipita a sua imprudência para o momento em que atropelar e matar um passante. Responderá por homicídio culposo, pois o elemento subjetivo do crime projeta-se no momento de ingestão da bebida para o instante do delito. Desenvolve a Exposição de Motivos da Parte Geral do Código Penal de 1940 a seguinte concepção: ‘Ao resolver o problema da embriaguez (pelo álcool ou substância de efeitos análogos), do ponto de vista da responsabilidade penal, o projeto aceitou em toda a sua plenitude a teoria da actio libera in causa ad libertatemrelata, que, modernamente, não se limita ao estado de inconsciência preordenado, mas se estende a todos os casos em que o agente se deixou arrastar ao estado de inconsciência’(nessa parte não alterada pela atual Exposição de Motivos). Com a devida vênia, nem todos os casos em que o agente ‘deixou-se arrastar’ ao estado de inconsciência podem configurar uma hipótese de ‘dolo ou culpa’ a ser arremessada para o momento da conduta delituosa. Há pessoas que bebem por beber, sem a menor previsibilidade de que cometeriam crimes no estado de embriaguez completa, de forma que não é cabível a aplicação da teoria da actio libera in causa nesses casos. De outra parte, se suprimirmos a responsabilidade penal dos agentes que, embriagados totalmente, matam, roubam ou estupram alguém, estaremos alargando, indevidamente, a impunidade, privilegiando o injusto diante do justo. No prisma de que a teoria da actio libera in causa (‘ação livre na sua origem’) somente é cabível nos delitos preordenados (em se tratando de dolo) ou com flagrante imprudência no momento de beber estão os magistérios de Frederico Marques, Magalhães Noronha, Jair Leonardo Lopes, Jürgen Baumann,Paulo José da Costa Júnior, Munhoz Neto, entre outros, comos quais concordamos plenamente. Destacamos a responsabilidade penal objetiva que ainda impregna o contexto da embriaguez voluntária ou culposa, tratando-ascomo se fossem iguais à preordenada. Se é verdade que em relação a esta o Código prevê uma agravação (art. 56, II, c) também é certo que considera todas num mesmo plano para negar a isenção de pena. O anteprojeto Hungria e os modelos em que se inspirava, resolviam muito melhor o assunto. O art.31 e §§ 1º e 2º estabeleciam: ‘A embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, ainda quando completa, não exclui a responsabilidade, salvo quando fortuita ou involuntária. § 1º. Se a embriaguez foi intencionalmente procurada para a prática do crime, o agente é punível a título de dolo; § 2º. Se, embora não preordenada, a embriaguez é voluntária e completa e o agente previu e podia prever que, em tal estado, poderia vir a cometer crime, a pena é aplicável a título de culpa, se a este título é punível o fato. [...].[33]
Ainda, citando lição de Rogério Greco e Zaffaroni, respectivamente, importa salientar as seguintes passagens: a) “... querendo ou não se embriagar, mas sem a finalidade de praticar qualquer infração penal, se o agente vier a causar um resultado lesivo, este lhe poderá ser atribuído, geralmente, a título de culpa”.[34] B) “... aquele que se coloca em estado ou situação de inculpabilidade viola um dever de cuidado, está preenchendo os requisitos da tipicidade culposa, e não há necessidade de recorrer-se à teoria da actio libera in causa”.
Pelo exposto, entendeu o nobre julgador que a produção de um resultado típico danoso ocasionado pela violação de um dever de cuidado objetivo apresenta as condições necessárias à configuração do tipo culposo.[35] Ademais, cita ensinamentos de Fragoso, no sentido de que a rigor “a expressão ‘assumir o risco’ é imprecisa, para distinguir o dolo eventual da culpa consciente e deve ser interpretada em consonância com a teoria do consentimento”.[36]
Desta maneira, o Supremo Tribunal Federal, por maioria dos votos, concedeu a ordem para desclassificar a conduta imputada, a título doloso, para homicídio culposo na direção de veículo automotor.
No segundo julgado do ano de 2012, HC 109/210 RJ, de acordo com o voto do ministro relator, Marco Aurélio, “transmudar os delitos de trânsito em crimes dolosos contra a vida revela esforço jurídico conflitante com a Teoria Geral do Crime, na medida em que se afasta do direito penal da culpabilidade.
CONCLUSÃO
Dolo eventual e culpa consciente conceitualmente apresentam conteúdos bastante próximos, com exceção no que se refere ao elemento volitivo ou “aspecto do querer”. Enquanto no dolo eventual o agente consente, conforma-se ou é totalmente indiferente ao resultado, na culpa consciente, apesar da previsão do risco da ocorrência do evento danoso, o agente confia levianamente em sua não realização, em razão de uma supervalorização da própria capacidade de dominar a situação.
Resta evidente a difícil constatação pelo dolo eventual nos crimes de que resulta homicídio no trânsito, em virtude tão somente de estar o condutor sob o estado de embriaguez. Verifica-se na jurisprudência certa quantidade de julgados no sentido de se atribuir a tais crimes uma presunção pela existência do dolo eventual, o que evidentemente revela uma deturpação do real entendimento de dolo e culpa.
A embriaguez seguida da condução de automóvel demonstra, a princípio, grande imprudência do motorista, sendo uma conduta evidentemente reprovável. Entretanto, não é possível extrair apenas dessa atitude a ideia de que o agente é indiferente ou se conforma com a ocorrência de resultado lesivo, ainda que previsto.
Sobre o exposto, observa Ádamo Brasil:
“Isso remete à reflexão sobre as intenções do motorista que se embriaga. É absurdo considerar mais razoável a presença de indiferença do condutor à vida humana do que a presença de um sentimento de supervalorização da própria habilidade, desconsiderando os riscos de um possível acidente de trânsito que resulte em uma morte”.[37]
Os resultados pormenorizados de uma colisão no trânsito, em geral, são imprevisíveis ao homem comum. O agente não tem previsão exata das consequências de sua conduta na maioria dos casos que envolvam sinistros entre veículos. Conclui-se, nesse sentido, pela extrema dificuldade de comprovação do dolo eventual ante a casos concretos, isso porque como demonstrar que o sujeito ativo, ainda que em período anterior ou durante o estado de embriaguez, era indiferente ao risco de sua própria morte ou a de familiares que o acompanhavam no veículo?
O julgador, por óbvio, não consegue saber com exatidão o que se passava na mente do sujeito ativo quando da conduta, devendo, portanto, pautar-se pela análise das circunstâncias de fato. Isto posto, em muitas das situações de delitos de trânsito fatais não cabe a punição a título de dolo eventual, por mera presunção do mesmo. Afinal seria entender que o agente estaria consentindo, em sua mente, para o próprio suicídio ou a morte de amigos que o acompanhavam no veículo. O Direito, sob um aspecto geral, pontua-se pela normalidade e é notório que os membros da sociedade como um todo se preocupa com os amigos e os riscos de sua morte.
No decorrer do trabalho foram apontadas algumas razões para a utilização indevida do dolo eventual por alguns magistrados, visando à punição mais severa do agente deslocando o crime de homicídio na direção de veículo automotor, disposto no Código de Trânsito Brasileiro, para o crime de homicídio, do Código Penal.
Nesse contexto, se o objetivo é uma punição mais rigorosa, atendendo aos anseios sociais e da imprensa, deveria se dá por meio do poder legislativo, com a aprovação de lei elevando a pena em abstrato para o homicídio no trânsito, decorrente de algumas condutas altamente reprováveis de motoristas, como é o caso da embriaguez ao volante. Assim, jamais seria a opção correta deturpar o conceito de dolo eventual, desenvolvido ao longo dos anos por penalistas mundialmente reconhecidos e adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro.
REFERÊNCIAS
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[1] Cf. José Frederico MARQUES, Tratado de Direito Penal, 252.
[2] Eduardo Silveira Melo RODRIGUES. A embriaguez e o crime, 9.
[3] José Frederico MARQUES, Tratado de direito penal – da infração penal, 216.
[4] José Frederico MARQUES, Tratado de direito penal – da infração penal, 210.
[5] Narcélio QUEIROZ, Teoria da “actio libera in causa” e outras teses, 37.
[6] Cf. Magalhães NORONHA, Direito penal – introdução e parte geral, 146.
[7] Nélson HUNGRIA, Comentários ao Código Penal, 529.
[8] Cf. Rogério GRECO, Curso de direito penal – parte geral, 405.
[9] José Frederico MARQUES, Tratado de direito penal – da infração penal, 212.
[10] José Frederico MARQUES, Tratado de direito penal – da infração penal, 212.
[11] Idem, ibidem, 212.
[12] Nélson HUNGRIA, Comentários ao Código Penal, 288.
[13] Guilherme de Souza NUCCI, Manual de direito penal – parte geral, 235.
[14] Juarez Tavares, Teoria do injusto penal, 284.
[15] Cf. José Frederico MARQUES, Tratado de direito penal – da infração penal, 243.
[16] Aníbal BRUNO, Direito Penal- Parte Geral, 92-93.
[17] Guilherme de Souza NUCCI, Manual de direito penal – parte geral, 235.
[18] José Frederico MARQUES, Tratado de direito penal – da infração penal, 243.
[19] Cf. Guilherme de Souza NUCCI, Manual de direito penal – parte geral, 228.
[20] Idem, ibidem, 228.
[21] Idem, ibidem, 228.
[22] Israel Domingos JORIO, O fetiche do dolo eventual, Boletim do IBCCrim, nº 230, janeiro de 2012, 10-11.
[23] Idem, ibidem.
[24] Lenio Luiz STRECK, Símbolos e rituais, 155.
[25] Cezar Roberto BITENCOURT, Código Penal Comentado,153.
[26] Ádamo Brasil DIAS, Embriaguez e homicídio no trânsito: dolo eventual ou culpa consciente? , http://jus.com.br/revista/autor/adamo-brasil-dias#ixzz1vdz0fWnA.
[27] Idem, ibidem.
[28] Ádamo Brasil DIAS, Embriaguez e homicídio no trânsito: dolo eventual ou culpa consciente? , http://jus.com.br/revista/autor/adamo-brasil-dias#ixzz1vdz0fWnA.
[29] Ádamo Brasil DIAS, Embriaguez e homicídio no trânsito: dolo eventual ou culpa consciente? , http://jus.com.br/revista/autor/adamo-brasil-dias#ixzz1vdz0fWnA.
[30] Idem, ibidem.
[31] Habeas Corpus 107.801 / SÃO PAULO, 16.
[32] Idem, 21.
[33] Guilherme do Souza NUCCI, Código Penal Comentado, 243.
[34]Rogério GRECO, Curso de Direito Penal - parte geral, 455.
[35] Cf. Habeas Corpus 107.801 / SÃO PAULO, 24.
[36] Heleno Cláudio FRAGOSO, Lições de Direito Penal – parte geral, 173.
[37] Ádamo Brasil DIAS, Embriaguez e homicídio no trânsito: dolo eventual ou culpa consciente? , http://jus.com.br/revista/autor/adamo-brasil-dias#ixzz1vdz0fWnA.
Advogada. Graduada na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás. Pós-graduanda em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, Marcela Batista. Teoria da "actio libera in causa", dolo eventual, culpa consciente e o homicídio na direção de veículo automotor, em razão de embriaguez alcoólica ao volante Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 fev 2016, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45974/teoria-da-quot-actio-libera-in-causa-quot-dolo-eventual-culpa-consciente-e-o-homicidio-na-direcao-de-veiculo-automotor-em-razao-de-embriaguez-alcoolica-ao-volante. Acesso em: 23 dez 2024.
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