RESUMO: É possível verificar a existência de julgados no sentido de se atribuir um conceito elástico ao dolo eventual de modo a abarcar homicídio no trânsito quando apresenta determinadas circunstâncias concretas, é o exemplo de o condutor estar sob o estado de embriaguez. Essa tendência de alguns julgamentos é completamente equivocada, vez que infringem toda uma teoria desenvolvida do crime adotada pelo ordenamento jurídico e decorre provavelmente em razão de pressões sociais e midiática ante a violência no trânsito.
PALAVRAS-CHAVE: Dolo. Culpa. Embriaguez. Homicídio na direção de veículo automotor.
SUMÁRIO: Introdução. 1.Dolo eventual, culpa consciente e a conduta praticada na direção de veículo automotor de que resulta homicídio, em razão de embriaguez. 1.1. Tênue limite entre dolo eventual e culpa consciente.1.2. Dolo eventual, culpa consciente e o homicídio no trânsito em razão da embriaguez. 1.3. Decisões do Supremo Tribunal Federal acerca do tema. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
A responsabilidade penal, no ordenamento jurídico brasileiro, é subjetiva. O Código Penal pátrio não admitiu a responsabilidade penal objetiva, isso porque consagra plena e integralmente o princípio do nulum crimen sine culpa.[1] Desta forma, deve restar provada a existência do dolo ou da culpa em sentido estrito para a devida configuração do fato típico.
A aplicação do dolo eventual e da culpa consciente nos delitos de trânsito, sobretudo o homicídio na direção de veículo automotor, tem sido amplamente discutida pela doutrina e pelos tribunais pátrios. Entre os fatores responsáveis está o evidente aumento do número de infrações penais no trânsito e a grande pressão social e da imprensa brasileira.
No que concerne a algumas condutas, entre elas: a embriaguez ao volante, o excesso de velocidade e a participação em competição não autorizada, de que resultam homicídio, há uma tendência jurisprudencial e doutrinária no sentido de se atribuir o crime, a título de dolo eventual.
1. DOLO EVENTUAL, CULPA CONSCIENTE E A CONDUTA PRATICADA NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR DE QUE RESULTA HOMICÍDIO, EM RAZÃO DE EMBRIAGUEZ ALCOÓLICA
1.1. TÊNUE LIMITE ENTRE O DOLO EVENTUAL E A CULPA CONSCIENTE
Interpretando precisamente Juarez Tavares, o professor Nucci leciona:
“enquanto no dolo eventual o agente refletiu e está consciente acerca da possibilidade de causar o resultado típico, embora não o deseje diretamente, na culpa consciente, o agente está, igualmente, ciente da possibilidade de provocar o resultado típico, embora não se coloque de acordo com sua realização, esperando poder evitá-lo, bem como confiando na sua atuação para isso”.[2]
Nesse diapasão, teoricamente, a linha divisória se apresenta pela aceitação ou rejeição da possibilidade de realização do evento danoso. A distinção, portanto, “deve processar-se no plano volitivo e não apenas no plano intelectivo do agente”.[3] Na culpa consciente, o resultado não é querido e sequer o agente assume o risco, tolera ou age indiferentemente a sua produção, ao contrário, ele entende que possui destreza suficiente para evitar o acontecimento do evento danoso. Já, no dolo eventual o agente pratica uma conduta visando determinado fim, lícito ou ilícito, vislumbrando, por meio da previsão, a possibilidade de atingir determinado resultado típico, que não deseja, porém assume (admite, aceita) o risco de produzi-lo ou, simplesmente, pouco se importa com sua efetiva materialização.
Cabe pontuar, “assumir o risco”, requisito disposto no artigo 18, inciso I, segunda parte, do Código Penal ao tratar do dolo eventual, é algo além de simplesmente ter consciência de correr o risco, é mais, seria anuir ou pouco se importar – previamente – com o resultado danoso, seria uma ratificação prévia, caso este aconteça efetivamente.
O dolo eventual é a forma menos grave de dolo, enquanto que a culpa consciente se manifesta como a forma mais grave de culpa[4], daí extrai-se que muito se aproximam. A culpa com representação é um “plus”, uma vez que marcada pela efetiva previsão do perigo introduzido pela conduta, sendo tal previsão (ato de prever) desnecessária para a configuração do tipo culposo.
É notório que diante de fato concreto, “esperar que se consiga prova daquilo que ocorreu na cabeça do autor da infração penal (assumiu o risco ou esperava que sinceramente não acontecesse?), exatamente no momento em que esta se deu”[5], é quase impossível. Por isso, impende ressaltar jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que para configuração do dolo eventual é desnecessário o consentimento explícito do agente, bem como sua concordância reflexiva em relação às circunstâncias do evento; deve ser extraído das circunstâncias do evento, e não da mente do autor, eis que não exige uma declaração expressa do agente. (HC 91.159, julgado em 02.09.2008, DJU 24.10.2008)
1.2. DOLO EVENTUAL, CULPA CONSCIENTE E O HOMICÍDIO NO TRÂNSITO, EM RAZÃO DA EMBRIAGUEZ
Assusta os números exibidos no Mapa da Violência do Instituto Avante Brasil:
“Segundo o Datasus, em 2010, foram registradas 42.844 mortes no trânsito do Brasil. Esse número, atualizado em 2011, chegou a 43.256 mortes (o ranking, no entanto, foi feito com base nos números de 2010 de todos os países). Em 2014, de acordo com projeção feita pelo Instituto Avante Brasil, o número de mortes no trânsito estimado é de 48.349”.
Contudo, impende ressaltar uma análise crítica preciosa sobre o tema feita pelo professor Israel Jorio, em seu artigo “O fetiche do dolo eventual”:
“A mídia, que vive uma relação de simbiose com a violência, narra que a sociedade sangra, fomenta o pânico e induz à revolta. Sempre existiram a manipulação da verdade e o direcionamento tendencioso da notícia, postos a serviço de um lucrativo sensacionalismo. (...) É fácil ver que se desenvolve, paralelamente à crescente demonização do condutor embriagado, um fetiche pelo dolo eventual. A partir disso, tudo é dolo eventual. Tudo importa em assumir o risco. Atualmente, parece difícil criar exemplos críveis de homicídio culposo na direção de automóvel. Beber, correr, ultrapassar, avançar sinal... Tudo isso é assumir o risco de matar. Mas só de matar? Ninguém tem medo de morrer? Será que todo condutor onseqüências está efetivamente preparado para assumir seu pacote de desgraças? Não apenas a morte do outro, mas a sua própria; não apenas a morte do desconhecido, mas a do seu próprio filho ou cônjuge, que o acompanha. Isso, além das perdas financeiras e dos diversos aborrecimentos policiais e judiciais que serão enfrentados. Esse condutor, pior que um psicopata, é um psicopata suicida. E seria ele tão estranho a nós?”.[6]
Continua o professor:
“a leviana ‘popularização’ do dolo eventual é fruto de um misto de malícia, ignorância e hipocrisia. Malícia da mídia, ignorância do destinatário e hipocrisia de todos os que se arvoram paladinos da segurança. E o discurso é apelativo. Difícil combatê-lo com técnica e teoria.”.[7]
Por esse contexto delineado, já ponderava o mestre Lenio Streck, a figura do dolo eventual “não deve ser utilizada como pedagogia ou remédio contra a violência no trânsito. (...) Não se resolverá o problema do trânsito mediante o ‘enquadramento’ dos infratores no dolo eventual”.[8] Deste modo, é imperiosa a não conclusão automática pela provável existência de dolo eventual tão somente porque o sujeito ativo se encontrava embriagado no momento da infração penal, submetendo o acusado invariavelmente ao crivo do Tribunal do Júri.
Nos crimes de trânsito é regra a ocorrência de culpa em sentido estrito, devendo o dolo ser minuciosamente comprovado por meio de provas que demonstrem a flagrante indiferença, ultrapassando excessivamente os limites da normalidade, à vista do bem jurídico ofendido. Afinal, extrai-se do Código de Trânsito Brasileiro, artigo 302, parágrafo 2º, a punição pelo homicídio especificamente se decorrente de culpa, pelo contrário sendo o homicídio doloso, ainda que praticado no trânsito, incorrerá o agente nas penas do artigo 121, do Código Penal.
Isto posto, vale salientar constatação de Bitencourt:
“os tribunais pátrios não têm realizado uma reflexão adequada, decidindo quase que mecanicamente: se a embriaguez não é acidental, pune-se o agente. Se houve ou não previsibilidade do fato no estágio anterior à embriaguez não tem sido objeto de análise. É muito fácil: o Código diz que a embriaguez voluntária ou culposa não isenta de pena, ponto final. O moderno Direito Penal há muito está a exigir uma nova e profunda reflexão sobre esse aspecto, que os nossos tribunais não têm realizado”.[9]
Deste modo, é fundamental que o julgador se apegue ao requisito do “consentimento”, “aquiescência” ou até “total indiferença”, e não ao requisito “assumir o risco”, isso porque aquele é necessário à configuração da ficção jurídica do dolo eventual sendo o que o diferencia da culpa consciente.
Questão relevante se torna a decisão de pronúncia do acusado pelos magistrados ante a ocorrência de homicídio no trânsito quando o agente estava embriagado. Não se discute que a constatação pela existência de dolo eventual ou culpa consciente, quando efetivamente há dúvida concreta entre ambos e não mera presunção pelo dolo eventual, exige amplo lastro probatório cabendo ao Júri à definição por um ou outro.
O problema é que em delitos de trânsito fatais, tem-se atribuído ao dolo eventual conceito por demais elástico. Embriagar-se e, por conseguinte, conduzir veículo ocasionando homicídio indicaria de antemão a previsão do risco pelo agente e sua indiferença com a vida de outra pessoa ou até com sua própria vida: uma fórmula absolutamente equivocada. Os julgadores o utilizam como forma de compensar uma legislação inadequada e insuficiente, no que tange a punição, visando o atendimento das pressões da mídia e sociais.
Nesse contexto, cumpre lembrar que no ano de 2014, foi acrescentado pela Lei 12971, o parágrafo segundo, no artigo 302 (homicídio culposo), do Código de Trânsito Brasileiro, alterando o tipo de pena privativa de liberdade de detenção para reclusão, de 2 a 4 anos. Contudo, ainda é possível a concessão de medidas alternativas com fim de evitar a efetiva execução do encarceramento.
Por outro lado, reconhecendo-se a probabilidade real de homicídio doloso (no caso, dolo eventual) a ser decidido pelo Conselho de Sentença – e não pelo magistrado, a pena é de 6 a 20 anos de reclusão, artigo 121, do Código Penal. Pena mais severa e que atenderia à hipérbole do “clamor social”. Por isso, a artimanha da utilização do dolo eventual, pautado por um conceito desvirtuado da teoria do consentimento adotada pelo direito brasileiro, visando sanar deficiência da legislação.
Na opinião de Ádamo Brasil Dias, os magistrados estariam acatando um conceito errôneo de dolo eventual na busca, além de uma tentativa de penalização mais gravosa, de um meio de eximir-se de responsabilidade.
1.3. DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ACERCA DO TEMA
De acordo com o Ministro Luiz Fux, se omitida indevidamente a classificação do homicídio culposo para o doloso, na direção de veículo automotor, “importa em graves consequências para a defesa, deslocando o processo ao Júri, cujo julgamento é sabidamente atécnico e, às vezes, até mesmo apaixonado”[10], a depender do local em que ocorra. Essas implicações potencializam-se observada as evidentes diferenças de pena.
No julgado do ano de 2012, HC 109/210 RJ, de acordo com o voto do ministro relator, Marco Aurélio, “transmudar os delitos de trânsito em crimes dolosos contra a vida revela esforço jurídico conflitante com a Teoria Geral do Crime, na medida em que se afasta do direito penal da culpabilidade”.
CONCLUSÃO
Sobre o tema, observa Ádamo Brasil:
“Isso remete à reflexão sobre as intenções do motorista que se embriaga. É absurdo considerar mais razoável a presença de indiferença do condutor à vida humana do que a presença de um sentimento de supervalorização da própria habilidade, desconsiderando os riscos de um possível acidente de trânsito que resulte em uma morte”.[11]
Os resultados pormenorizados de uma colisão no trânsito, em geral, são imprevisíveis ao homem comum. O agente não tem previsão exata das consequências de sua conduta na maioria dos casos que envolvam sinistros entre veículos. Conclui-se, nesse sentido, pela extrema dificuldade de comprovação do dolo eventual ante a casos concretos, isso porque como demonstrar que o sujeito ativo, ainda que em período anterior ou durante o estado de embriaguez, era indiferente ao risco de sua própria morte ou a de familiares que o acompanhavam no veículo?
Nesse contexto, se o objetivo é uma punição mais rigorosa, atendendo aos anseios sociais e da imprensa, deveria se dá por meio do poder legislativo, com a aprovação de lei elevando a pena em abstrato para o homicídio no trânsito, decorrente de algumas condutas altamente reprováveis de motoristas, como é o caso da embriaguez ao volante. Assim, jamais seria a opção correta deturpar o conceito de dolo eventual, desenvolvido ao longo dos anos por penalistas mundialmente reconhecidos e adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro.
REFERÊNCIAS
DIAS, Ádamo Brasil. Embriaguez e homicídio no trânsito: dolo eventual ou culpa consciente?. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1981, 3 dez. 2008 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/12036>.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral / Rogério Greco. – 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009.
JORIO, Israel Domingos. O fetiche do dolo eventual. – Boletim do IBCCrim, nº 230, 2012.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: parte geral / Guilherme de Souza Nucci. – 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri – Símbolos e rituais / Lenio Luiz Streck. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1998.
[1] Cf. José Frederico MARQUES, Tratado de Direito Penal, 252.
[2] Guilherme de Souza NUCCI, Manual de direito penal – parte geral, 235.
[3] Juarez Tavares, Teoria do injusto penal, 284.
[4] Cf. José Frederico MARQUES, Tratado de direito penal – da infração penal, 243.
[5] Guilherme de Souza NUCCI, Manual de direito penal – parte geral, 235.
[6] Israel Domingos JORIO, O fetiche do dolo eventual, Boletim do IBCCrim, nº 230, janeiro de 2012, 10-11.
[7] Idem, ibidem.
[8] Lenio Luiz STRECK, Símbolos e rituais, 155.
[9] Cezar Roberto BITENCOURT, Código Penal Comentado,153.
[10] Cf. Habeas Corpus 107.801 / SÃO PAULO, 24
[11] Ádamo Brasil DIAS, Embriaguez e homicídio no trânsito: dolo eventual ou culpa consciente? , http://jus.com.br/revista/autor/adamo-brasil-dias#ixzz1vdz0fWnA.
Advogada. Graduada na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás. Pós-graduanda em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, Marcela Batista. Dolo eventual, culpa consciente e o homicídio na direção de veículo automotor, em razão de embriaguez Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 fev 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45992/dolo-eventual-culpa-consciente-e-o-homicidio-na-direcao-de-veiculo-automotor-em-razao-de-embriaguez. Acesso em: 02 nov 2024.
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