RESUMO: Busca compreender os fundamentos em que deve se basear o pensamento pós-positivista para que cumpra sua função por uma nova teoria da decisão democrática, sobretudo em uma corte constitucional. É analisado, inicialmente, qual positivismo jurídico se encontra em superação, como vistas a evitar equívocos teóricos que podem por abaixo qualquer expectativa de superação do positivismo mesmo. São analisadas novas relações entre direito e moral especialmente com base nos escritos de Jürgen Habermas e Ronald Dworkin, onde a teoria da norma será reformulada em prol de um novo conceito de direito. Verificam-se ainda importantes mudanças teóricas no âmbito da filosofia, em especial por meio do giro linguístico-ontológico, onde se supera o paradigma sujeito-objeto e se encontram mudanças substanciais na teoria da interpretação por meio da Hermenêutica Filosófica. Por fim, se analisa o impacto de todas essas mudanças a configurar um neoconstitucionalismo que seja capaz de sustentar uma teoria da decisão correta e democrática no âmbito de uma jurisdição constitucional.
O estudo da teoria da decisão em uma jurisdição constitucional no contexto de superação do positivismo jurídico é tema ainda em construção. A crise de legitimidade gerada pela transição entre o positivismo jurídico exegético e o positivismo jurídico normativista no âmbito da teoria da decisão judicial, exige, sobretudo no âmbito da jurisdição constitucional, aportes teóricos que guiem a democratização do debate constitucional ora fragilizada com a insuficiência das idéias positivistas da modernidade.
O fenômeno da positivação é, no dizer de Ricardo Maurício Freire Soares (2011, p. 42), “expressão palmar da modernidade jurídica” esta que, ao entrar em colapso[1], o leva consigo e cede lugar aos elementos da pós-modernidade.
Como marco temporal que se queira localizar a ruptura jurídico-teórica sob comento costuma-se[2] associar o fim da Segunda Guerra Mundial, que teria neste aspecto funcionado[3] como o estopim da reviravolta contra o pensamento jurídico então vigente.
A percepção de que, sob o manto de leis formalmente válidas e de aplicações concretamente livres, as maiorias políticas poderiam provocar o desfacelamento das garantias mínimas da existência humana, levou a comunidade jurídico-filosófica da época a iniciar reflexões sobre imprescindível mudança de paradigma jurídico-teórico.
Conforme nos anuncia Luis Roberto Barroso (2004, p. 325) após a Segunda Grande Guerra “a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha aceitação no pensamento esclarecido”.
Na teoria jurídica a transição para o programa pós-moderno abre espaço para diversas reflexões, muitas delas, e por todas Ronald Dworkin (2010, p.35), com o fim de “lançar um ataque geral contra o positivismo”.
Tais teorias implicarão em alterar definitivamente o panorama jurídico vigente onde para alguns[4] (não todos reafirme-se) não há mais espaço para os ideais positivistas em quaisquer de suas vertentes e estaria em plena construção uma corrente teórica não positivista, genérica, difusa que por muitos é nomeada ainda que provisoriamente de pós-positivismo.
Assim é que se propõe este trabalho a analisar em que direção deve caminhar essa corrente jusfilosófica ainda formação que, no Brasil, é denominada de pós-positivismo (capítulo 2) analisando ainda algumas propostas teóricas básicas na relação entre direito e moral e na teoria da norma (capitulo 3) indispensáveis à sua diferenciação como pensamento teórico.
Em seguida verificar-se-ão as bases filosóficas (capítulo 4) que, surgindo no século XX, deram novos aportes teóricos às ciências sociais não podendo por sua importância e magnitude restar esquecidos pelo direito. Por fim, serão expostos os impactos na jurisdição constitucional (capítulo 5) de todo o contexto apresentado e como isso anuncia um caminho por uma democratização do debate constitucional.
Muito complexa e sempre sujeita a equívocos, é a busca por se definir algo cuja definição mesma se encontra ainda em construção. Nesta categoria certamente podemos incluir o pós-positivismo, o qual desde sua nomenclatura já é objeto de controvérsias[5].
Tal afirmação, todavia, não nos impede, ao menos em linhas gerais e nos limites dos atuais dos avanços doutrinários acerca do tema, de traçar singelas bases gerais por onde se entende que deve circundar o conceito em discussão, o que se apresenta suficiente aos limites objetivos aqui necessários.
Assim é que o conceito de pós-positivismo deve ser buscado essencialmente na percepção de seus teóricos acerca das insuficiências e conceituações próprias do seu oponente, o positivismo que se propõe a superar, mas, decerto sem desprezar os avanços por este empreendidos.
Conforme sustentado em doutrina, muito do que foi defendido pelo positivismo teve seu lugar na história e cumpriu com uma função, deixando ainda um grande legado teórico e prático para a posteridade, bem como, até mesmo suas insuficiências permitiram impulsionar a evolução do direito até a posição em que ele hoje se encontra. Neste sentido, novamente com Luis Roberto Barroso (2004, p. 328), o pós-positivismo “inicia sua trajetória guardando deferência relativa ao ordenamento positivo, mas nele reintroduzindo as ideias de justiça e legitimidade”.
Principalmente no campo da interpretação é imprescindível modificar o (incipiente) entendimento positivista, nesta senda, conforme já se tem sustentado, o pós-positivismo deve procurar apresentar perspectivas teóricas e práticas que ofereçam soluções para a concretização do direito.
E aqui se deve afirmar travar-se a luta pós-positivista contra o positivismo normativista, não devendo se buscar, nesse momento da história, a derrota de um já inexistente juiz boca-da-lei, típico do positivismo exegético[6], muito pelo contrário. Tal compreensão é imprescindível, sob pena de se tomar um perigoso (e as vezes festejado) atalho na contramão da teoria jurídica[7].
Do positivismo busca-se a superação da decisão judicial como um momento de pura-vontade do intérprete que, entre as “molduras” (KELSEN, 2009) ou “penumbras” (HART, 2005) normativistas, escolhe a solução que livre, pessoal e incontrolavelmente entende ser seu desejo.
É assim, no âmbito da aplicação do direito, sobretudo na luta contra essa já sustentada discricionariedade (em sentido forte) outorgada ao intérprete pelo positivismo jurídico normativista de matriz kelseniana-hartiana, que deve se concentrar a maior parte dos esforços da teoria pós-positivista.
Outras preocupações também devem estar presentes na conceituação esperada de um pós-positivismo que pretenda de fato superar as insuficiências positivistas.
Nesse sentido, principalmente ante os clamores doutrinários do Segundo Pós-Guerra, também é preciso reavaliar a tese das fontes, uma das principais características positivistas na distinção de outras correntes teóricas conforme nos anuncia Dimitri Dimoulis (2006, p. 78). Na teoria das fontes é preciso (re)questionar: “somente o direito positivo é direito”?, para assim revisitar as relações entre direito e moral.
Na pós-modernidade é necessária uma teoria do direito que reencontre com os valores que rejeitou, no contrário, será aquela rejeitada por perder seu valor como teoria.
Por fim, não devem ser desconsiderados os importantes avanços do século XX no campo da filosofia, em especial o giro linguístico-ontológico, que, com fortes impactos sobre a hermenêutica, mudou por completo a compreensão da relação sujeito-objeto para um modo totalmente incompatível com a visão jus-positivista.
Seguindo o esquema acima proposto, mas apenas por uma questão de principio[8] invertendo a ordem de tratamento da matéria, vejamos como deve se configurar uma teoria das fontes que se queira apresentar pós-positivista.
O contexto em que são construídas e desenvolvidas as teorias positivistas é marcado por uma construção sociológica de uma sociedade no dizer de Jürgen Habermas (2012, p. 70) “descentrada, diferenciada funcionalmente e que se compõe de muitos sistemas que tendem a se separar”. Todo o empreendimento de uma purificação do Direito acabou por buscar um isolamento deste enquanto sistema.
Segundo Jürgen Habermas (2012, p. 71), em amparo teórico que, passando por Karl Marx e Husserl alcança seu ponto mais “sistematizado” em Luhmann, essa sociedade “estilhaçada policentricamente” é o resultado das mudanças de perspectivas levadas a cabo pela economia, para a qual “o direito perde sua posição-chave na estratégia teórica”. Como consequência, verifica-se, entre os muitos sistemas, o direito, que sobre uma perspectiva funcional, fecha-se como um sistema autônomo e “autopoiético”.
Muito percuciente a esse respeito a lição que nos traz Ricardo Maurício Freire Soares (2010, p. 48), no sentido de que “o sistema autopoiético é autônomo por que o que nele se passa não é determinado por nenhum componente do meio circundante, mas por sua própria organização sistêmica”.
Um trecho de um autor positivista nos permite compreender como se traduziu o isolamento “sistemático” do direito nesta corrente justeórica, para esse fim e por todos vejamos o que nos traz Dimitri Dimoulis (2006, p.130):
A teoria habermasiana da relação entre direito e moral é decerto um momento ímpar de sua teoria do direito. O autor, ao amparo do desenvolvimento histórico já desenvolvido em seus escritos, bem como na própria obra Direito e Democracia, nos capítulos que antecedem o tratamento da matéria, alerta acerca do abalo dos fundamentos de um engate vigente até o século XIX, onde as doutrinas do direito natural ainda se refletiam em um (único e uniforme) ethos da sociedade global.
Segundo o autor (2012, p.43), em tal período, se encontra cristalizada o modelo da sociedade tradicional cujo complexo de convicções afirma um tipo de validade revestida do poder factual, “no modo de uma autoridade ambivalente que vem ao nosso encontro de forma impositiva”. Instituições detentoras de poder com uma força de convicções aglutinadoras, totalmente subtraídas à problematização.
Em tal modelo de sociedade todos os domínios da vida social encontram-se referidos a um conjunto de valores (em regra religiosos ou míticos) que dão sentido as ações e interpretações de todos os membros da comunidade (NOBRE, 2008, p. 15) de modo único e geral.
Nesse sentido e implicando diretamente no direito, as “sanções impostas pelos homens são secundárias: elas apenas vingam transgressões contra uma autoridade cogente e obrigatória que vem antes dela” (HABERMAS, 2012, p.43). A idéia que subordina o direito positivo ao direito natural é própria dessa sociedade.
Mas no que Jürgen Habermas (2012, p. 129) interpreta como “racionalização do mundo da vida”, tal engate se rompe e tal sociedade se torna complexa. Segundo o autor (2012, p.128):
Nas doutrinas do direito natural clássico, especialmente o aristotélico, vigente até o século XIX, e do direito natural cristão, transformado por Tomás, ainda se reflete um ethos da sociedade global que perpassa as camadas da população, interligando as diferentes ordens sócias.
[...]
No impulso do desenvolvimento que eu interpreto como racionalização do mundo da vida, esse engate é rompido. As tradições culturais e os processos de socialização são os primeiros a caírem sob a pressão da reflexão, de tal modo que eles gradativamente passam a ser tema dos próprios atores.
Dessa sociedade (pós-racionalização do mundo da vida), agora complexa, pluralizada, profanizada e cada vez mais diferenciada, as ordens normativas buscam manter-se sem as garantias meta-sociais de antanho. É nesse contexto que vai surgir toda a relação de diferenciação e complementação recíproca entre o direito positivo e a moral autônoma.
Aqui Jürgen Habermas inclui a teorização sobre a diferenciação entre direito e moral, até então inexistente. Na forma da teoria habermasiana, o direito e a moral simultaneamente se diferenciaram do “ethos da sociedade global” (2012, p. 141), “no qual o direito tradicional e a ética da lei ainda estavam entrelaçados entre si”.
Ambos, direito e moral, assumem fardo semelhante em tal contexto social: “ordenar legitimamente relações interpessoais e coordenar entre si ações servindo-se de normas justificadas”, mas sob ângulos diferentes.
Assim é que, na teoria do autor, há um principio denominado “principio do discurso” (D) que se refere a normas de ação em geral se ramificando em normas morais e jurídicas.
Segundo o príncipio D, “são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais”. Desse principio geral do discurso decorrem as especificações em principio moral e principio da democracia. E aqui é estudada a diferenciação entre direito e moral que, antecipe-se, ocorre sem qualquer subordinação entre os ambos.
O principio moral resulta da especificação para normas de ação que só podem ser justificadas sob o ponto de vista da consideração simétrica dos interesses dos atores. Por outro lado, o principio da democracia resulta da especificação para normas de ação que surgem na forma do direito e que podem ser justificadas com o auxílio de argumentos pragmáticos, ético-políticos e morais, e não apenas por esses últimos.
Nas palavras do autor (2012, 142):
Pois o principio moral resulta de uma especificação do principio geral do discurso para normas de ação que só podem ser justificadas sob o ponto de vista da consideração simétrica dos interesses. O principio da democracia resulta de uma especificação correspondente para tais normas de ação que surgem na forma do direito e que podem ser justificadas com auxilio de argumentos pragmáticos, ético-políticos e morais – e não apenas com o auxílio de argumentos morais.
A especificação dos argumentos indicados como integrantes a cada especificação facilitará a compreensão deste momento necessário ao raciocínio da distinção.
São considerados para o autor argumentos pragmáticos (portanto submetidos a justificação do principio da democracia) aqueles que interferem na busca de meios apropriados para a realização de objetivos e fins já determinados, onde estão em jogo uma escolha fundamentada em técnicas, estratégias, prognoses etc.
São considerados argumentos ético-políticos (portanto também submetidos a justificação do principio da democracia) aqueles onde as próprias objetivos e fins são objeto de discussão a fim de decidir sobre o que se quer realmente.
Por fim, acerca dos argumentos morais, estes justificam normas de ação sob o ponto de vista da consideração simétrica dos interesses. Cada participante pode assumir a perspectiva de todos os outros. Independente da norma de ação a seja aplicado, os argumentos morais irão defender uma justiça onde todos (generalização que lhe é imanente) possam querer que a norma seja seguida por qualquer pessoa.
A fim de explicar o modo como ocorre essa aplicação dos argumentos morais a ambos os princípios conforme acima ressaltado pelo próprio autor, mas alterando a ordem que se encontra disposto em sua obra por fins didáticos, deixa-se explícita a diferença entre as normas jurídicas e as demais normas de ação.
O princípio moral se aplica a todas as normas de ação justificáveis com o auxilio de argumentos morais enquanto o principio democrático se aplica apenas na medida das normas do direito, independentemente de quais espécies de argumentos tais normas exijam.
Os argumentos morais são uma espécie de intersecção[10] entre o principio moral e o principio da democracia, sendo que eles (argumentos morais) podem justificar normas de ação jurídicas e não jurídicas e o principio democrático (aplicável apenas juridicamente) pode ser justificado por outros argumentos que não apenas morais (também pragmáticos e/ou ético-políticos).
Ainda a título de diferenciação pode-se afirmar uma diferença entre os princípios pela própria gênese das normas jurídicas e das demais normas de ação. As normas do direito nascem de interações complexas, possuem um caráter artificial, são normas de ação produzidas intencionalmente e aplicáveis a si mesmas, o que não ocorre com as demais normas de ação. As normas morais nascem de interações simples, naturais se encontrando quase prontas.
Eis o motivo pelo qual o principio da democracia precisa orientar a produção do próprio médio do direito. E aqui se verifica a distinção de níveis entre os princípios da democracia e o principio moral, é o que se passa a explicitar.
Enquanto principio moral funciona como regra de argumentação para a decisão racional de questões morais, o principio da democracia pressupõem a possibilidade de uma decisão racional em questões práticas, atuando na institucionalização de um sistema de direitos que garanta aos atores o igual direito de participação no processo de formação da política racional da opinião e da vontade.
O principio moral atua no nível da constituição interna do jogo de argumentação (com a sua carga de justiça) enquanto o principio da democracia atua no nível externo para a garantia da eficaz participação simétrica da formação discursiva da opinião e da vontade.
Exposta a relação de diferenciação entre principio moral e principio da democracia e excluída qualquer análise que indique subordinação de qualquer um dos princípios, passemos a análise da complementaridade entre eles, conceito que se apresenta como uma moralização do direito e o inicio de uma redefinição da teoria das fontes frente à visão positivista. É neste ponto que, de modo muito próprio, o autor promove na teoria das fontes o reencontro entre o direito e a moral.
A relação de complementaridade entre direito e moral surge no mesmo contexto acima exposto. Assim é que “a constituição da forma jurídica torna-se necessária, a fim de compensar déficits que resultam da decomposição da eticidade tradicional” (HABERMAS, 2012, p. 148).
A explicação da necessidade da forma jurídica se explica assim pelo desengate da pratica tradicional, cujo ethos societário global, agora jaz em simples convenção. Difunde-se uma moral crítica, racional e problematizadora.
Essa nova moral (da razão) especializa-se em questões de justiça à luz da universalizabildade e que tem por fim um saber “capaz de orientar para o agir” (correto), mas sem ser “capaz de dispor para o agir correto”. A moral, nesse mundo da vida racionalizado não se mantém mais vinculada com os motivos que impulsionavam os juízos morais para a prática, tendo alterado e reduzido sua forma de eficácia para a ação.
Nesse sentido, segundo Jurguen Habermas (2012, p.149), a “sua eficácia para a ação depende mais do acoplamento internalizado de princípios morais no sistema da personalidade do que da fraca força motivacional contida em bons argumentos”.
Com tamanha limitação de sua eficácia (a depender da internalização, de um substrato de estruturas da personalidade) torna-se necessário um outro caminho que complemente a moral do ponto de vista da eficácia para ação, e aqui se apresenta o direito. O direito complementa a moral na medida em que a auxilia na sua eficácia para a ação.
A teoria habermasiana da complementação entre o direito e a moral nos apresenta as dificuldades da pessoa que julga e age moralmente indicando em que medida o direito complementa a disposição de tais atores para a prática, por meio do alívio de exigências: a) cognitivas, b) motivacionais e c) organizatórias.
a) A exigência cognitiva se apresenta por meio das incertezas que sobrecarregam o ator que busca julgar e agir moralmente na medida em que a moral não possui condições de elaborar um catálogo de direito e deveres de fácil cumprimento.
A moral exige que o próprio indivíduo forme o seu juízo, transformando o igual respeito por cada um, a justiça, a lealdade (e demais normas generalizáveis) em um dever em determinado caso concreto, o que por muitas vezes depende de uma análise complexa e que sobrecarrega cognitivamente a formação do juízo moral próprio.
Para essa finalidade se apresenta o direito que, mediante um processo de legislação, pratica de decisões judiciais institucionalizadas e uma dogmática profissional que sistematiza decisões e concretiza regras, alivia a capacidade analítica do indivíduo permitindo e facilitando uma maior disposição para a ação.
b) A exigência motivacional se apresenta com relação à sua força de vontade para agir seguindo intuições morais, mesmo contra seus interesses, vez que é necessário harmonizar deveres e obrigações.
Para a incerteza motivacional que se apresenta, o direito coercitivo com suas ameaças de sanção determina um agir conforme normas libertando o ator de um peso motivacional ao permitir que os destinatários atenham às consequências de suas ações.
c) Por fim, as exigências organizatórias surgem especialmente em relação a deveres positivos que exigem esforços cooperativos para combater problemas de grande amplitude e que exigem a imputabilidade de tais obrigações e uma complexa divisão de trabalho que deve ser organizado, via de regra, por meio de instituições, organizações e outros sujeitos de direito fictícios.
O direito, para compensar o déficit organizatório moral e a ausência de uma imputabilidade, forma cadeias de ação e realização para o combate aos males de uma sociedade complexa (fome, miséria, etc) em uma divisão moral do trabalho compensando uma fraqueza de vontade e dificuldade de organização dos atores que agiriam moralmente.
Por fim, ressaltando uma importância adicional à moral outorgada pelo autor em sua teoria (HABERMAS, 2012, p. 204-210), deve-se salientar que os argumentos morais possuem uma prioridade em relação aos demais argumentos, pois “antes de querer ou aceitar um programa, é preciso saber se a prática correspondente é igualmente boa para todos”.
Aqui há uma clara prioridade da justiça antes de se ter como aceita uma norma jurídica, independentemente da espécie de argumento que a justifica. Assim, o autor nos indica uma adicional relação entre direito e moral onde aquela deve se reportar a esta para se ter como válido e aceito.
Ronald Dworkin, sob o objetivo de lançar um ataque ao positivismo, de logo inicia sua abordagem questionando o conceito de direito. Segundo o autor (2010, p.36) “o positivismo é um modelo de e para um sistema de regras”. Ocorre que, para o autor, os juristas utilizam outros “padrões que não funcionam como regras”, mas que funcionam diferentemente, “como princípios, políticas e outros tipos de padrões”. Assim Ronald Dworkin inicia a sua teoria sobre a normatividade dos princípios.
Muitos outros jusfilósofos[11] colaboraram grandemente com a compreensão desse fenômeno que ainda causa tanta celeuma no mundo jurídico, mas para os limites e a compreensão deste trabalho, poucos como a teoria dworkiana.
Indubitavelmente a contribuição de Ronald Dworkin é digna de aplausos no sentido de apresentar uma compreensão que, ao mesmo tempo em que confere normatividade direta a outros padrões que não regras, permite que sua compreensão de tais padrões sejam limites diretos para a discricionariedade[12]judicial, apresentando uma resposta (que entendemos correta) para o acima indicado problema da teoria (ou ausência de) da interpretação positivista.
Segundo o autor, entre outros tipos de padrões é possível afirmar, em sua análise, padrões que funcionam diferentemente das regras, mas que funcionam como princípios e também como políticas.
Para Ronald Dworkin, o termo princípio pode ser utilizado de forma genérica para indicar todo o conjunto de padrões do direito que não são regras, mas também pode ser utilizado de forma mais específica como um padrão que deve ser observado por ser uma exigência de justiça, equidade ou alguma outra dimensão da moralidade. Eis para a teoria dworkiana o modo por meio do qual a moral se reaproxima do direito.
Além de regras e princípios o autor apresenta ainda como padrão o que denomina como política. Segundo sua teoria, políticas são os padrões que estabelecem um objetivo a ser alcançado, via de regra, objetivos de ordem social, econômica ou política.
A fim de clarificar sua teoria, Ronald Dworkin inicia o tratamento da diferenciação entre os padrões apresentados. Inicialmente a diferenciação aparece entre os princípios (em seu sentido genérico) e as regras.
Para o autor, em um critério de diferença lógica, as regras são aplicáveis no modo tudo ou nada, nesse sentido, conforme a ocorrência ou não dos fatos estipulados pela regra, ou ela é valida e deve ser aceita sua consequência normativa, ou a regra não é válida e em nada contribuirá para a decisão.
Já os princípios, são padrões que não determinam de modo absoluto (tudo ou nada) a decisão, apenas conduzindo o argumento em uma certa direção, mas necessitando de uma decisão particular.
Um outro critério de distinção utilizado para diferença entre princípios e regras é o critério quanto à colisão. Segundo o autor, em caso de colisão entre regras, uma delas não pode ser válida, sendo o conflito entre regras solucionado através de outras regras que estabelecem critérios de precedência à regra hierarquicamente superior, temporalmente posterior, tematicamente mais específica etc.
Por outro lado, em caso de colisão entre princípios, é necessário recorrer a uma dimensão de peso, para avaliar no caso em discussão qual a força e a importância de cada princípio, sendo solucionado quando de sua aplicação.
A teoria dworkiana apresenta os princípios jurídicos dentro do conceito de direito em contraposição de uma teoria positivista que os exclui de categoria jurídica, externando sua posição o autor afirma:
Podemos tratar os princípios jurídicos da mesma maneira que tratamos as regras jurídicas e dizer que alguns princípios possuem obrigatoriedade de lei e devem ser levados em conta por juízes e juristas que tomam decisões sobre obrigações jurídicas (DWORKIN, 2010, p. 46).
A compreensão de Ronald Dworkin sobre a normatividade dos princípios aparece aqui como elemento que, frente à teoria positivista, realiza o um fechamento hermenêutico de uma interpretação discricionária dentro da textura/moldura normativa. Conforme nos adverte o autor, a alternativa “trata os princípios como obrigatórios para os juízes, de tal modo que eles incorrem em erro ao não aplicá-los quando pertinente” (DWORKIN, 2010, p. 48).
Ainda no aspecto descritivo da classificação proposta pelo autor ressalta-se, por fim, a distinção entre princípios (em sentido estrito) e políticas. Para o autor, esta distinção se resolve na linha da diferença entre um direito e um objetivo. Os princípios se apresentam como proposições que descrevem direitos enquanto as políticas são proposições que descrevem objetivos.
É possível observar, sem muito esforço, certa semelhança nos tipos de argumentos (ou padrões) que se encontram presentes nas reflexões de Jürgen Habermas e Ronald Dworkin para a reaproximação entre direito e moral.
A teoria habermasiana trabalha com o conceito de argumentos morais e pragmáticos o que na teoria dworkiana, guardadas distinções periféricas[13], se apresentam nos padrões de princípios strictu sensu.
Por outro lado, Jungem Habermas trabalha ainda com as classificações de argumentos ético-políticos, os quais fundamentam a escolha dos objetivos. Também esses argumentos podem ser encontrados em Ronald Dworkin, em conceito aproximado do que este denomina por políticas.
Fixadas o que compreende como sólidas premissas teóricas de um pós-positivismo jurídico de validade, agora em renovadas relações com a moral, é possível buscar bases filosóficas constitutivas de uma teoria da decisão que seja constitucionalmente adequada ao momento jusfilosófico de superação do positivismo.
A filosofia entre os séculos XIX e XX alcançou concepções que redimensionaram completamente a interpretação jurídica. Segundo Ricardo Maurício Freire Soares (2010, p.76) a investigação filosófica assim se justifica “por que o horizonte tradicional da hermenêutica técnica se revela insuficiente para o desiderato da interpretação do direito”. A hermenêutica filosófica se apresenta como alternativa para um novo paradigma cognitivo.
Esse movimento, verdadeira revolução copernicana para as ciências sociais, permitiu a ruptura com uma filosofia da consciência altamente subjetivista e arbitrária. Consagra-se a passagem de uma filosofia rendida a um modelo de conhecimento fixado na percepção e representação de objetos, para um modelo de conhecimento mediado pela linguagem e referido ao agir.
Trata-se da superação de uma compreensão, onde, desde a metafísica aristotélica, a ciência buscada “não seria outra coisa que ontologia... diga-se o que disser de qualquer coisa, sempre se expressará sua realidade dizendo que é: é isto ou aquilo, deste modo ou de outro modo, em qualquer circunstância é” (STRECK, 2009, p. 123).
Em Aristóteles, a linguagem (apenas) significa as coisas. A palavra é um símbolo para as coisas, só possuindo um sentido por que as coisas possuíam uma essência. Como se verá (a partir da viragem linguística), as coisas mudam.
No campo do direito, estas novas reflexões alcançarão superar paradigmas marcadamente positivistas de uma histórica contenda entre defesa de interpretações que se fundamentavam ser a atividade do intérprete buscar ora a vontade da lei, ora a vontade do legislador[14]. O giro linguístico-ontológico trará novas bases hermenêuticas que libertarão o intérprete desse, marcadamente positivista, paradigma sujeito-objeto que outrora reinou na teoria da decisão.
A viragem linguística se apresenta em uma evolução de pensamentos que alcançam deixar de lado as concepções metafísicas da existência de uma realidade que se apresenta ao sujeito como pronta e definitiva, para uma realidade que se tem acesso apenas pela mediação linguística de significado e de sentido realizada.
No lugar de um sujeito solipsista que constitui seus objetos, se compreende uma prática intersubjetiva situada em um contexto histórico mediado linguisticamente. A linguagem “não representa um terceiro instrumento, ao lado do signo e da ferramenta” (GADAMER, 2002, p. 176), mas é “médium da experiência hermenêutica” (GADAMER, 2008, p. 497).
Segundo Lenio Luiz Streck, a viragem lingüística supera a dicotomia do esquema sujeito-objeto, nas palavras do autor:
Nem mais o assujeitamento do sujeito às essências e nem o solipsismo do sujeito assujeitador dos objetos. [...] graças à viragem lingüística da filosofia e do nascimento da tradição hermenêutica – que os diversos campos da filosofia, que antes eram determinados a partir do mundo natural, poderiam ser multiplicados ao infinito através da infinitude humana.(STRECK, 2009, p.178)
Segundo o autor (STRECK, 2009, p.167) tal movimento ocorreu em três frentes.
Anteriormente, por meio de um neopositivismo lógico, buscava-se a linguagem ideal. Seguindo essa linha, entre outros teóricos podem-se incluir os escritos da primeira fase de Ludwig Wittgenstein (em especial o seu Tratactus), o rigor linguístico era essencial para a ciência.
A linguagem deveria ser capaz de reproduzir com absoluta exatidão a estrutura ontológica do mundo. No campo do direito deriva dessa frente a concepção do positivismo jurídico. Aqui a linguagem ainda se encontra reduzida em uma estrutura coisificada, voltada para uma concepção ontológica da verdade.
Em um segundo momento, também marcado por Ludwig Wittgenstein, agora em sua segunda fase e por intermédio da obra Investigações Filosóficas, o giro linguístico encontra o caminho preciso de sua guinada. O autor reformula sua teoria e compreende que não temos um mundo em si, que independa da linguagem. Apenas temos o mundo na linguagem.
Conforme explica Lenio Luiz Streck (2009, p. 170) sobre essa nova fase wittgensteinriana “não há essências. Não há relação entre nomes e coisas... é impossível determinar a significação das palavras sem uma consideração do contexto socioprático em que são usadas”. Tem-se lugar a superação do paradigma sujeito-objeto.
A terceira frente se apresenta por meio do desenvolvimento da filosofia da linguagem ordinária. John Austin, retomando as questões propostas por Wittgenstein nos seus jogos de linguagem, alcança a distinção entre duas dimensões existentes nos enunciados, a dimensão constatativa, na qual se verifica como descrição da realidade e a dimensão performativa, onde o enunciado se apresenta como um ato não lingüístico. Com John Austin percebe-se que a linguagem é ação.
Ademais, John Austin compreende que a linguagem ordinária precisa ser analisada, pois é perpassada de inadequações e arbitrariedades ao contrário do que compreendia Ludwig Wittgenstein. Conforme nos indica Lenio Luiz Streck (2009, p. 175) “a filosofia da linguagem ordinária tenta compreender a linguagem a partir do contexto sócio-histórico, que gera os pressupostos possibilitadores dos atos de fala”.
O giro linguístico ainda deve nos conduzir para novos rumos teóricos também indispensáveis à compreensão de uma nova teoria da decisão que seja adequada à evolução filosófica ocorrida no século XX. Nesse contexto, e nos limites deste trabalho, desponta o eixo Heidegger-Gadamer.
Em conjunto com a viragem linguística e por meio dela, Martin Heidegger apresenta-nos uma hermenêutica a partir da existência. Com Ricardo Maurício Freire Soares (2010, p. 80) é possível dizer que a compreensão em Martin Heidegger “passa a ser visualizada não como um ato cognitivo de um sujeito dissociado do mundo, mas, isto sim, como um prolongamento essencial da existência humana”.
Richard Palmer (2006, p. 135) nos apresenta que em Martin Heidegger “a compreensão é o poder de captar as possibilidades que cada um tem de ser, no contexto do mundo vital em que cada um de nós existe”.
A compreensão heideggeriana se pauta inteiramente em uma estrutura ontológica essencial na obra do autor: o conceito de Daisen (ser-aí), onde o Da (aí) é o modo pelo qual as coisas chegam ao -isein (ser), não sendo as coisas propriedade do ser, mas o próprio ser.
Lenio Luiz Streck (2009, p. 198), com arrimo em Váttimo, esclarece o tão caro conceito de heideggeriano do Daisen, senão vejamos:
O homem é definido, pois, como existência, como poder-ser. É aí que entra a noção de ser-no-mundo. Se o estar aí é ser-no-mundo, diz Váttimo, o resultado da análise da mundanidade deverá refletir-se também na determinação das estruturas existenciais do Daisen. [...] O Daisen, nas palavras do próprio Heidegger, na sua intimidade com a significatividade é condição ôntica da possibilidade de descobrir o ente que se encontra no mundo, no modo de ser da prestabilidade.
Pelo conceito de Daisen o mundo não é dado como um conjunto de objetos (enquanto seres entificados conforme preconizava a metafísica) com os quais posteriormente se relacionaria ao lhe dar funções e significados. As coisas já possuem significados e se manifestam como coisas enquanto inseridas em um conjunto maior de significados de que o Daisen já dispõe.
A realidade só se dá pra nós na medida em que já temos sempre certo patrimônio de ideias, é dizer, certos pré-juízos que nos guiam na descoberta das coisas (STRECK, 2009 p. 198). Disso tudo se verifica que no Daisen reside uma pré-compreensão, a qual permitirá alcançar outro momento especial na teoria heideggeriana, o conceito de círculo hermenêutico.
Pelo conceito de pré-compreensão a teoria heideggeriana entende que a interpretação se baseia em uma visão prévia a qual recorta o que foi assumido na posição anterior conforme uma possibilidade de interpretação apresentada.
Conforme Maria Margarida Lacombe Camargo (2003, p. 53), de acordo Martin Heidegger a circularidade hermenêutica “funda-se na pré-compreensão, apoiada sobre o sentido daquilo que buscamos compreender”. Neste contexto, leia-se o termo sentido como algo que sustenta a compreensibilidade de alguma coisa.
Pré-compreensão e círculo hermenêutico também serão conceitos marcantes na teoria gadameriana e por meio desta pretendemos concluir o aclarar conceitual ora iniciado.
Hans-Georg Gadamer, nesse sentido e sempre partindo dos avanços de Martin Heidegger, vai considerar que quem interpreta trabalha sempre com conceitos prévios, cuja tendência é a de serem substituídos por outros mais adequados de forma sucessiva. Quem compreende não tem uma mente vazia, mas ao contrário, já tem sempre uma pré-compreensão das coisas. Em Hans-Georg Gadamer, a estrutura circular da compreensão[15] presente já na teoria Heiddegeriana, se apresenta por meio da metáfora do projeto:
Quem quiser compreender um texto deverá sempre realizar um projeto. Ele projeta de antemão um sentido do todo, tão logo se mostre um primeiro sentido no texto. Esse primeiro sentido somente se mostra por que lemos o texto já sempre com certas expectativas, na perspectiva de um determinado sentido. A compreensão daquilo que está no texto consiste na elaboração desse projeto prévio, que sofre uma constante revisão à medida que aprofunda e amplia o sentido do texto. (GADAMER, 2002, p. 75)
Conforme anota Richard Palmer (2006, p.93) o conceito individual tira o seu significado do horizonte no qual se situa. Este mesmo o horizonte, por sua vez se constrói com os próprios elementos aos quais dá sentido.
É importante ressaltar que essa circularidade não retorna ao seu ponto de partida como em uma tautologia ou um círculo vicioso, mas sempre avança em revisões sucessivas numa penetração de sentido, sempre sujeita à revisão e como resultado do aprofundamento de um novo ir e vir.
Desponta em Hans-Georg Gadamer, a partir da pré-compreensão e como parte do círculo hermenêutico, o legado da tradição, no qual o sujeito da compreensão se encontra (a)sujeitado desde sempre de forma compulsória e irrenunciável em sua historicidade.
A tradição, segundo Hans-Georg Gadamer, é objeto de nossa (pré)compreensão e seu legado nos vem por meio da linguagem (STRECK, 2009, p. 212). A tradição se configura como uma transmissão que, após transmitida, mostra novos aspectos em virtude da continuação histórica do acontecer.
Dentro da circularidade hermenêutica a tradição se apresenta como a consciência de que, na finitude humana, os que virão depois de nós compreenderão de forma diferente. Assim também nós nos apresentamos em relação aos que compreenderam antes de nós. Mas a história é apenas uma, de geração em geração, onde se escreve-compreendendo continuamente.
É nessa historicidade em que se situa a tradição que é possível explicar o que Hans-Georg Gadamer denomina fusão de horizontes. Onde, quem interpreta um texto histórico, o faz, a partir da sua (referindo ao intérprete) própria historicidade. Se fundem na interpretação, o horizonte aberto pelo texto (passado) e o horizonte do intérprete (presente).
Ricardo Maurício Freire Soares (2010, p. 81) com a clareza que lhe é peculiar, assim disserta:
Ao procurar-se compreender um fenômeno histórico a partir da distância histórica que determina a situação hermenêutica como um todo, encontra-se sempre sob os efeitos de uma história corrente. [...] é preciso tentar deslocar-se para a situação do passado para ter, assim, seu horizonte histórico. O ato de compreender é sempre a fusão de horizontes existenciais.
O encontro com a tradição explicita essa tensão entre passado e presente que não pode ser ocultada na atividade hermenêutica. Ao contrário deve ser desenvolvida e controlada na fusão de horizontes pela atividade do intérprete. Tal atividade é a que Hans-Georg Gadamer denomina tarefa da consciência histórico-efectual.
É consciência do momento (situar-se historicamente) em que se realiza a compreensão. Consciência de sua situação (hermeneuticamente falando). Tal consciência é o que permite a projeção de um horizonte histórico distinto do presente, mas não auto-alienado a uma consciência passada.
Em decorrência da consciência histórico-efectual, o intérprete, de forma construtiva, produz um novo texto ao acrescentar-lhe sentido construindo a história e legando nova tradição, que de logo se incorpora na circularidade hermenêutica. Assim, em Hans-Georg Gadamer, a compreensão assume um caráter produtivo (e não reprodutivo) da história.
Por fim, também de especial importância para os limites do raciocínio que se empreita, do caráter produtivo da compreensão é possível depreender a relação entre compreensão e interpretação na teoria gadameriana, o que apresenta relevantes ganhos na seara jurídica.
Assim é que, para Hans-Georg Gadamer (2008, p. 378), não é possível cindir compreensão e interpretação. “A interpretação não é um ato complementar e posterior ao da compreensão, senão compreender é sempre interpretar, e em consequência a interpretação é a forma explicita da compreensão.”
Não se compreende um texto, para depois interpretá-lo e por fim aplicá-lo. Compreende-se, interpreta-se e aplica-se simultâneamente em uma só operação que se realiza na situação pre-sente no intérprete. É a applicatio hermenêutica de que fala o autor. Cada nova fusão de horizontes, cada nova leitura, será nova compreensão-interpretação-aplicação.
Tais reflexões filosóficas permitem exigir, de qualquer teoria da decisão que se apresente pós-positivista, uma especial atenção aos avanços filosóficos do último século sob pena de permanecer aprisionada a paradigmas teóricos próprios do positivismo.
As mesmas reservas levantadas com relação ao pós-positivismo, como conceituação de algo cuja definição mesma se encontra em construção, devem ser feitas em relação à expressão neoconstitucionalismo. Na verdade talvez seja possível nesse caso consagrar mesmo a existência de vários neoconstitucionalismos. Tal circunstância decerto justifica o acerto em titulo de obra[16] organizada pelo jurista mexicano Miguel Carbonell, ao utilizar a nomenclatura indicada expressamente no plural.
Neste trabalho, decerto assumindo um risco que considera calculado, pretende indicar os rumos pelo qual acredita circundar a conceituação da expressão bem como a sua relação com uma teoria da decisão que se pretenda democrática.
Assim, e na linha do que vem sendo definido até o momento neste trabalho, também o neoconstitucionalismo deve ser conceituado dentro da concepção de constitucionalismo que pretende superar o pensamento positivista[17].
Tal esclarecimento se mostra imprescindível, sob pena de se admitir que sejam defendidos posicionamentos que não superam os principais problemas de um constitucionalismo de matriz positivista, com os mesmos riscos para a democracia e para concretização dos direitos fundamentais a ela inerentes.
Nesse sentido, sugere-se compreender a concepção neoconstitucionalista de uma jurisdição constitucional como pautada ao menos em três requisitos: a) uma teoria das fontes que compreenda a supremacia da Constituição sobre as leis; b) uma teoria da norma que compreenda regras e princípios e que admita intrinsecamente a estes, relações entre direito, moral e política; c) uma teoria da decisão judicial não mais subjulgada ao legislador, mas que atue em uma construtividade não arbitrária, a partir da Constituição e de forma a conciliar a defesa da democracia e dos direitos fundamentais;
Como primeiro requisito, único ainda não tratado neste trabalho, deve-se afirmar ser, o reconhecimento da supremacia da constituição, uma condição de existência mesma de um neoconstitucionalismo.
Deve-se ressaltar, nesse sentido, o que hoje se apresenta quase que de forma pacífica até bem pouco tempo na realidade brasileira considerava-se absurdo.
No Brasil, nesse sentido, mesmo após a constituição de 1988, foi necessária uma luta doutrinária para o reconhecimento de normatividade ao texto constitucional. Tal luta foi travada pelo que a doutrina brasileira denominou constitucionalismo de efetividade, que assim é definido por Daniel Sarmento (2009, p. 24).
Alguns autores, como Luis Roberto Barroso e Clèmerson Merlin Clève, passaram a advogar a tese de que a Constituição, sendo norma jurídica, deveria ser rotineiramente aplicada pelos juízes, o que até então não ocorria. O que hoje parece uma obviedade era quase revolucionário numa época em que nossa cultura jurídica hegemônica não tratava a constituição como norma, mas pouco mais do que um repositório de promessas grandiloquentes, cuja efetivação dependeria quase sempre da boa vontade do legislador e dos governantes de plantão.
Conforme anota Dirley da Cunha Jr. (2012, p.38), inclusive para salientar a supremacia da constituição mesmo em casos de omissão, a constituição “vincula tanto os órgãos do Poder Público como os cidadãos [...] quer imponha uma abstenção (non facere) ou uma atuação (facere) do Estado, ou mesmo de uma pessoa”. A partir de tal supremacia a constituição irradia efeitos por todo o direito infraconstitucional.
Com o neoconstitucionalismo “a constituição deixa de ser considerada um diploma normativo com um valor meramente programático [...] para operar com uma normatividade jurídica com eficácia direta e imediata” (SOARES, 2010, p. 124).
Assim, qualquer espécie de constitucionalismo que de alguma forma negue supremacia ou efetividade às normas constitucionais, deve ser considerado como preso a um panorama já superado, não podendo ser considerado como neoconstitucionalismo.
Tratando do segundo requisito, diante de tudo que já foi sustentado (capítulo 3), o neoconstitucionalismo exige uma teoria da norma que compreenda regras e princípios e que realize uma releitura da relação entre direito e moral. Neste sentido, disserta Ricardo Mauricio Freire Soares (2010, p. 125):
De outro lado, o neoconstitucionalismo pressupõe a positivação jurídica de princípios, pautas axiológicas de conteúdo indubitavelmente ético, daí decorrendo importantes consequências, tais como a necessidade de adotar uma posição de participante para explicar o funcionamento do direito, bem como a necessidade de superar a ideia positivista de uma separação entre o Direito e a Moral.
No entanto, deve-se salientar, não é suficiente uma concepção qualquer de normativismo principiológico. É necessária uma concepção de normatividade de princípios que impeça seu uso como pretexto para arbitrariedades. Em verdade deve-se buscar concepções deste ainda tão intrincado conceito que limitem a discricionariedade judicial (em sentido forte), nos moldes em que foi apresentado acima (item 3.2, acima) por meio da teoria dworkiana dos princípios.
Por fim, em um último requisito que fora longamente tratado acima (capítulo 4, acima), qualquer configuração de uma teoria da decisão que se pretenda adequada ao neoconstitucionalismo, deve atentar-se ao filtro da viragem linguística-ontológica, de modo realizar uma interpretação construtivista e não arbitrária da constituição, a qual supere o paradigma sujeito-objeto e que a atenda a uma compreensão-interpretação-aplicação já visitada pela hermenêutica-filósófica.
Assim é que, tal interpretação, deve realizar-se numa conciliação simultânea entre defesa da democracia (atual e oriunda da tradição) e defesa de uma normatividade com regras e princípios, parâmetros que, em conjunto com a supremacia da Constituição devem limitar o intérprete na luta contra um solipisismo hermenêutico causador da discricionariedade (em sentido forte) judicial.
Eis as bases de um conceito de neoconstitucionalismo que devem guiar uma teoria da decisão constitucional em cortes constitucionais no atual contexto histórico dessa evolução jusfilósofica ainda em construção.
Certos dos seus limites este trabalho buscou compreender, sob as bases da crise de legitimidade da teoria da interpretação do positivismo normativista, o campo de elaboração teórica de uma teoria pós-positivista da teoria da decisão, em especial na atuação de uma corte constitucional.
Assim, se buscou indicar bases justificadoras que entende poder ajudar a evitar equívocos nos rumos do, ainda em construção, pensamento pós-positivista.
Partindo de uma indicada insuficiente teoria da interpretação juspositivista, a admitir forte discricionariedade na atividade judicante, foi possível identificar qual deve ser o foco a ser perseguido por uma teoria pós-positivista do direito.
Verificou-se ainda, a necessidade de reavaliação da teoria das fontes com a exigência de se revisitar as relações entre direito e moral, onde se pode ter acesso as contribuições de Jürgen Habermas de Ronald Dworkin acerca do tema.
Compreendeu-se pelo estudo da evolução da filosofia no último século (em especial no âmbito da linguagem e da hermenêutica), que seu atual momento teórico passa a exigir que qualquer corrente jusfilosófica atualmente em construção seja com ela compatível sob pena de não ser considerada pós-positivista.
Por fim, e também com base em tudo que antes fora defendido, foi possível verificar a relação entre o neoconstitucionalismo e uma teoria da decisão que se pretenda democrática como reflexo do pós-positivismo na atuação de uma jurisdição constitucional.
Decerto que o presente trabalho não logrou um estudo detalhado de fenômenos flagrantemente ainda em construção, mas espera ter indicado seguros filtros teóricos por onde entende deve circundar uma teoria da decisão em uma corte constitucional e que se pretenda democrática.
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[1] Do mesmo autor confira-se o principio constitucional da dignidade da pessoa humana (SOARES, 2010, p. 53), onde a crise da modernidade encontra consubstanciado estudo jurídico-filosófico indispensável ao conhecimento aprofundado de tema tão caro ao atual momento da pesquisa jurídica nacional.
[2] No sentido do texto, entre outros, Daniel Sarmento (2009, p. 14), Luis Roberto Barroso (2009, p. 327) e Lenio Luiz Streck (2012, p. 37).
[3] Saliente-se que a utilização como marco temporal a Segunda Guerra mundial não significa entender, em abono ao entendimento de Dimitri Dimoulis (2006, p. 258), que a bárbarie ocorrida durante a Segunda Grande Guerra tenha sido consequência ou mesmo omissão do pensamento positivista. Trata-se apenas como afirmado, de um marco material de reflexão sobre a necessidade de uma modificação do paradigma jusfilosófico vigente ante a insuficiência (em muitos) despertada especialmente nos campos da discricionariedade do aplicador da norma, da (des)necessidade de aproximação entre direito e faticidade (com relação à moral e à política) e de uma teoria das fontes sociais a (des)prezar uma normatividade principiológica, mormente quando ausente expressamente das regras infraconstitucionais.
[4] Deve-se ressaltar que conforme anota Dimitri Dimoulis (2006, p.132) o debate sobre as diversas correntes positivistas permanece muito rico e atual, sobretudo na defesa de sua força, muito embora reconhecidamente de menor repercussão no Brasil.
[5] Conforme acima sublinhado, Dimoulis (2006, p. 50) entende preferível a utilização do termo “antipositivismo” frente ao uso corrente no Brasil do termo pós-positivismo, ao entender que há uma desvantagem cognitiva com base no critério da sucessão cronológica que chega a entender inexistente.
[6] Para aprofundamento da distinção entre positivismos e a importância de bem compreender o que se pretende superar sugere-se a leitura de Lenio Luiz Streck (2011);
[7] Assim é que, no mais das vezes, ao pregar a superação do positivismo no debate jurídico contemporâneo, defende-se uma postura ativa do juiz, via de regra, na insurgência contra uma aplicação mecânica da lei ou contra um juiz boca-da-lei e a favor de uma maior liberdade do aplicador. Nesse ponto reside uma grande questão a ser esclarecida: lutar contra o positivismo exegético típico da École de l’exégèse defendendo um espaço de liberdade para o juiz em face da lei é posicionamento nítido do próprio positivismo, aqui normativista (de matriz kelseniana/hartiana) não havendo nada de pós-positivista nesta posição.
[8] Parafraseando obra de mesmo título.
[9] Sigla que se refere a expressão positivismo jurídico.
[10] Expressão não presente textualmente em Jurgen Habermas.
[11] Eros Roberto Grau (2006, p. 173) apresenta-nos distinções entre principio e regra nas obras de Jean Boulanger e Crisafulli, Zagrebelsky, Alexy, Canotilho e Luís Prieto Sanchis.
[12] Em sentido forte, conforme concepção do autor.
[13] Assim consideradas no entender desse autor.
[14] Uma percuciente análise das teorias interpretativas subjetivistas (defesa da vontade do legislador) e objetivistas (defesa da vontade da lei) pode ser encontrada em Karl Larenz (1997);
[15] A circularidade da compreensão em termos genéricos e já indicada em outros teóricos (Hans George Gadamer indica concepções de Schleiermcher e Dilthey até adotar a concepção de Heiddeger), também pode ser compreendida na relação entre a parte e o todo. Exemplifica-se na relação palavra-frase: apenas compreendemos o sentido de uma palavra partido de uma pré-compreensão acerca da mesma e enquanto relacionada com a totalidade de uma frase. Por outro lado o sentido da frase é dependente do sentido das palavras. Eis a circularidade da compreensão.
[16] Referência à obra Neoconstitucionalismo (s).
[17] Conforme indicado, reconhece-se a admoestação de Daniel Sarmento (2009, p.10), acerca da existência de autores positivistas e que são considerados neoconstitucionalistas. Nesta trabalho tomam-se as expressões como incompatíveis em favor de uma evolução do pensamento jurídico.
Pós-graduado em Direito do Estado pela Faculdade Baiana de Direito. Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC. Aprovado nos concursos para ingresso nas carreiras de Procurador do Estado do Piauí (2015), Procurador do Município de Salvador-BA (2016) e Procurador do Município de Nossa Senhora do Socorro - SE (2014). Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GALDINO, Matheus Souza. Jurisdição constitucional, pós-positivismo e hermenêutica: Bases teóricas de um neoconstitucionalismo que busque democratizar a teoria da decisão Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 fev 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46022/jurisdicao-constitucional-pos-positivismo-e-hermeneutica-bases-teoricas-de-um-neoconstitucionalismo-que-busque-democratizar-a-teoria-da-decisao. Acesso em: 23 dez 2024.
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