1. INTRODUÇÃO
O Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) corresponde a um fenômeno formado por uma série de fatores agressivos a uma gama de titulares dos Direitos Fundamentais.
Sua verificação, por sua vez, autoriza o ativismo judicial estrutural dialógico.
É bom, de logo, propugnar, que partimos da premissa de que o Estado de Coisas Inconstitucional não é uma ferramenta propriamente dita, mas uma situação fática apurada no mundo empírico.
Sua existência, portanto, independe de qualquer declaração judicial.
Ele é fruto do mau uso das atribuições públicas. Advém do engessamento dos Poderes Públicos frente ao perecimento dos Direitos Fundamentais.
Agora, uma vez percebido e declarado na esfera jurisdicional, o ECI legitima o uso do ativismo judicial estrutural dialógico.
Com efeito, o Juiz Constitucional, no exercício das atividades judicantes, ao reconhecer a existência, em análise empírica, do ECI, busca afastá-lo, exarando decisão que exorbita os sujeitos parciais do processo e alcança todos os Agentes Estatais, mesmo que pertencentes aos Poderes Executivo e Legislativo, dotados de atribuições institucionais suficientes para o cumprimento do desiderato perseguido. Este tipo de ato, por sua vez, exige um verdadeiro diálogo entre os Três Poderes, a fim de que a medida judicial seja cumprida.
De mais a mais, existe em nosso País uma nítida propensão – tanto na doutrina quanto na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – em aceitar a eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas.
Assim, resta inegável que nas relações privadas, havendo necessidade de atuação do Judiciário para proteção dos direitos fundamentais, pode o Juiz arbitrar multa diária para efetivação de suas decisões.
Nestes casos, o sujeito passivo da multa diária é aquele sobre quem recai o dever de cumprir os provimentos jurisdicionais atinentes ao dever de fazer, não fazer ou de entregar coisa.
É possível, neste ponto, que a multa cominatória seja aplicada tanto à pessoa física quanto à pessoa jurídica - tanto de direito público, quanto de direito privado - como instrumento coercitivo e necessário para dissuadir a recalcitrância[1].
O presente estudo, contudo, investiga a aplicação das astreintes na proteção aos direitos fundamentais em relação ao Poder Público.
Veremos, doravante, peculiaridades importantíssimas sobre cada uma delas.
2. ORIGEM DA DECLARAÇÃO DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL
A espécie em apreço foi declarada, pela primeira vez, em 1997 pela Corte Constitucional Colombiana (CCC)[2]. Segundo aquela Casa, para o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional, mister se faz a presença dos seguintes elementos:
a. A vulneração massiva e generalizada de vários direitos constitucionais que afetam um número significativo de pessoas;
b. a prolongada omissão das autoridades no cumprimento de suas obrigações voltadas à concessão destes direitos;
c. a inexistência de medidas legislativas, administrativas ou orçamentária necessárias para evitar a violação destes direitos;
d. a existência de um problema social, cuja solução demanda um conjunto complexo e coordenado de ações e que exija destinação orçamentária elevada;
e. a verificação de congestionamento do Judiciário, casos os titulares dos direitos afetados demandassem individualmente.
2.1 O ECI NO BRASIL: RECONHECIMENTO E CONSEQUÊNCIA.
Recentemente, o Pleno da Suprema Corte do Brasil, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347/DF[3], após reconhecer o Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) no Sistema Prisional Brasileiro, deferiu, em parte, medida cautelar[4]:
1. Para determinar aos juízes e tribunais que, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contados do momento da prisão;
2. para determinar que a União procedesse ao desbloqueio do saldo acumulado no Fundo Penitenciário Nacional.
3. para impedir novos contingenciamentos, pelo Executivo, do Fundo supracitado.
A decisão em comento, além de inovadora, ante o uso de instituto genuinamente colombiano, abre precedentes para novas correções, pelo Judiciário, de distorções causadas pela paralisia dos Poderes Executivo e Legislativo em vilipêndio aos Direitos Fundamentais.
2.2 DIVERGÊNCIA DOUTRINÁRIA
Muito embora a decisão destacada acima tenha caráter precário, não tardou para que se verificasse, no bojo do assunto, o surgimento de correntes doutrinárias antagônicas.
De um lado, para os defensores do Estado de Coisas Inconstitucional como legitimador do ativismo judicial estrutural dialógico, por todos o professor Dirley da Cunha Júnior[5], a espécie consubstancia-se em verdadeira arma de defesa dos Direitos Fundamentais.
De outro lado, encabeçada por Raffaele Giorgi e Celso Capilongo[6], tem-se a corrente formada por aqueles que sustentam, em apertada síntese, que o ativismo judicial na declaração de ECI leva o Judiciário a se intrometer na consecução das políticas públicas, ferindo o Princípio da Separação dos Poderes, consagrado no Artigo 2º da Constituição Federal de 1988.
Além do mais – alegam - que longe de ser uma solução, seria justamente o oposto, ao criar uma ilusão de que as decisões dos Tribunais estariam aptas a sanar problemas estruturais que acompanham o nosso País desde sua origem.
Sustentam, ainda, que a declaração de Estado de Coisas Inconstitucional não foi capaz de resolver os problemas do Sistema Prisional colombiano.
A celeuma ora apresentada erige na doutrina um “racha” como poucas vezes se viu, bem como uma discussão que se encontra longe de ser findada.
Em uma análise perfunctória pelos largos corredores da internet, por exemplo, logo se vê textos de diversos autores - alguns conhecidos; outros anônimos que muitas vezes sem embasamento técnico adequado - aderem a primeira ou a segunda corrente.
Pois bem.
2.3 DEFESA À LEGITIMAÇÃO DO ATIVISMO JUDICIAL ESTRUTURAL DIALÓGICO NOS CASOS DE DECLARAÇÃO DE ECI.
Entendemos que razão assiste a primeira corrente apresentada neste trabalho.
Primeiro porque o Princípio da Separação dos Poderes deve ser mitigado para permitir a preservação dos limites imanentes dos direitos fundamentais, da forma apregoada, com brilhantismo, por Robert Alexy[7].
Além do mais, é importante notar que a própria Separação dos Poderes, na maneira como foi pensada por Montesquieu[8] tem sua ratio essendi calcada na limitação do arbítrio: o Poder foi tripartido, justamente, para que os seus detentores, dentro do Sistema de Freios e Contrapesos[9], pudessem criar mecanismo de se conterem.
Se é assim, legitimado encontra-se o Poder Judiciário para impedir a violação dos direitos fundamentais pelos demais Poderes.
Segundo porque os efeitos da declaração do ECI não importam uma usurpação, pelo Judiciário, das funções intrínsecas aos outros Poderes.
Com efeito, o próprio cumprimento das ordens emanadas em tais circunstâncias demanda uma ação estrutural e coordenada, o que exige o diálogo entre as autoridades de Todos os Poderes. Neste sentido, preleciona, com maestria, George Marmelstein Lima, verbis:
“Esse processo de diálogo institucional é o que se pode extrair de mais valioso do modelo colombiano. A declaração do Estado de Coisas Inconstitucional é, antes de mais nada, uma forma de chamar atenção para o problema de fundo, de reforçar o papel de cada um dos poderes e de exigir a realização de ações concretas para a solução do problema. Entendida nestes termos, o ECI não implica, necessariamente, uma usurpação judicial dos poderes administrativos ou legislativos. Pelo contrário. A ideia é fazer com que os responsáveis assumam as rédeas de suas atribuições e adotem as medidas, dentro de sua esfera de competência, para solucionar o problema. Para isso, ao declarar o estado de coisas inconstitucional e identificar uma grave e sistemática violação de direitos provocada por falhas estruturais da atuação estatal, a primeira medida adotada pelo órgão judicial é comunicar as autoridades relevantes o quadro geral da situação. Depois, convoca-se os órgãos diretamente responsáveis para que elaborem um plano de solução, fixando-se um prazo para a apresentação e conclusão desse plano. Nesse processo, também são indicados órgãos de monitoramento e fiscalização que devem relatar ao Judiciário as medidas que estariam sendo adotadas”[10].
Terceiro porque, ao contrário do que é sustentado por alguns defensores da corrente contrária, o ativismo judicial decorrente do reconhecimento do ECI não cria uma falsa ilusão de que todas as mazelas sociais serão resolvidas pelo Judiciário.
Ao contrário, não resta qualquer dúvida, de que a espécie deva recair sobre situações excepcionalíssimas. E a efetivação da ordem depende, conforme dito alhures, de ação coordenada e harmônica de todos os Poderes do Estado.
Quarto porque, de fato, em um primeiro momento, a o ativismo judicial estrutural na Colômbia, com a declaração do ECI, não resolveu as mazelas dos cárceres daquele Estado. Todavia, o argumento é inservível para desautorizar a declaração do ECI.
Isto porque não se pode condenar à morte um instituo tão complexo, por meio de um único resultado obtido.
Acrescente-se a isto que o próprio Judiciário da Colômbia reconheceu os erros da maneira como o ativismo foi praticado: de forma autoritária e sem a participação dos Poderes. Estão, por consequência, aplicando as correções devidas para o êxito de suas ações.
Não é por menos que neste estudo defende-se que, ao declarar o ECI, o Judiciário deverá dialogar (daí o uso da expressão dialógica) com os outros Poderes, de sorte que o cumprimento das ordens emanadas seja de forma harmônica. Neste ponto, o Juiz passa a ser um coordenador institucional[11]
Quinto porque, com a eclosão do modelo político do Estado Democrático de Direito, instituído no Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988, a Função típica do Poder Judiciário incorporou um poder-dever além do que possuíra no modelo garantista do Estado Liberal ou do modelo provedor do Estado Social (welfare state).
De tal maneira, conclui-se que não deve o Poder Judiciário deixar de tutelar os Direitos Fundamentais, mormente aqueles ligados à Dignidade da Pessoa Humana, quando os detentores dos outros Poderes deixarem de adotar políticas públicas mínimas para resguardá-los.
Assim, o Estado de Coisas Inconstitucional legitima o ativismo judicial estrutural dialógico.
3. A LIMITAÇÃO SUBJETIVA DAS ASTREINTES
O vilipêndio às ordens emanadas pelo Poder Judiciário implica afronta direta ao Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, a efetividade da decisão judicial é base estrutural da própria democracia, na medida em que as pessoas esperam do Estado proteção inerente à sua própria constituição.
É bem verdade que o arcabouço jurídico possui diversos instrumentos desestimuladores da recalcitrância.
Basta pensar, verbis gratia, na sujeição do renitente à pena prevista no preceito secundário do artigo 330 do Código Penal (CP) Brasileiro, diante de sua incursão no crime de desobediência.
Na própria seara cível, há inúmeras ferramentas à disposição do Magistrado, a fim de que ele imponha o cumprimento de uma tutela específica, a exemplo das regras estatuídas no §5º do artigo 461 do Código de Processo Civil (CPC) e no artigo 84 do Código de Defesa do Consumidor.
Ocorre que as astreintes são, na prática, as mais utilizadas para dissuadir o recalcitrante da senda da desobediência.
Justifica-se, então, imputar à espécie em análise, elevada importância no cumprimento da efetivação das decisões judiciais, notadamente aquelas destinadas à proteção ou efetivação dos direitos fundamentais.
Em última análise, o seu uso correto é indispensável para a manutenção da Ordem Jurídica esperada em uma democracia.
Com efeito, antes da previsão em nosso ordenamento jurídico do instituto em apreço, o Estado enfrentava grande dificuldade em garantir a efetividade do cumprimento de uma tutela relativa às obrigações de fazer, não fazer ou entregar coisa diferente de dinheiro. Isto porque, invariavelmente, havia a conversão desta em pagamento pecuniário ao livre arbítrio do próprio devedor, mesmo que esta conversão trouxesse lesões irreparáveis ao direito do credor da prestação.
Certo é que como próprio desenvolvimento da sociedade, passou-se a verificar a necessidade de que a intangibilidade da vontade individual fosse mitigada. As regras anteriores que propugnavam a conversão das obrigações de fazer, não fazer e de entregar coisas mostravam-se incompatíveis com os anseios nacionais e incondizentes com o próprio arcabouço constitucional, ora sob a égide da Carta Magna de 1988.
O Ordenamento Jurídico, pois, mudou em relação ao tratamento conferido à intervenção do Estado nas vontades individuais. Passou-se, pois, a galgar o cumprimento de uma ordem emanada pelo Juiz, mesmo que, para tanto, houvesse interferência nos desígnios de quem quer que seja.
Após uma série de modificações em diversas leis, conforme será abordado em momento oportuno desta pesquisa, a partir do ano de 1994, os brasileiros conquistaram a primazia da tutela específica.
Neste ponto, as astreintes surgem como meio coercitivo, a fim de lastrear a efetividade da decisão judicial envolvendo tutela específica referente a uma prestação de fazer, de não fazer e a de entregar coisa (para esta última com previsão de culminação da multa periódica, em nosso ordenamento, somente a partir de 2002, conforme será detalhado no momento oportuno).
Deve-se esclarecer, de logo, que, ao se referir em coerção, busca-se peremptoriamente propugnar que a multa periódica (maneira como as astreintes podem ser chamadas) atua diretamente no campo da vontade.
Isto porque, ela exerce naquele que deverá cumprir a ordem judicial pressão psicológica, já que a recalcitrância implicará sua cominação, cujos efeitos poderá recair diretamente sobre o seu patrimônio.
É bem verdade que, mesmo com sua presença no ordenamento jurídico brasileiro, é possível, como sói acontecer, que ela não surta o efeito coercitivo esperado e não seja suficiente para desestimular a desídia.
Neste ponto, a forma como o magistrado tratará o instituto poderá ser o divisor de águas entre o resgate da dignidade da justiça, desde que a aplique corretamente, e a derrocada das bases democráticas, com as nefastas implicações decorrentes da má aplicação do instituto em testilha.
É certo, e já se encontra pacificado tanto na doutrina quanto na jurisprudência, que a multa cominatória pode ser aplicada contra a Fazenda Pública.
Resta saber se, sob o pálio do discurso de proteção aos direitos fundamentais, é possível aplicá-las em desfavor do agente estatal dotado de poderes para cumprir a ordem emanada pelo Judiciário.
Entendemos que a resposta negativa se impõe, na medida em que as astreintes não devem recair sobre o servidor público responsável pelo cumprimento da decisão judicial, quando a ordem destinar-se à Fazenda Pública.
Nestes casos, em outras palavras, ainda que sob argumento utilitarista de defesa do princípio da efetividade dos direitos fundamentais, a multa diária não deve exorbitar o campo patrimonial da pessoa do devedor, já que pensamento contrário está despido de juridicidade.
Isto porque a multa diária é ferramenta de coerção contra aquele que está obrigado a cumprir um mandamento judicial. E nestes casos, o dever de cumprir os ditames judiciais é da Fazenda Pública, dotada de personalidade jurídica própria, que não se confunde com a pessoa dos seus servidores.
Incabível, portanto, sua aplicação contra pessoa diversa, principalmente se seu arbitramento ocorrer ao menoscabo dos Princípios Constitucionais da Ampla Defesa e do Contraditório. Posição que se coaduna com o brilhante raciocínio de Eduardo Talamini, verbis:
“Admite-se o emprego da multa coercitiva no mandado de segurança, surge a necessidade de definir sobre quem o encargo recairá: o agente posto na condição de “autoridade coatora” ou a pessoa jurídica exercitadora da função pública, à qual ele está vinculado? A resposta passa pela consideração da legitimidade passiva no mandado de segurança. Reconhecendo-se que o pólo passivo da demanda é ocupado pela pessoa de direito público ou de direito privado no exercício de função pública de quem o agente funciona apenas como especial “representante” (rectius: presentante), há de concluir-se que o custo da coerção patrimonial, em princípio, recai sobre aquela – como de resto, recairão as demais decorrências patrimoniais da concessão da segurança”.[12]
Confirma a tese esposada acima o importante julgado do Superior Tribunal de Justiça:
“EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO DE FAZER. DESCUMPRIMENTO. ASTREINTES. APLICAÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. CABIMENTO. EXTENSÃO DA MULTA DIÁRIA AOS REPRESENTANTES DA PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE. 1. Conforme jurisprudência firmada no âmbito desta Corte, a previsão de multa cominatória ao devedor na execução imediata destina-se, de igual modo, à Fazenda Pública. Precedentes. 2. A extensão ao agente político de sanção coercitiva aplicada à Fazenda Pública, ainda que revestida do motivado escopo de dar efetivo cumprimento à ordem mandamental, está despida de juridicidade. 3. As autoridades coatoras que atuaram no mandado de segurança como substitutos processuais não são parte na execução, a qual dirige-se à pessoa jurídica de direito público interno. 4. A norma que prevê a adoção da multa como medida necessária à efetividade do título judicial restringe-se ao réu, como se observa do § 4º do art. 461 do Códex Instrumental. 5. Recurso especial provido”.[13]
De outra banda, também é abraçada pelos operadores do Direito a possibilidade de que o Juiz aplique aos agentes supracitados, empregados ou servidores responsáveis pela conduta esperada, no caso de renitência da Pessoa Jurídica que suportará o peso da multa diária, a multa punitiva prevista no artigo 14, parágrafo único do Código de Processo Civil. Trata-se de medida resgatadora da dignidade da justiça.
Além do mais, o empregado da pessoa jurídica de direito público poderá suportar ação de regresso ante sua conduta desidiosa, nos limites da lesão suportada por sua empregadora.
Neste sentido, preceitua o artigo 158 da Lei nº 6404/76 que o responsável pela administração da sociedade empresária deverá arcar com os prejuízos que causar, quando proceder dentro de suas atribuições com culpa ou dolo ou quando sua conduta for destoante dos preceitos do estatuto ou da lei.
Também não fica imune o servidor público que fez com que a Fazenda Pública suportasse o pagamento das astreintes. Isto porque, nos píncaros da norma extraída no artigo 37, § 6º da Constituição Federal, as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos têm assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Além disto, o servidor público que desrespeitou os ditames judiciais poderá sofrer as sanções previstas na Lei n. 8.429/1992 (Lei da improbidade administrativa), já que ao descumprir um comando jurisdicional, o agente, quando age com dolo, viola a regra impressa no artigo 11, inciso II deste texto legal.
Do mais, não se pode olvidar que na esfera penal, o servidor, assim como qualquer pessoa física, que deixa de cumprir uma ordem judicial poderá responder pelo crime tipificado no artigo 330 do Código Penal, cuja pena base permeia entre quinze dias e seis meses, e multa.
É de se concluir, portanto, que ainda que o escopo precípuo da fixação das astreintes seja o de compelir o obrigado a cumprir ordem judicial destinada a conferir efetividade aos direitos fundamentais, existe limitação de índole subjetiva. Desta maneira, a multa cominatória recai, exclusivamente sobre o patrimônio do Estado; não de seu servidor.
Por outro lado, a pessoa física que no exercício de suas funções tem força para comandar a máquina estatal no cumprimento da ordem judicial no que tange à obrigação de fazer, deixar de fazer ou de entregar coisa, pode ser responsabilizado em diversas searas: processual (art. 14 do CPC), cível (ação de regresso pelo Estado); administrativa (nos termos da lei de improbidade) e penal (crime de desobediência).
Portanto, malgrado exista limitação subjetiva de aplicação da multa cominatória em desfavor do servidor, seu ato de teimosia não fica impune, porquanto existem diversas outras ferramentas para dissuadir a recalcitrância, mormente quanto a decisão judicial tenha o desiderato de conferir, na prática, efetividade aos direitos fundamentais.
4. A TÉCNICA DE SOPESAMENTO (OU DA PONDERAÇÃO) DE ROBERT ALEXY E O PROBLEMA DA KATCHANGA NAS DECISÕES JUDICIAIS
Inicialmente, mister se faz algumas ponderações, a fim de situar o leitor sobre o fim do presente tópico.
O que é a katchanga[14]?
Pois bem.
Em uma de minhas aulas de Direito Constitucional, ouvi de um brilhante aluno a seguinte estória:
Um senhor milionário, ao chegar em uma cidade do interior, buscou uma casa de apostas. Sentou-se sozinho em uma das mesas. Pôs a beber. E se chafurdou, por horas, sobre as bebidas mais fortes daquele recinto.
A solidão do milionário foi quebrada pelo próprio dono da Casa. É que o jovem empreendedor, ao perceber que o seu cliente estava tomado pelo álcool, resolveu oferecer-lhe serviços de apostas. Buscava, sem qualquer piedade, obter lucros em detrimento do milionário.
E assim, iniciou o diálogo:
- Boa noite! Sou o dono desta Casa de apostas. Notei que o senhor tem semblante de ótimo jogador. Um adversário sem igual para mim e para esta Casa! Proponho-lhe que aceite uma de nossas modalidades de jogo: roleta, tômbola, draw poker ou blackjack.
- Meu caro, respondeu o senhor milionário, eu só jogo a katchanga.
O jovem, aturdido, perguntou aos seus funcionários, os crupiês, se aquele jogo era conhecido por algum deles. Ninguém, sequer, tinha ouvido falar naquele tipo de aposta.
Mas o empreendedor não queria deixar de ter lucros desenfreados sobre um senhor extremamente embriagado: aposta fácil, pensou, não se perde!
Foi quando teve a astúcia de determinar que o seu melhor crupiê jogasse, a fim de entender as regras do jogo.
E assim se sucedeu.
Na primeira partida, o cliente distribuiu as cartas. Do nada, bradou:
- katchanga!
E em seguida, recolheu todo o dinheiro que estava na mesa.
Na segunda mão, idem:
- katchanga!
E todo o dinheiro foi para o bolso do senhor milionário!
Outras partidas se sucederam, até que o crupiê, em reservado, chamou o jovem e lhe disse:
- senhor, já entendi: basta gritar katchanga, antes dele. Muito fácil. E como ele está bêbado, terei mais habilidade do que aquele senhor. Assim, sugiro-lhe que aposte valor extremamente elevado.
Acolhendo a sugestão do seu funcionário, o empreendedor propôs ao cliente que dobrassem o valor de toda a aposta já feita por eles até aquele momento.
O senhor, com ar embriagado, aceitou sem titubear.
As cartas foram distribuídas; a mesa ficou abarrotada de dinheiro. Ocorre que, na fração de segundo após o depósito da última carta na banca do jogo, o crupiê, vitorioso, gritou:
- katchanga!
Já estava recolhendo todo o montante acumulado, quando o senhor, com toda segurança do mundo, tomou-lhe a quantia, ao reverberar:
-katchanga real!
Eis a primeira premissa!
É de conhecimento geral que Robert Alexy formulou a “teoria dos princípios”.
Por esta, o escritor, com a destreza que lhe é peculiar, propugna que os direitos fundamentais possuem caráter de princípios e, nessa condição, eles eventualmente colidem, sendo assim necessária uma solução ponderada em favor de um deles[15].
Havendo colisão de princípios, o exegeta da norma deve aplicar o sopesamento ou a ponderação, técnica que exige uma robusta fundamentação, calcada em argumentos jurídicos firmes, objetivos e racionais.
Posta está a segunda premissa.
Ocorre que a katchanga pode ser utilizada para “destruir” a ponderação[16]. E esta atecnia é utilizada, com frequência, pelos Tribunais Pátrios.
Virgílio Afonso da Silva logrou descrever, com brilhantismo, este fenômeno, no seu texto “O Proporcional e o Razoável”[17].
Ele abalizou vários casos em que o Supremo Tribunal Federal, ao pálio de que os direitos fundamentais podem ser relativizados com base no princípio da proporcionalidade, simplesmente invalidou o ato normativo questionado, sem demonstrar dentro de um conteúdo objetivo, racional e crítico, as razões que tornavam o ato desproporcional.
Matamos, com nossas katchangadas, Robert Alexy todos os dias!
A técnica do sopesamento, grande ferramenta à disposição da efetividade dos direitos fundamentais, em diversos casos, vem sendo usada de forma arbitrária por diversos magistrados do Brasil. Daí a criação, pela doutrina, da expressão: “Alexy à brasileira”.[18]
Ocorre que a técnica de Alexy é de fundamental importância.
Trata-se de uma saída de mestre, diante das inevitáveis e corriqueiras colisões de normas princípiológicas dos direitos fundamentais.
Todavia, não se pode permitir que a mesma seja usada para fomentar decisões discricionárias, aos moldes da “katchanga real”: sem regras nítidas, objetivas e racionais.
Evitar que matemos Robert Alexy com o veneno do arbítrio de muitos, de fato, é tarefa árdua. Talvez, impossível de ser obtida.
Todavia, algumas regras, se adotadas, combaterão o uso da katchanga.
Com efeito, com este objetivo, é de imperiosa importância fortalecer o sistema de precedentes judiciais. Aliás, com o novo Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015), ao menos em tese, damos um grande passo neste sentido.
Além do mais, mister se faz primar por decisões objetivas, lastreadas em dados objetivos, raciocínio cognitivo coerente, análise fática escorreita, sem descurar na avaliação axiológica dos elementos envolvidos em um processo.
É preciso, ainda, reforçar a necessidade de aplicar, com a devida fiscalização, o princípio da imparcialidade do juiz. Isto porque, se o magistrado – ainda que indiretamente, tiver interesse no resultado do processo, naturalmente, ele tenderá a galgá-lo, mesmo que fazendo uso da katchanga.
4. CONCLUSÃO
O ativismo estrutural dialógico no Estado de Coisas Inconstitucional e as astreintes são ferramentas de grande importância para o Juiz, principalmente, na efetivação dos direitos fundamentais.
Ocorre que, em relação ao primeiro instituto, malgrado a existência vozes contrárias, a mesma resta devidamente legitimada nos casos de ECI.
Por outro lado, sem mitigar a força da multa cominatória no desestímulo da renitência, mister se faz propugnar que a mesma encontra restrição de índole subjetiva. De tal sorte, ainda que o escopo seja voltado a forçar o cumprimento de uma decisão judicial voltada à proteger direito fundamental, as astreintes não podem transcender a pessoa jurídica de direito público e pairar sobre o patrimônio do servidor público.
Do mais, precisamos, com afinco, fomentar a proteção aos direitos fundamentais, notadamente, quando houver colisão entre eles, usando o sopesamento, conforme defendido por Alexy. Contudo, não se pode permitir o uso da katchanga, sob pena de se verter a ideia do mestre alemão em argumentos para a discricionariedade.
REFERÊNCIAS:
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MARMELSTEIN, George. Alexy à Brasileira ou a Teoria da Katchanga. Disponível em: < http://direitosfundamentais.net/2008/09/18/alexy-a-brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga/> Acessado em: 07 de janeiro de 2016.
MONTESQUEIU, Charles Louis de. O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Editora, 2005.
Streck Lenio, “A estória da ‘Katchanga Real'”, por Lenio Streck. Disponível em: < http://professormedina.com/2012/02/28/a-estoria-da-katchanga-real-por-lenio-streck/> . Acessado em: 07 de janeiro de 2016.
TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer: CPC, ART. 461; CDC, art. 84. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
[1] Neste sentido, AMARAL, Guilherme Rizzo. As astreintes e o Processo Civil brasileiro: multa do artigo 461 do CPC e outras. 2. ed. Rev. Atual. E ampl. Porto Alegre: livraria do Advogado Editora, 2010. p. 126.
[2] LIMA, George Marmelstein. O Estado de Coisas Inconstitucional – ECI: apenas uma nova onda do verão constitucional? Disponível em: < http://direitosfundamentais.net/2015/10/02/o-estado-de-coisas-inconstitucional-eci-apenas-uma-nova-onda-do-verao-constitucional/>. Acessado em18 de dezembro de 2015.
[3] ADPF n. 347/DF. Relator. Ministro Marco Aurélio de Melo. Pode ser conferida em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4783560#>
[4] Decisão disponibilizada no DJe em 14.09.2015
[5] CUNHA, Dirley da. Estado de Coisas Inconstitucional. Disponível em: <http://brasiljuridico.com.br/artigos/estado-de-coisas-inconstitucional>. Acessado em 20 de dezembro de 2015.
[6] GIORGI, Raffaele De; FARIA, José Eduardo; CAPILONGO, Celso. Estado de Coisas Inconstitucional. Disponível em: < opiniao.estadao.com.br/noticias/geral%2cestado-de-coisas-inconstitucional%2c10000000043>. Acessado em 20 de dezembro de 2015.
[7] ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002.
[8] MONTESQUEIU, Charles Louis de. O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Editora, 2005.
[9] Ibid.
[10] LIMA, George Marmelstein. Opcit.
[11] CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. JOTAMundo: Estado de Coisas Inconstitucional. Disponível em: <http://jota.info/jotamundo-estado-de-coisas-inconstitucional>. Acessado em: 23 de dezembro de 2015.
[12] TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer: CPC, ART. 461; CDC, art. 84. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 453.
[13] RESP 200500736827 RESP - RECURSO ESPECIAL - 747371 Relator(a) JORGE MUSSI Sigla do órgão STJ Órgão julgador QUINTA TURMA. Data da Decisão disponibilizada no DJe em 26/04/2010.
[14] Com base no brilhante texto: MARMELSTEIN, George. Alexy à Brasileira ou a Teoria da Katchanga. Disponível em: < http://direitosfundamentais.net/2008/09/18/alexy-a-brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga/> Acessado em: 07 de janeiro de 2016.
[15] ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001, p.112
[16] Neste sentido, Streck Lenio, “A estória da ‘Katchanga Real'”, por Lenio Streck. Disponível em: < http://professormedina.com/2012/02/28/a-estoria-da-katchanga-real-por-lenio-streck/> . Acessado em: 07 de janeiro de 2016.
[17] Citado por MARMELSTEIN, George. Alexy à Brasileira ou a Teoria da Katchanga. Disponível em: < http://direitosfundamentais.net/2008/09/18/alexy-a-brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga/> Acessado em: 07 de janeiro de 2016.
[18] Ibidem.
Bacharel em Direito pela Faculdade de Tecnologia e Ciências (2011). Aluno laureado pela Instituição supracitada. Pós-graduado em Direito Processual Civil pelo Juspodivm (2015). Assessor de Juiz (TJBA). Professor de diversas disciplinas do Direito;<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COUTO, Edenildo Souza. Notáveis ferramentas para proteção dos direitos fundamentais: reflexões necessárias Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 mar 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46173/notaveis-ferramentas-para-protecao-dos-direitos-fundamentais-reflexoes-necessarias. Acesso em: 23 dez 2024.
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