Às vésperas de entrar em vigor (março/2016), o novo Código de Processo Civil vem gerando grande ansiedade (e dores de cabeça) nos operadores do direito. Não poderia ser diferente, já que as mudanças são significativas. São novos princípios e normas que ganham destaque por romperem os paradigmas encrustados no CPC de 1973, primando pela interdisciplinaridade como auxílio à atividade hermenêutica. É o que se chama de constitucionalização do direito processual civil, característica que se denota já no artigo preambular: “o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil”.
Foram mais de cinco anos de intensos debates e incontáveis audiências públicas, com a participação de juristas de renome, para alcançar um modelo normativo processual que realmente considerasse as diretrizes da Constituição Federal de 1988 e os ideais de racionalidade e objetividade que há muito tempo vinham sendo clamados pela doutrina e jurisprudência.
A incorporação de novos institutos, extinção de outros e a flexibilização de procedimentos judiciais reflete o antigo desejo de otimização do processo e desapego a formalismos exagerados. A própria concepção do cooperativismo processual logo no art. 6º do código concretiza a ideia de necessidade de colaboração entre as partes que integram o processo para a obtenção de uma decisão justa, célere e efetiva. Na verdade, dá luz à noção de policentricidade, ou seja, todos os sujeitos da relação jurídico-processual são igualmente responsáveis para que o processo seja conduzido e finalizado de acordo com os princípios processuais constitucionais.
O novo CPC reservou à Defensoria Pública um título exclusivo, assim como ao Ministério Público e à Advocacia Pública, onde são enumeradas, dentre outros, as finalidades institucionais do órgão, como se vê do texto insculpido no artigo 185: “A Defensoria Pública exercerá a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa dos direitos individuais e coletivos dos necessitados, em todos os graus, de forma integral e gratuita”.
O reconhecimento formal da Defensoria Pública no NCPC é reflexo da importância revelada pelo órgão no cumprimento de sua missão institucional nos últimos anos, fator que implica em evidente fortalecimento como signo de “expressão e instrumento do regime democrático” (art. 1º, Lei Complementar nº 80/94).
Nas palavras do professor Elpídio Donizetti, membro da Comissão de Juristas encarregada da elaboração do Anteprojeto do Novo CPC e autor da proposta que inseriu um título específico para a Defensoria Pública, “o enquadramento da Defensoria Pública como garantia fundamental constitucional, incumbida, principalmente, da promoção do acesso à justiça – direito fundamental consubstanciado no art. 5º, XXXV, da Constituição de 1988 – levou a instituição a ser considerada pela maioria da doutrina como integrante do núcleo essencial de um Estado Democrático de Direito”.¹
A doutrina admite até mesmo que, em razão do grau de importância, a Defensoria não pode ter suas atribuições restringidas nem mesmo por meio de emenda constitucional, “sob pena de indefensável retrocesso no cumprimento do objetivo fundamental de construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.²
A previsão no artigo 7º do NCPC, da paridade de tratamento entre as partes, desdobra do princípio da igualdade processual, assegurando a garantia da prestação jurisdicional sem qualquer discriminação e reduzindo as dificuldades do acesso à justiça. Em essência, traduz os objetivos primários da Defensoria Pública, dispostos na Lei Complementar nº 80/1994, dentre eles a primazia da dignidade da pessoa humana, a afirmação do Estado democrático de Direito, a redução das desigualdades sociais, a prevalência e efetividade dos direitos humanos e a garantia da ampla defesa e do contraditório, princípios aplicáveis também no âmbito processual.
Em prestígio à legislação especial que rege a instituição, restou consagrado na nova norma, mais especificamente no artigo 72, parágrafo único, o exercício da curatela especial da Defensoria Pública nos processos em que forem partes: I) o incapaz que não possuir representante legal ou se os seus interesses colidirem com os daquele, enquanto durar a incapacidade e; II) o réu preso revel, bem como o réu revel citado por edital ou com hora certa, enquanto não for constituído advogado. A intenção da norma processual é proteger não somente os necessitados financeiramente, mas também os juridicamente hipossuficientes.
Destaca-se, também, a previsão no §5º do artigo 95 da vedação da utilização de recursos do fundo de custeio da Defensoria Pública para o pagamento dos honorários periciais em ação judicial. Percebe-se aqui uma clara reafirmação da autonomia administrativa e financeira da defensoria nos moldes do §2º do artigo 134 da Constituição Federal, introduzida pela Emenda Constitucional nº 45/2004.
Outro ponto que merece especial atenção é o artigo 186 e parágrafos seguintes, que traz a reprodução das prerrogativas da intimação pessoal e da contagem em dobro dos prazos processuais para a Defensoria Pública, conforme já previstas na Lei 1.060/50 e Lei Complementar nº 80/94, observando que a contagem em dobro não prevalece quando há previsão de prazo específico para a instituição – art. 186, §4º. Ressalte-se que a prerrogativa do prazo em dobro passa a ser aplicada também aos núcleos de prática jurídica das faculdades de Direito e às entidades que prestam assistência jurídica em convênio com a Defensoria (art. 186, §3º).
O §1º do art. 186 do NCPC dispõe que o prazo iniciar-se-á com a intimação pessoal do defensor público, nos termos do art. 183, §1º. Já este último afirma que a intimação pessoal será realizada por meio de carga, remessa ou meio eletrônico. Neste caso parece que o legislador quis que as duas formas – intimação pessoal e eletrônica - se equivalessem (para garantir maior agilidade e eficiência na prestação jurisdicional), em atenção Lei nº 11.419/2006 que trata da comunicação eletrônica dos atos processuais, onde dispõe o art. 4º, §6º: “as intimações feitas na forma deste artigo, inclusive da Fazenda Pública, serão consideradas pessoais para todos os efeitos legais”.
Ao inaugurar um título exclusivo para a Defensoria, o novo CPC fez questão de dirimir um imbróglio instalado na doutrina e jurisprudência há algum tempo: quando se inicia a contagem dos prazos para a Defensoria Pública?
Enquanto uns afirmavam que o termo inicial seria a data em que o defensor tomava ciência do ato processual, outros defendiam a tese de que os prazos começariam a correr no momento em que os autos adentravam a instituição. Pois bem, neste aspecto a celeuma foi solucionada.
Quando a intimação for realizada por meio de remessa ou carga, não restam dúvidas de que a contagem dos prazos para interposição de recurso pelo Ministério Público ou Defensoria Pública começa a fluir da data do recebimento dos autos, com vista do respectivo órgão, e não da ciência do seu membro no processo, conforme entendimento já fixado no julgamento do Habeas Corpus nº 126663. Na ocasião, o relator Ministro Gilmar Mendes consignou que, “a despeito da presença do defensor público em audiência, a intimação pessoal da Defensoria somente se concretiza com a entrega dos autos com vista, em homenagem ao princípio constitucional da ampla defesa”. Importante destacar que a retirada dos autos do cartório ou da secretaria pelo defensor implicará em intimação de qualquer decisão constante no processo, conforme dispõe o §6º, do art. 272 do NCPC.
Quanto ao termo inicial dos prazos quando se tratar de intimação eletrônica já há previsão legal expressa no sentido de que a intimação se efetiva na data em que o intimando realizar a consulta eletrônica. Como já ocorre no microssistema dos juizados especiais (PROJUDI), a consulta eletrônica deverá ser feita em até 10 dias corridos contados da data do envio da intimação, considerando-se automaticamente realizada no término deste prazo (art. 5º, §§1º e 3§ da Lei nº 11.419/2006). No entanto, cabe ressaltar que a intimação eletrônica somente será perfectibilizada quando o intimando estiver credenciado em portal próprio do Poder Judiciário (PJE) e em processos que tramitem integralmente na forma eletrônica, caso contrário o ato processual deverá ser praticado de acordo as regras processuais ordinárias. Veremos quais serão as orientações do Conselho Nacional de Justiça em relação a este e a outros pontos que induvidosamente serão objetos de controvérsias na prática forense (o art. 196 do NCPC dispõe expressamente que caberá ao CNJ e, supletivamente, aos tribunais, a regulamentação da prática e a comunicação oficial dos atos processuais).
O parágrafo 2º do artigo 186 reconhece a precariedade estrutural das Defensorias Públicas e demonstra um olhar atento do legislador às dificuldades enfrentadas diariamente pelos defensores, tanto na limitação orçamentária (e consequente déficit de recursos humanos), quanto no excesso de trabalho despejado nos gabinetes dos defensores. O texto legal prevê a prerrogativa do membro da Defensoria Pública de requerer a intimação pessoal do assistido, quando a efetivação do ato processual depender de providência ou informação que somente por ele possa ser realizada ou prestada. A norma, que deverá ser obrigatoriamente observada pelo magistrado, facilitará sobremaneira a atuação dos defensores que sofrem para se comunicar com os assistidos, viabilizando maior amplitude à defesa técnica.
Na hipótese acima, importante levantar uma observação quanto ao termo inicial do prazo para a prática do ato processual. A melhor lógica indica que o prazo começa a correr a partir da intimação pessoal do próprio assistido, posteriormente ao requerimento do defensor público e não da intimação pessoal deste último. Ora, a norma seria vazia se a contagem do prazo iniciasse antes mesmo da intimação da parte, pois ao revés de assegurar o contraditório e a ampla defesa, estaria limitando-os, o que seria inconcebível.
Talvez um dos mais importantes institutos criados pelo NCPC seja o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), baseado no procedimento-modelo do direito alemão (Musterverfahren), que será cabível quando houver, simultaneamente, efetiva repetição de processos com controvérsia referente a idêntica questão de direito e risco de ofensa à isonomia e segurança jurídica. Trata-se de instrumento para erradicar as divergências interpretativas em processos envolvendo causas congêneres. E reconhecendo o papel da Defensoria como instituição essencial a função jurisdicional do Estado, foi que o legislador atribuiu legitimidade ao órgão para a propositura do IRDR (art. 977, III), bem como para fiscalizar o cumprimento dos prazos previstos em lei de modo a garantir o princípio constitucional da duração razoável do processo (art. 233 e 235).
Outra inovação importantíssima e que será muito utilizada na rotina dos defensores públicos está contida no texto dos artigos 554, §1º e 565, §2º. A primeira disposição trata da obrigatoriedade de intimação da Defensoria Pública nas ações possessórias multitudinárias, ou seja, aquelas compostas de vários demandados e que envolvam pessoas em situação de hipossuficiência, já a segunda refere-se à intimação do órgão nos litígios coletivos pela posse de imóvel proveniente de turbação ou esbulho quando houver parte beneficiária da justiça gratuita. Nos dois casos, percebe-se que a atuação da Defensoria se dá de acordo com o seu perfil institucional e como meio de garantir aos seus assistidos o exercício do direito ao contraditório e ampla defesa, com recursos e meios a estes inerentes.
Por fim, como previsto no código anterior, o novo diploma processual civil, carregando em sua natureza medidas que estimulam a mediação e autocomposição, valoriza a Defensoria Pública como solucionadora de conflitos ao manter o instrumento de transação referendado pelo órgão defensorial no rol de títulos executivos extrajudiciais (art. 784, inciso IV).
Como se vê, o NCPC atesta a existência da Defensoria Pública, especificando o seu papel dentro do processo civil. Sob a ótica do novo código, a defesa integral dos hipossuficientes somente é possível com o fortalecimento do ente que os representa e a sistematização da sublime função do defensor público. Muito mais que isso, reitera a importância desta instituição para a sociedade em geral, de modo a preservar o acesso à justiça aos necessitados e garantir a aplicação dos princípios constitucionais ao sistema processual.
Autor: Thomas Ubirajara Caldas de Arruda. Advogado. Assistente Jurídico da Defensoria Pública de Segunda Instância de Mato Grosso. Pós-graduando em Direito Civil Contemporâneo pela UFMT.
NOTAS
1 DONIZETTI, Elpídio. A Defensoria Pública e o novo CPC. Disponível em: http://portalied.jusbrasil.com.br/artigos/293075746/a-defensoria-publica-e-o-novo-cpc
2 GIUDICELLI, Gustavo Barbosa. A Defensoria Pública Enquanto Garantia Fundamental Institucional. Releitura do papel da Defensoria Pública no cenário jurídico brasileiro. Disponível em:https://www.anadep.org.br/wtksite/cms/conteudo/17278/A_Defensoria_P_blica_enquanto_direito_fundamental_institucional.pdf
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAHIA, Alexandre Melo Franco; NUNES, Dierle;PEDRON, Flávio Quinaud; THEODORO JR., Humberto. Novo CPC: fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
Advogado licenciado. Assessor Jurídico na Procuradoria-Geral de Justiça (MP/MT). Especialista em Direito Processual Civil (UFMT).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ARRUDA, Thomas Ubirajara Caldas de. A Defensoria Pública como expressão e instrumento da democracia no novo CPC Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 mar 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46204/a-defensoria-publica-como-expressao-e-instrumento-da-democracia-no-novo-cpc. Acesso em: 23 dez 2024.
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