Sumário: Introdução. 1 Princípio da não autoincriminação. 2 Princípio da legalidade. 3 Princípio da proibição de abusos dos direitos fundamentais. 4 Aplicabilidade dos princípios implícitos à Constituição. 5 Jurisprudência e ponderação de direitos. 6 Nova redação – Lei n.º 12.760/2012. Conclusão. Referências.
Introdução
A Lei Federal nº 11.705/08, apelidada de “Lei Seca”, objetivou inibir o consumo de bebidas alcoólicas por condutores de veículos automotores, estabelecendo a alcoolemia 0 (zero) e impondo penalidades mais severas aos motoristas desobedientes à legislação de trânsito.
O seu art. 277 e §§, que submetia o motorista ao teste, assim previa:
Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado. (grifo nosso)
§ 1º Medida correspondente aplica-se no caso de suspeita de uso de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos.
§ 2º A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor.
§ 3º Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.
Iniciou-se então um debate acerca da constitucionalidade da medida, pois a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece em seu art. 5º, LXIII: “O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”.
Tal dispositivo possui o condão de proteger o sujeito, a fim de que ele não seja obrigado a produzir provas contra si mesmo. Então, poderia a norma obrigar o indivíduo a se submeter ao teste?
1 Princípio da não autoincriminação
A norma citada (art. 5º, LXIII da CRFB/88) é, apenas, uma das vertentes do princípio da não autoincriminação, que segundo Gomes (2010) possui várias dimensões:
(1) direito ao silêncio, (2) direito de não colaborar com a investigação ou a instrução criminal; (3) direito de não declarar contra si mesmo, (4) direito de não confessar, (5) direito de declarar o inverídico, sem prejudicar terceiros, (6) direito de não apresentar provas que prejudique sua situação jurídica. A essas seis dimensões temos que agregar uma sétima, que consiste no direito de não produzir ou de não contribuir ativamente para a produção de provas contra si mesmo. Esse genérico direito se triparte no (7) direito de não praticar nenhum comportamento ativo que lhe comprometa, (8) direito de não participar ativamente de procedimentos probatórios incriminatórios e (9) direito de não ceder seu corpo (total ou parcialmente) para a produção de prova incriminatória.
Elas estão fundamentados na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), art. 8º, 2; e no Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, art. 14.3; vigentes no ordenamento jurídico brasileiro, pois o Brasil é signatário de ambos. E sendo assim, implícitos na Carta Política.
2 Princípio da legalidade
O princípio da legalidade surgiu com o Estado de Direito, em oposição a qualquer forma de poder autoritário ou antidemocrático, pois nasceu para que todos se curvassem ao império lei, sem exceção.
Ele está expresso na Carta Cidadã de 1988: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II). Significando que o particular pode fazer tudo que a lei não proíba, segundo a sua vontade (autonomia da vontade).
Contudo, esse direito pode sofrer limitação, a partir do instante em que inicie lesão ao direito de outrem, sofrendo ponderação de valor diante da dignidade da pessoa humana ou de outro princípio.
Neste sentido, Moraes (2003, p.61) afirma:
Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas).
3 Princípio da proibição de abuso dos direitos fundamentais
Nenhum direito deve ser interpretado como autorizador de práticas de atividades ilícitas, invocáveis para evitar a punição de comportamentos criminosos, utilizáveis como escudo protetor de quem atente contra direitos fundamentais, valores constitucionais relevantes, ou a própria dignidade humana.
Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. XXX) estabelece:
Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada de maneira a envolver para qualquer Estado, agrupamento ou indivíduo o direito de se entregar a alguma atividade ou de praticar algum ato destinado a destruir os direitos e liberdades aqui enunciados.
É um autorizativo à ponderação de princípios e valores fundamentais, diante de situações reais, de modo a evitar que o indivíduo possa utilizar-se de um direito humano de forma torpe, distorcendo o seu real significado de proteção.
Lima (2008) ensina e contextualiza bem o dilema:
Não há como negar que existe uma visão distorcida dos direitos fundamentais por parte de algumas entidades de proteção aos “direitos humanos” e de alguns juristas brasileiros. Há um certo fundamentalismo em favor das garantias processuais penais que, em doses exageradas, pode eventualmente levar à impunidade. E os direitos fundamentais não compactuam com a impunidade. Na verdade, esses direitos são instrumentos de proteção à dignidade humana e à limitação do poder. Logo, não podem servir justamente para acobertar práticas criminosas que violem essa dignidade. Não se trata de colocar as “razões de Estado” acima da proteção dos indivíduos, porque, se assim fosse, a razão de ser dos direitos fundamentais – que é a limitação do poder estatal – desapareceria. O que se deseja é tão somente impedir que os direitos fundamentais sejam invocados para evitar a punição de comportamentos que atentem contra a própria dignidade humana.
A Constituição Cidadã traz em seu texto situações de limitação de direitos fundamentais para que se evite o abuso no seu exercício, ou que eles sejam utilizados como barreiras para a punição de atividades criminosas. São exemplos: a inviolabilidade do domicílio, que pode ser invadido em caso de flagrante delito (art. 5º, XI); o sigilo das comunicações telefônicas, que pode ser violado, por ordem judicial, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal (art. 5º, XII); o direito de reunião, que é assegurado para fins pacíficos (art. 5º, XVI).
4. Aplicabilidade dos princípios implícitos à Constituição
A Constituição Federal de 1998 traz uma autorização expressa quanto à aplicabilidade de princípios e regras emanadas de direitos e garantias dela provenientes, expressamente, ou ainda decorrentes de tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte. Vindo a compor um organismo constitucional, atualizado, uniforme e integrado, tanto na ordem interna, quanto na externa – principalmente no que se refere a direitos humanos. É o que dispõe o art. 5º §§ 2º e 3º:
§2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
§3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
5 Jurisprudência e ponderação de direitos
Corrobora com o princípio da proibição de abuso dos direitos fundamentais, teses hodiernamente aceitas nos tribunais pátrios, vejamos:
O direito à inviolabilidade do escritório ou local de trabalho do Advogado, dos seus arquivos e dados, da sua correspondência e de suas comunicações, inclusive telefônicas ou afins, não é absoluto, podendo ser afastado em caso de busca e apreensão determinada por magistrado. Naturalmente, o poder judicial também não é ilimitado, o que implicaria inutilizar, na prática, a prerrogativa profissional: o juiz só pode determinar busca e apreensão em escritório ou local de trabalho de Advogado nas precisas hipóteses do artigo 240 do Código de Processo Penal. É dizer: o direito do Advogado à privacidade do seu escritório ou local de trabalho, dos seus arquivos e dados, da sua correspondência e de suas comunicações, inclusive telefônicas ou afins, não vai além da medida estritamente necessária para a garantia do legítimo exercício da advocacia, em nome da liberdade de defesa e do sigilo inerente à essa atividade profissional, não podendo ser confundido com imunidade para a prática de crimes, para a ocultação de provas ou para o favorecimento de criminosos, hipóteses que legitimam plenamente a busca e apreensão determinada por magistrado. TRF 4ª Região, MS 2001.04.01.070250-0/RS, DJ: 3/2/1001.
Réu condenado por formação de quadrilha armada, que se acha cumprindo pena em penitenciária, não tem como invocar direitos fundamentais próprios do homem livre para desentranhar prova (decodificação de fita magnética) feita pela polícia. (STJ, RMS 9129/RJ, rel. Min. Adhemar Maciel, DJ. 6/2/1996).
Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas - e considerado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros. STF, Pleno, RMS 23.452/RJ, Relator Ministro Celso de Mello. DJ de 12.05.2000.
6 Nova redação – Lei n.º 12.760/2012
A norma em sua versão original possuía um conteúdo de caráter obrigatório, expressado pelo verbo “será”, que ajudou na polêmica acerca da coercibilidade da imposição do teste ao indivíduo.
Atualmente, o texto normativo contém o verbo “poderá”, que traz um sentido de possibilidade, quer dizer, a aferição da influência do indivíduo ao álcool ou a outra substância que determine dependência, e seja capaz de diminuir a capacidade motora do condutor, pode ser atestada por meio de exame clínico, perícia, filmagem, testemunhas comprovando que o indivíduo esteja alcoolizado (não consegue permanecer em pé, falar de forma organizada, dentre outras formas disciplinadas pelo Contran) – ou ainda qualquer meio de prova em direito admitida. É o que se observa da norma:
Art. 277. O condutor de veículo automotor envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito poderá ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que, por meios técnicos ou científicos, na forma disciplinada pelo Contran, permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência.
§ 1º Revogado.
§ 2º A infração prevista no art. 165 também poderá ser caracterizada mediante imagem, vídeo, constatação de sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora ou produção de quaisquer outras provas em direito admitidas.
§ 3º Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.
O Supremo Tribunal Federal, ao analisar o Agravo ao RE 861112 – DF, entendeu que a recusa ao teste do bafômetro, por si só, impunha à aplicação de penalidade e medidas administrativas, nos termos do artigo 227, § 3º, do CTB, e afastava a alegação de nulidade, ilegalidade e inconstitucionalidade suscitadas pela recorrente. O que está em consonância com o pensamento mais moderno e atual sobre o tema.
Conclusão
O que se observa, independentemente de qual versão da norma que seja analisada. É que a recusa do condutor em submeter-se ao teste de alcoolemia, ou outro tipo de teste que possa aferir a ingestão de substância capaz de diminuir a capacidade motora do agente, leva a aplicação de penalidades e medidas administrativas, apenas. Como já se fazia de longa data, com a apreensão de carteira de habilitação, de veículo automotor e seu recolhimento, ou de aplicação de multa (atos administrativos acobertados pela presunção de legitimidade, mas que cabem prova em contrário).
O cerne da questão está na possibilidade ou não de utilização dessas informações em eventual processo criminal, em que o acusado tivesse sido obrigado a efetuar algum teste ou a produzir qualquer prova que pudesse incriminá-lo. Este sempre foi o temor e ainda o é, de defensores e acusados, e que tem causado tantos debates, algumas vezes acalorados sobre o tema.
Contudo, não há como pensar de forma diversa em um Estado de Direito em que se vive coletivamente e em respeito a Direitos Humanos e Normas Fundamentais, como é o caso brasileiro. O exame de alcoolemia está em consonância com a Carta Magna de 1988. Aquele envolvido em acidente de trânsito ou que venha a ser alvo de fiscalização deve submeter-se a ele, ou sofrer as penalidades e medidas previstas em lei.
O princípio da não autoincriminação não pode ser utilizado como uma proteção a favor da impunidade. Ou seja, nenhum direito deve ser interpretado como autorizador de práticas de atividades ilícitas, invocáveis para evitar a punição de comportamentos criminosos, utilizáveis como escudo protetor de quem atente contra direitos fundamentais, valores constitucionais relevantes, ou a própria dignidade humana.
Referências:
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da não autoincriminação: significado, conteúdo, base jurídica e âmbito de incidência. Disponível em http://www.lfg.com.br – Acesso em 16.01.2016.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. - 17. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Saraiva, 2013.
LIMA, George Marmelstein. Direitos Fundamentais e Impunidade: em defesa da aplicação do princípio da proibição de abuso de direitos fundamentais. Disponível em http://www.direitosfundamentais.net – Acesso em 16.01.2016.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. - 13. ed. - São Paulo: Atlas, 2003.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11705.htm - Acesso em 16.01.2016.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9503.htm – acesso em 03/01/2016.
www.stf.jus.br
Advogado - Especialista em Direito Administrativo, Civil e Processual Civil. Escritório atuante também em Direito Tributário, Previdenciário e Trabalhista. Autor de artigos publicados em diversas revistas jurídicas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Frederico Fernandes dos. O teste do bafômetro e sua legalidade diante de princípios constitucionais e de direitos humanos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 mar 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46210/o-teste-do-bafometro-e-sua-legalidade-diante-de-principios-constitucionais-e-de-direitos-humanos. Acesso em: 23 dez 2024.
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